O cheiro de feijão com toucinho sendo cozido no fogão a lenha invade o lugar. É quase hora do almoço. Sentada num banco embaixo de uma das dezenas de árvores ao redor de sua casinha simples, Tia Aninha apóia-se na bengala. Os raios de sol atravessam frestas entre as folhas verdes e a luz toca o rosto que 70 anos de idade não conseguiram marcar com rugas. Na cabeça, um lenço, amarrado feito turbante, lembra as imagens das velhas escravas dos filmes e novelas. Altiva, cintura reta, Ana Teresa Barbosa da Costa é praticamente desconhecida pelo nome que recebeu na pia batismal. Acostumada a ser chamada de tia por todo mundo, ela é a mais antiga moradora do Quilombo Brotas, em Itatiba, na região de Campinas, interior de São Paulo, o primeiro em área urbana a ser reconhecido oficialmente no País. Tia Aninha tornou-se uma espécie de matriarca do lugar: bisneta do casal que iniciou a história desse quilombo, ela guarda a trajetória de seu povo e distribui a bênção diária a todos os moradores.

Envolvido pelo crescimento urbano e delimitado por ruas do Jardim Santa Filomena, na periferia da cidade, o quilombo tem uma área aproximada de 120 mil metros quadrados, onde vivem cerca de 150 pessoas, em 34 casas, cuja arquitetura lembra a imagem simples de qualquer bairro pobre. Perto dali, também se ergue um condomínio de alto padrão, aquecido pelo crescimento do mercado imobiliário dos últimos anos. O Quilombo Brotas, que ganhou o nome por causa das cinco nascentes que existem no local, tem um século e meio de história e uma particularidade. Diferente da maioria das áreas que acomodavam negros que fugiam das fazendas, o quilombo de Itatiba é fruto de uma compra que demorou pelo menos 30 anos para ser concretizada. Como na memória nem sempre os dados são precisos como seriam num papel, sabe-se apenas que no final da primeira metade do século XIX, um casal de escravos, Emília e Isaac Lima, depois de alforriados, pensando ter um lugar para morar, começou a juntar o dinheiro que conseguiam em pequenos trabalhos, como na venda de doces pelas ruas. A aquisição das terras, ao que se sabe, ocorreu em 1879 e, depois da abolição da escravatura, em 1888, o lugar tornou-se moradia de muitos negros que não tinham para onde ir. Emília e Isaac tiveram uma filha: Amélia, que é avó de Tia Aninha. Conforme eles juntavam os trocados, tudo ia sendo colocado num baú, até hoje preservado como relíquia no quilombo. Está na casa de Tia Lula, uma mãe-de-santo falecida em 2006, mas que tem sua morada preservada no ponto mais alto de Brotas. Tia Aninha tem um sobrenome que, por lá, quase todo mundo também carrega.
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Pelas casas de tijolos vermelhos, sem reboco, com pé-direito baixo e telhas de amianto, construídas cá e lá, em quintais delimitados por cercas verdes, bambus ou simplesmente arames, a grande família Barbosa se esparrama. Só não assinam o sobrenome algumas poucas mulheres que se casaram com homens de fora ou então quem faz parte de famílias que, numa época sem normas para se construir uma casa nas terras do quilombo, aproveitaram para garantir um teto para morar. “São todos bem-vindos. A terra não fica com nada do que é dos outros. Tudo que a gente planta, ela devolve depois, muito melhor. Você faz um buraco, coloca uma rama, o tempo passa e tem mandioca pra matar a fome”, diz Tia Aninha. Desde que foi reconhecido oficialmente, quem quiser se mudar para lá precisa comprovar que tem algum parentesco com os Barbosa, já que a isenção de impostos, concedida por lei federal a áreas ocupadas por quilombolas, é um chamariz. Também nenhuma área pode ser comercializada.

Durante muito tempo, Brotas foi ignorado pelos órgãos que lutam pela preservação do patrimônio cultural do País. O local só foi reconhecido como quilombo pela Fundação nstituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp) em 2004. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) só o fez há dois anos. “Ficamos esquecidos pela própria falta de articulação das pessoas que vivem aqui. Não havia uma organização”, conta Rosemeire Barbosa, presidente da Associação Cultural Quilombo Brotas, criada em 2006 para recuperar a cultura e lutar por melhorias no local. Um livro já foi lançado com as histórias do quilombo: Guardiãs da História, coordenado por Rosemeire, reconta a trajetória desse povo a partir do olhar das mulheres que vivem no local. “Quando morre um idoso aqui, dizemos que uma biblioteca está indo embora”, diz.

A renda das famílias que vivem no quilombo dificilmente ultrapassa um salário mínimo. A maioria dos homens trabalha como serventes de pedreiro, borracheiros ou vigias. As mulheres, quase todas, ocupam-se em casas de família. Rosemeire, por exemplo, é acompanhante de uma idosa. “Dá para viver bem. A gente não paga aluguel, tem água do poço e bastante espaço para as crianças crescerem”, afirma Sandra Regina Barbosa, 34 anos. Enquanto o sol está no céu, o quilombo fica praticamente vazio. Fora os mais idosos, só resta a garotada que passa o dia se divertindo no pingômetro – um conjunto de bancos, feitos com galhos retorcidos, localizado embaixo de mangueiras frondosas, onde, no passado, os homens se reuniam após o almoço para molhar as palavras de uma boa prosa num belo aguardente. Por sinal, pés de cana-de-açúcar também resistem por lá.

Mulheres
Não é sem motivos que o livro sobre a história do quilombo foi escrito sob a ótica das mulheres. O sexo feminino sempre teve destaque por lá. O respeito à Vó Amélia, que ajudou os pais a juntar o dinheiro para a compra da área, é prova disso. “Minha avó falava que as mulheres precisavam estar sempre preparadas. Dizia que, antes de se casarem ou trabalhar fora, tinham de fazer um quartinho e guardar alimentos que não estragassem, como arroz e feijão. Se não desse certo, era só voltar, que fome não passava”, lembra Tia Aninha, que nasceu no quilombo. Ela foi parteira, trabalhou como empregada doméstica em São Paulo e voltou para Brotas em 1978. Viúva há cerca de um ano, não teve filhos. “Minha avó sempre foi pobre, mas nos incentivou a tudo nesse mundo. Ela, inclusive, lutou para que todos os filhos e netos estudassem.” A garota Franciane Araújo, de 12 anos, adora ouvir as histórias contadas pela matriarca, como aquela que diz que a Vó Amélia não queria se casar. Mas, pressionada pelos pais, tornou-se esposa de Fabiano Barbosa, que acabou dando seu sobrenome ao povo do quilombo. “Os negros e os pobres, naquela época, não usavam sapatos. Mas ela desafiou todo mundo, conseguiu dinheiro e se casou com calçados, igualzinho moça rica”, conta a garota.

Há também o legado de Maria Emília Barbosa Gomes, a Tia Lula, que é um misto de respeito e medo. Sua casa está intacta. Móveis, roupas e objetos estão preservados. Faz mais ou menos uma década que o quilombo se tornou um território para visitas freqüentes de pastores neopentecostais, que já arrebanharam a maioria dos moradores. Desde então, a casa da mãe-de-santo virou um lugar do qual ninguém gosta muito, mas todo mundo cuida, seja por medo dos orixás, confundidos com assombração ou coisa do diabo, ou por respeito àquela que criou o terreiro do quilombo, na década de 1950. O chão é mantido limpo e tudo está em ordem. Numa das paredes da cozinha, uma curiosidade. A mãe-de-santo tinha o hábito de colecionar canecas e xícaras, e estão todas penduradas nas paredes. Do lado da casa da líder religiosa, está a tenda onde eram realizados os trabalhos. Tudo intacto. “Tia Lula encarava a umbanda com muita responsabilidade. Apesar de ter feito vários filhos-de-santo, não encontrou ninguém com capacidade para substituí-la”, explica Rosimeire. Por mais que a casa seja a mais espaçosa do quilombo, ninguém quer ser mudar para lá. “Tenho medo de assombração”, diz Cláudia Araújo, de 34 anos. Pela mata que se avizinha, está preservada a linha dos altares, trilhas em que há vários oratórios, com imagens de santos católicos que representam os orixás e diante das quais eram feitas as oferendas. Nossa Senhora Aparecida está na beira do riacho, território preferido de Oxum, o orixá que ela representa no sincretismo. São Sebastião está no meio da mata, onde mora Oxóssi. “Quando uma imagem cai, ninguém levanta. Não é bom mexer com essas coisas”, conta a menina Franciane. Durante uma das faxinas na casa de Tia Lula, alguém sem ligações com as crenças jogou dezenas de imagens quebradas de santos, caboclos e pretos-velhos, as entidades da umbanda, dentro de um poço inutilizado. “Isso foi um erro. Precisamos encontrar uma mãe-de-santo para despachar isso em água corrente, com as orações necessárias. Senão, pega toda a carga negativa”, explica Rosimeire, que é evangélica. Contradição em seu discurso? Parece que não. “Ninguém sabe o que, de fato, perde, antes de ter perdido”, diz ela, reproduzindo uma frase que aprendeu com Tia Aninha.

O QUE DIZ A LEI
A quantidade de comunidades remanescentes de quilombos no Brasil é um dado bastante discutido. Entidades ligadas às questões raciais, como a Fundação Palmares, indicam que podem existir até cinco mil grupos quilombolas no País. Uma pesquisa da Universidade Federal de Brasília (UnB), no ano passado, conseguiu mapear cerca de metade disso, o que representa quase dois milhões de pessoas. A Constituição de 1988 assegura o direito à terra aos quilombolas que consigam comprovar suas origens. Leis mais recentes também concedem benefícios, como a isenção do Imposto Territorial Rural (ITR). Para isso, é necessário o reconhecimento oficial pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). O processo é demorado, exige demarcação de terras, análise histórica e desapropriações. Uma das principais dificuldades, principalmente em áreas rurais do Nordeste, é a briga com fazendeiros que chamam para si o direito às terras. Até agora, só cerca de apenas 80 áreas estão oficializadas pelo Incra.

Melhorias
Desde que foi reconhecido oficialmente, a relação do quilombo com a cidade mudou. Como os próprios moradores relatam, até o poder público, que antes não dava muita importância ao local, começa a se preocupar com a sua preservação. A prefeitura de Itatiba e a Universidade São Francisco (USF) mantêm uma parceria com o quilombo, o que facilita a solicitação de verbas estaduais e federais para as desejadas obras de saneamento básico, recuperação das características originais das casas e até a instalação de aquecedores solares. Alunos e professores já começaram a fazer o levantamento das características do local e das estratégias de melhoria. Originalmente, todas as moradias do quilombo foram construídas em taipa, utilizando a técnica do pau-a-pique. Essas casas, no entanto, foram derrubadas nas décadas de 1930 e 1940, em ações de higienização contra o barbeiro, vetor da doença de Chagas. Sem consertos periódicos, os buracos nas paredes de barro tornavam-se pontos de proliferação do mosquito. Desde que a associação cultural foi fundada, o quilombo já recebeu várias melhorias. Por meio de convênios, foi instalada uma sala para alfabetização de adultos e cursos de informática, onde os moradores têm aulas com alunos da própria USF. Uma biblioteca, montada a partir de doações, também está em funcionamento e a documentação de Brotas está em trâmite. Depois de conseguirem implantar o saneamento básico e melhorar a infra-estrutura do local, o objetivo é transformar o quilombo em um ponto turístico, com programação voltada à divulgação da cultura afro-brasileira. A primeira providência para isso está quase pronta: uma casa de pau-a-pique, réplica da residência de Vó Amélia, que vai se transformar em um museu, assim como a casa de Tia Lula.


Comentários

3 respostas para “Quilombo urbano”

  1. Parabéns pela matéria!
    Há visitação do quilombo?
    Há um museu ou equivalente onde se possa conhecer melhor as características da vida, usos e costumes dos antigos escravos e ou seus descendentes?
    Grato

  2. Avatar de Maria Eduarda
    Maria Eduarda

    Adorei,parabéns para quem escreveu, agora sei muito mais sobre o Quilombo de minha cidade e que Deus abençoe a todos que moram lá.

  3. Avatar de Karlla Maiama
    Karlla Maiama

    Muito bom !!
    parabens para quem escreveu isso..

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