Os crimes eram estranhamente parecidos e ocorriam em estados vizinhos. E eu, como leitora fanática de jornais e histórias policiais, me perguntava, até 2004, se ninguém havia pensado que os crimes podiam ser ação de um serial killer. Muita imaginação? Talvez, mas naquela época eu ainda não tinha me envolvido tão profundamente com o assunto. Ademais, os “criminosos” já estavam presos: sete pessoas foram acusadas pelo assassinato de 42 crianças e adolescentes, todos meninos, em Altamira, no Pará, entre elas dois médicos e uma “bruxa”, envolvidos em história de rituais de magia negra com perícia cirúrgica. Certamente, os corações se acalmaram, já que tudo parecia fazer sentido, menos as mortes semelhantes que continuaram a ocorrer no Maranhão até dezembro de 2003, quando Francisco das Chagas Rodrigues de Brito foi preso e, no ano seguinte, confessou toda a série de crimes ocorrida em Altamira, onde morou até 1993, e no Maranhão.
O significado de sósia é “cópia humana”. Sósia é personagem da comédia Amphitrião, de Plauto (235 a.C. -184 a.C., comediógrafo romano), de quem Mercúrio, o deus, copiou as feições temporariamente. Mas aqui, no Brasil, trata-se de tragédia. Como um erro tão cruel pode acontecer? Fácil resposta ao descobrir a semelhança física entre assassino e inocente. Agostinho José da Costa, por volta de seus 74 anos, foi testemunha ocular de um dos crimes de Francisco das Chagas: o do menino Jaenes da Silva Pessoa, castrado e morto aos 13 anos, em 1992. Disse ter visto o assassino saindo de uma mata com um facão sujo de sangue. Em julho do ano seguinte, na delegacia de Altamira, Agostinho reconheceu Césio, sem sombra de dúvida.
Césio foi a julgamento em setembro de 2003 com outros réus – o médico Anísio Ferreira de Souza foi condenado a 57 anos e está preso no Centro de Recuperação Prisional do Pará, na mesma cela de Césio, e a vidente Valentina Andrade Viana, que foi absolvida em dezembro de 2003 e cujo processo acabou prescrito por ela ter mais 70 anos. Os jurados condenaram Césio com convicção, depois de Agostinho (dez anos depois) reconhecê-lo em plenário. Só que, em dezembro daquele mesmo ano, foi preso Chagas, de quem acompanhei as confissões e todos os detalhes da investigação. Conversei com ele horas a fio, sem algemas, livremente. E Chagas me contou com pormenores como assassinou cada criança em Altamira. E agora?
A revisão criminal desse caso aguarda ser colocada em pauta pelo Tribunal de Justiça do Pará. Está amparado pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, presidida pelo pastor Marcos Feliciano, solidário com o sofrimento das famílias que vivem os resultados dessa macabra coincidência. Conta com o apoio do senador Magno Malta, que ouviu a confissão do próprio Chagas na CPI da Pedofilia, que presidiu em 2008. Quando o caso foi apresentado à comissão, em novembro deste ano, todos ficaram consternados ao ver as fotografias de ambos. Esse pode ter sido o maior erro judiciário já cometido pela Justiça brasileira. Mas, certamente, não é o único.
Entre 1989 e 2011, por iniciativa da ONG americana Innocence Project, os EUA exoneraram mais de 300 condenados por crimes violentos, por meio de exames de DNA. O projeto tem como finalidade a reabertura de casos de pessoas condenadas injustamente, que não têm recursos financeiros para pagar sua defesa. A cada nova exoneração, questões importantes do sistema judiciário americano são explicadas à imprensa, com o objetivo de aclarar as razões que levaram a Justiça a cometer uma injustiça. Assim, após cada exoneração, temas como a falibilidade do reconhecimento de suspeitos, o uso impróprio da ciência e falsas confissões aparecem frequentemente. Outras causas de erros são dolo ou negligência grosseira de agentes do governo (policiais, delegados e promotores de Justiça), e utilização de informantes e advocacia deficitária. Esses problemas estão sendo expostos e discutidos por boa parcela da sociedade americana.
Com esse know-how, há motivos para crer que, adaptando-se o Innocence Project para a realidade jurídica brasileira, há espaço para obter absolvições de pessoas inocentes “de fato” – não as absolvidas por falta de provas. Se há inocentes sem voz, encarcerados no mundo, que o projeto deu reconhecimento e defesa, certamente existem aqui também. Por isso minha pesquisa agora também se concentra nos inocentes presos em cadeias brasileiras.
A América Latina está adaptando Innocence Project para seus países, formando hoje o Red Inocente. É esse o projeto no qual estou envolvida, junto com outros profissionais brasileiros e americanos, formando uma equipe multidisciplinar (advogados criminalistas, biólogos, geneticistas, peritos e criminólogos). Com essa chancela, será possível, com recursos governamentais ou não, a montagem de laboratório independente (acreditado pelo Inmetro) e contratação de técnicos fora dos quadros estatais, ambos isentos de qualquer interesse institucional. Assim, a repetição do raciocínio filosófico trará a repetição dos resultados: serão desfeitas as fronteiras geográficas que em tese nos cercam.
Preste atenção no caso de Adão Manoel Ramires, ocorrido no Rio Grande do Sul: em 1995, ele foi condenado a oito anos de reclusão, sob a acusação de estuprar uma mulher de 24 anos com problemas físicos e mentais. Ela ficou grávida de gêmeos, e Ramires foi apontado como pai das crianças depois do depoimento da vítima e por meio de um exame chamado GSE − Grupos Sanguíneos Eritrocitários, que apontou 60% de chance da paternidade. Ramires, que era viúvo e pai de dois filhos, cumpriu cinco dos oito anos – só saiu em 2000 por ter prestado serviços carcerários. Em 2001, um novo exame (dessa vez de DNA) revelou a inocência de Ramires. O processo criminal durou mais de dez anos. Ironicamente, dez anos depois, em 2011, Ramires foi brutalmente assassinado por motivos desconhecidos. I
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