“Lívia e o Cemitério Africano”

liviaCom poucos elementos – um arquiteto em crise, um rapaz com doença degenerativa, uma traficante de fósseis (a Lívia do título) e uma senhora perdendo a lucidez –, e poucas palavras, dispostas em parágrafos curtos, separados por grandes espaços em branco, Alberto Martins consegue dizer muita coisa. Cada frase em sua prosa aparentemente simples, isenta de artifícios, contém um veio poético subliminar e intensidade de reflexão.

Assim, o arquiteto/narrador se vê numa encruzilhada. Sentindo-se fútil com o tipo de trabalho para o qual é normalmente chamado – casas, escritórios e lojas para ricos e “chiques” –, recebe a visita inesperada da viúva de seu irmão. Ela lhe pede que cuide do sobrinho, um adolescente calado, cuja estrutura física vai definhando com o tempo. Paralelamente, ele se vê às voltas com a memória de sua mãe, que está por um fio. Cada personagem vive um tipo diferente de precariedade e tem obstáculos difíceis a transpor.

No desenvolver da história, surgem as gravuras de Martins. Normalmente, uma ilustração não tem uma função complementar ao texto, mas não é o caso em Lívia e o Cemitério Africano, em que texto e imagens formam um mapa ficcional e visual de estranha coerência. Se a prosa seca pode lembrar o gesto da goiva, os sulcos das gravuras têm algo das vias tortuosas dos personagens.

A trama é rica de sentidos (e falta de sentidos). Seu narrador tenta reconstruir a própria vida com os cacos de memória da mãe, que remontam à Segunda Guerra, na Itália, e os cacos que consegue compreender na fala quebrada do sobrinho. É como se sua arquitetura sentimental tivesse de se erguer em um terreno arqueológico e ao mesmo tempo frágil. Um belo livro.

Lívia e o Cemitério Africano, Alberto Martins, Editora 34, 156 páginas

 


Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.