Só faltou a Dilma

DSC_729741_PBQuarenta e quatro anos depois, eles continuam os mesmos. Guardadas, é claro, as devidas proporções. O mais extrovertido é o gaúcho Raul Ellwanger. Ele organiza os trabalhos e faz as melhores piadas. “Cláudio Galeno (ex-namorado da jovem Dilma) perdeu o melhor emprego do mundo. Hoje, ele seria o primeiro-damo.” Ele também informa que esse encontro era para ter acontecido há três anos. “Mas mensagens de que seria melhor não fazer para não atrapalhar a recém-eleita Dilma surgiram. Isso nos aborreceu”, diz ele.

Dilma Rousseff foi a grande estrela ausente da festa, que durou dois dias. Uma sexta-feira (15 de novembro último) de apresentações no salão de festas de um condomínio de classe média e almoço de sábado em uma churrascaria, ambos em Osasco, Grande São Paulo, onde a história da VAR (Vanguarda Armada Revolucionária) Palmares começou. Antonio Espinosa, articulador do encontro, ex-comandante nacional da organização e, portanto, da própria Dilma, que foi comandante regional de São Paulo, não comentou diretamente as prisões de José Dirceu e de José Genoino, que acabavam de ser anunciadas. Mas disse que “a rigor a presidenta Dilma é a única pessoa presa neste País, tão presa que não pode aparecer na festa dos ex-companheiros porque o gabinete militar não permite”.

O ex-companheiro Rui Falcão, presidente nacional do PT, apressou-se em deixar claro que a ausência não queria dizer alienação. “Na situação atual, a presidenta não poderia participar. Mas eu tenho certeza de que os compromissos dela continuam muito vivos com relação ao seu passado, haja vista todo esse movimento de resgate que ela fez – a comissão da verdade – e o comportamento nas questões que dizem respeito ao povo e às melhorias sociais.”

Espinosa, outro que continua forte e rijo, de cabelos grisalhos, porém, definiu o perfil dos convidados: “Aqui há representantes de todas as ações armadas realizadas na época da ditadura contra quartéis. Todas as armas que foram retiradas de quartéis, sobretudo em São Paulo, têm aqui representantes. E eu tive a honra de participar de algumas. Tomar alguns quartéis junto com os companheiros. Estão aqui presentes companheiros e companheiras que participaram de ações que resultaram em 90% das requisições de fundos recolhidos pela revolução, sendo a principal delas, todos se recordam, o cofre do Adhemar de Barros”.

Ellwanger contribuiu sempre com pitadas de ironia. Batendo palmas, chamou todo mundo para ouvir. Propôs, então, que cada um dos presentes fosse, voluntariamente, à frente para se apresentar aos outros, contar o que fez e o que pensa, uma vez que muitos ali não se conheciam, apesar de serem quase todos da VAR-Palmares – havia outros dois militantes da ALN (Ação Libertadora Nacional). Confessou que estava se sentindo diferente. “Eu já vinha desde ontem com uma sensação muito esquisita: vou encontrar as pessoas que eu adoro e que não conheço.”

Ele deu a palavra a Espinosa por “14 segundos”, Espinosa pediu 4 minutos e falou por 28. Disse que estavam ali reunidas “pessoas de vários Estados – Minas, Bahia, Espírito Santo, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, São Paulo – que tiveram um papel muito importante na redemocratização do nosso País, até à revelia do que nós pensávamos. Nós lutávamos pela democratização do Estado e acabamos atingindo outro objetivo: a democratização da forma de governo. Inclusive uma companheira nossa, militante da VAR-Palmares, hoje é a presidente da República”.

Não tinha jeito. Mesmo não tendo vindo nem ela nem seu ex-marido – Carlos Araújo, proibido de viajar pelo médico –, o assunto principal voltava sempre à presidenta da República.

Quando aquelas senhoras e senhores começaram a se apresentar e a contar quem foram e quem são, um espetáculo e, ao mesmo tempo, uma aula de história entraram em cena.

Adorei as palavras da Martinha, uma graça de pessoa, que se apresentou assim: “Eu sou Ignez Maria Serpa, meu nome de guerra era Martinha, eu era da VAR-Palmares de Porto Alegre. Militei no Rio Grande do Sul, não vim aqui pra cima. Fiz ação lá, fui presa lá, fiquei lá. Fiz parte do comando de operações da VAR-Palmares. E nós fizemos ações armadas no Rio Grande do Sul também. É bom deixar claro que a VAR era meio espalhada. Não era só Rio de Janeiro e São Paulo. Minas Gerais e Espírito Santo. Era também Bahia, Pernambuco, Rio Grande do Sul. E em mais de uma cidade, não só Porto Alegre – Caxias, Bento Gonçalves, a região da serra. Eu entrei na VAR-Palmares por livre e espontânea vontade. Acreditava. Não foi porque eu era namorada ou mulher de alguém. Claro, namorei gente da VAR, mas eu era eu. E sempre sou eu. Uma militante que nunca parou de militar”.

No sábado, Rui Falcão contou que Martinha provocara sua prisão, ainda que sem querer: “Eu fui da assessoria do comando nacional da VAR-Palmares, escapei de um cerco na Folha de S. Paulo, fiquei clandestino alguns meses aqui em São Paulo, fui deslocado para o Rio de Janeiro, passei um mês e pouco em Paquetá, tentando organizar a comunicação da VAR-Palmares. Como não havia condições logísticas no Rio, nós nos transferimos para Porto Alegre, onde adquirimos máquinas de comunicação eletrônica, matrizes pós-xérox para produzir textos, que eram distribuídos pelo País dentro de pneus. Nesse meio tempo, por uma coincidência terrível, teve uma tentativa de sequestro no Rio Grande do Sul do cônsul americano. Vários militantes foram presos, e eu estava morando no apartamento que tinha sido ocupado antes pela Martinha, que morou lá com o Cláudio Galeno. Galeno foi para o exterior, ela sabia que ele tinha saído, então, na tortura, ela ‘abriu’ esse apartamento, achando que não tinha ninguém lá. E eu morava nesse apartamento.”

Aos 80, que não aparenta nem a pau, Miguel Nakamura, talvez o mais antigo do grupo, chegou cedo, mas não sabia qual era o motivo do encontro. “Não sei por que o Espinosa me convidou, eu nem era da VAR-Palmares, mas eu vim”, afirmou o ex-militante da ALN. Contou algumas coisas que sabe do pior torturador que conheceu, o delegado Sergio Fleury. “Ele tirava presos comuns da cadeia para treinar tiro ao alvo. Para pegar o gosto de matar. Ele foi muito poderoso. Mas extrapolou. Tiveram de eliminar.”

Nakamura não tem uma prova consistente, mas desconfia da versão oficial de que Fleury teria morrido afogado. “Lá onde morreu, até criança nadava.” Mas tem certeza de que Jango foi envenenado. “Fleury organizou um bando para matar o ex-presidente. Tarzan de Castro estava no meio. Foi da Ala Vermelha, depois se passou para o lado do Fleury. Mas não sei se ele contatou Jango.”

O ex-operário David Gôngora tem a palavra: “Fiquei dez anos clandestino. O que tinha de melhor da juventude brasileira se deu naquela época. A nossa organização é a que estava mais preparada do ponto de vista das discussões. Nós somos, quer queira, quer não, excepcionais”.

Quando Gilberto Vasconcelos contou que um dos seus codinomes era “Ruivo”, Espinosa não perdeu a oportunidade de fazer uma gozação: “Isso não era codinome, era descrição”. Giba foi em frente: “Nós estamos aqui hoje não é para discutir a revolução. Eu acho que aqui nós estamos para falar de amor, de amizade, de pessoas de bem, de ética. Nós temos aí um governo que nos representa, representa o que nós pensávamos, o que nós gostaríamos, não exatamente o que a gente queria, mas com aquela garra que a gente queria e, de alguma maneira, fomos vitoriosos e temos de falar disso, eu acho. É do amor, é da amizade, é da ética na política, uma coisa em que o Brasil tem melhorado e vai melhorar mais. Eu acho que o Brasil está melhorando. Quero agradecer imensamente ao Espinosa por não nos esquecer. Porque a questão do esquecimento é mais séria que as propostas futuras. A gente não pode esquecer nem o que você foi nem o que você quer ser. Eu quero ser isso que nós somos hoje. Se pudéssemos nós todos aqui montar um partido político pensando com os ideais que nós tínhamos, teríamos um Brasil melhor, mas com a esquerda que nós tínhamos, atomizada do jeito que era, separada do jeito que era, utópica do jeito que era, nós não construiríamos um bom país”.

O baiano Carlos Sarno falou de subversão: “A coisa mais importante que a gente tem de fazer aqui é a celebração da amizade. É a amizade que está fazendo história, não a história que está fazendo amizade. E não tenho medo de falar que a gente fez muita coisa por amor, não é preciso ter vergonha de dizer isso. Eu acho que isso foi, no fundo, o que juntou todos nós no mesmo projeto. Somos libertários. Continuamos subversivos. Foi essa mistura de fraternidade, de amizade e de subversão que nos trouxe até aqui. É muito importante a gente estar junto. Eu acho que esse sentimento nosso de subversão, de busca da liberdade, de busca de uma sociedade mais justa e fraterna, é o grande patrimônio que nós temos”.

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Rui Falcão acha que a esquerda não perdeu a guerra contra a ditadura. “A luta de classes promoveu um operário ao posto máximo da República, e a luta revolucionária conduziu uma mulher à Presidência da República.” Mas faz ressalvas: “Ganhamos o governo, mas há várias instituições que não estão submetidas ao voto popular. E uma das coisas que falta para a democracia prosperar, é uma reforma profunda do Estado, que mexa com o Judiciário, que mexa com o Ministério Público, que dê maiores condições de exercício de poder pelo Executivo, que parece forte, mas não é. E principalmente uma democratização dos meios eletrônicos. Nós aprendemos que para fazer uma revolução é preciso que as ideias que defendemos sejam dominantes na sociedade. Fizemos um grupo pequeno, de vanguarda, imaginando que fosse possível com o nosso exemplo arrastar milhões. Isso não deu certo. E agora é preciso arrastar milhões pela formação, pela elevação do nível de consciência das massas populares. É esse trabalho que o PT procura fazer e no qual eu estou empenhado”.

“Nós não chegamos onde queríamos”, disse Espinosa, “que era o socialismo, que era a democracia como forma de organização do Estado, em que cada cidadão, de fato, detém uma parcela, uma fração ideal do poder. Não chegamos a isso. Mas eu, pessoalmente, tenho dúvidas se este País teria se redemocratizado sem a luta armada no geral e sem aquilo que a VAR-Palmares fez no particular”.

Ellwanger cantou, à capela, o hino da VAR, que compôs no congresso de Teresópolis, onde ela surgiu: “Adeus compadre vou subir a serra/Vou lutar a guerra da libertação/Adeus comadre vou subir a serra/Vvou livrar a terra/da exploração…”.

E a paródia de País Tropical que Dilma compôs em parceria com Carlos Alberto Soares de Freitas, especialmente para zoar com a cara do Lamarca e que ela cantou ao lado do parceiro no congresso de Teresópolis: “Este é um congresso tropical/Abençoado por Lênin/E embananado por natureza…/Em fevereiro tem Juvenal/tem capitão…”.

Juvenal era um dos codinomes de Lamarca. Capitão era outro. 


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