Na última semana a revista Época São Paulo publicou reportagem de capa intitulada “Faixa exclusiva de ônibus: Haddad achava mesmo que o paulistano deixaria o carro em casa?”, com a seguinte linha-fina: “Por que a ideia deu errado e o que pode ser feito para melhorar o trânsito na cidade”. Após menos de um ano da gestão do novo prefeito, a revista decretou que a construção dos corredores havia falhado em sua missão de melhorar o trânsito da cidade.
Jornalista dedicada ao debate sobre urbanismo e mobilidade e criadora do projeto Cidades para Pessoas, Natália Garcia, 30, viu no texto uma série de argumentos falhos, além de um uso tendencioso de informações, e decidiu escrever uma resposta à revista. O texto “Resposta aberta à revista Época São Paulo”, publicado nesta semana na internet, teve rápida e gigantesca repercussão nas redes sociais – “a maior da minha vida”, diz Natália – ao colocar em questão tanto as críticas apressadas aos corredores de ônibus quanto os métodos jornalísticos utilizados pela reportagem.
Pois Natália tem repertório de sobra para discutir o assunto e muita disposição para fazê-lo. Não à toa, concebeu em 2010 o Cidades para Pessoas, “a partir de uma vontade de viajar o mundo, e entender como as cidades podem ser melhores para todos”. Por meio de financiamento colaborativo (Catarse) e em parceria com artista plástica Juliana Russo conseguiu colocar o projeto de pé e realizar viagens pelo mundo, que resultaram em diversas publicações da dupla.
“Fui muito inspirada por um urbanista dinamarquês, Jan Gehl, que tem um livro chamado Cities for People, que diz que a gente sabe tudo sobre o habitat ideal de qualquer mamífero, menos do homo sapiens, e que não é nisso que a gente está pensando ao construir as cidades”, diz Natália, que além de colaborar com diversas publicações, realiza palestras e participa ativamente de debates pelo País.
Para repercutir a reportagem de Época, a carta de resposta e saber mais sobre o Cidades para Pessoas, a Brasileiros entrevistou a jornalista. Leia aqui:
Brasileiros – O Cidades para Pessoas publicou uma resposta aberta à revista Época que teve uma repercussão enorme? Alguém da revista se manifestou?
Natália Garcia – Não. Eu gostaria que tivessem se manifestado, porque o que eu queria com o texto não era jogar tênis com eles, era jogar frescobol. Eu queria que eles acertassem a bola pra continuar essa conversa. O fim da história não é provar que eles estão errados, é promover um debate.
Brasileiros – A matéria da Época questiona a construção do corredores em São Paulo com argumentos que vocês desconstroem na carta. Parece ser um exemplo de jornalismo malfeito ou realmente algo tendencioso, que quer provar uma tese a qualquer custo?
N.G – A sensação que eu tenho é que o texto toca em pontos importantes. Por exemplo, o fato de que têm corredores que são criados sem a melhor execução possível e sem um acompanhamento de uma redistribuição das linhas do transporte público. Agora, a percepção das pessoas é muito determinante pra dizer se uma coisa deu certo ou errado. Quem está dentro dos carros tem certeza que deu errado. E acho que eles pegaram um ponto de vista da história e sacramentaram. E acho isso precoce. Parece que eles reúnem uma série de argumentos a favor de uma tese preestabelecida. Não é uma reportagem que foi apurar o que está acontecendo. Então eles escolheram os dados que queriam e omitiram os que não queriam.
Brasileiros – Como acontece muito no jornalismo…
N.G – Exatamente. Acho que é o exemplo da Veja que está fazendo escola. Reportagens a favor de teses. E é uma pena, porque a Época já fez ótimas matérias de urbanismo.
E você vê nesse caso um tom político, algo contra a gestão petista?
N.G – Eu não sei. Não acho que é impossível, mas não me sinto qualificada para dizer. Mas eu tento evitar cair nessa coisa partidária, porque a mobilidade deveria ser uma discussão maior do que isso.
Brasileiros – E como você avalia o projeto da prefeitura para os corredores de ônibus?
N.G – Eu defendo a criação de corredores. E defendo que esse projeto esteja o tempo inteiro em análise. Nesse sentido, acho que tem pouca gente medindo o resultado, o que deveria estar sendo feito com mais frequência. Mas defendo. Com base em entrevistas que fiz com todos os urbanistas que eu encontrei no caminho – gente de Copenhagen à Cidade do México –, o melhor caminho para São Paulo são as faixas de ônibus, pelo menos em um primeiro momento.
Primeiro por representarem a opção mais rápida e barata de aumento da rede de transportes públicos, duas qualidades necessárias em uma cidade que pede urgência como São Paulo. Segundo porque reequilibram as vias e tiram espaço dos carros. Isso, por sua vez, deve reequilibrar a demanda e tirar dos carros as pessoas que não precisam estar neles, para que sobre espaço para as que precisam. É claro que também precisamos das linhas de metrô planejadas para a cidade, mas elas levam mais tempo para serem construídas. Gosto de uma frase de um urbanista que diz que a melhor cidade, do ponto de vista da mobilidade, é a que tem mais opções.
Mas é importante entender que mobilidade não se resolve só com mobilidade. Linhas de metrô e até mesmo os corredores de ônibus provocam uma valorização imobiliária no entorno e empurram mais gente para morar nas periferias. É preciso combinar políticas nessas duas áreas para um resultado efetivo de uma cidade melhor para todos.
Brasileiros – E a Época não procurou mostrar estes outros argumentos…
N.G – Parece que a reportagem da Época parte da premissa de que a geração de trânsito implica em erro de projeto, enquanto na verdade estamos em uma fase de transição. A gente poderia tentar resolver a mobilidade seguindo a inércia de construir mais espaço para os carros, como o que vem sendo feito com pontes, avenidas, alargando a marginal Tietê, etc. Há uma engrenagem financeira que movimenta esses investimentos em infraestrutura para os carros. Por exemplo: os maiores financiadores de campanhas políticas são justamente as empresas do mercado imobiliário, setor contratado para a construção dessas vias. Acho que a criação em rede massiva de corredores de ônibus pode ser um caminho para quebrar com essa inércia.
Brasileiros – A mobilidade através da bicicleta também é um tema bastante discutido nas suas matérias. Como ela entra nesse debate? É uma alternativa viável em São Paulo?
N.G – Sim, é 100% viável. Ela é parte da resolução do problema da mobilidade. Não acho que é a parte prioritária, mas é importante. E um dos jeitos é integrar ao sistema que já existe de transporte. Não dá pra dizer que uma pessoa vai sair da Zona Leste e ir para o centro todo dia de bicicleta. Mas com bicicletários, com o sistema de bike sharing etc, você começa a ampliar o repertório de possibilidades.
E se você olhar para a bicicleta do ponto de vista da mobilidade de forma interdisciplinar, ela deixa um legado muito bom para a cidade. A pessoa que usa bicicleta, além de não poluir está se exercitando, o que significa que ela onera menos o sistema de saúde pública. E ela precisa de uma infraestrutura per capita muito mais barata. Além disso, induz as pessoas a terem uma experiência mais interessante com a cidade.
Brasileiros – Enquanto jornalista que trabalha com questões de mobilidade urbana, como você avalia o debate sobre esse tema na mídia brasileira? É muito pobre?
N.G – Deixa a desejar. Acho que a mídia ainda tende a discutir mobilidade como quem discute futebol. Carro contra bicicleta, contra ônibus etc. Não acho que faltam jornalistas competentes, acho que a lógica do modelo de negócio que está em crise no jornalismo impõe uma cobertura muitas vezes exagerada, para dar leitura, e não ajuda no debate.
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