Vivo na memória

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Desde o quinto aniversário da tragédia do 11 de Setembro em 2006, cerca de 500 pessoas se registram nos programas de saúde do governo por mês. De acordo com estimativa do Instituto Nacional de Saúde e Segurança Ocupacional americano (NIOSH), o total de registros excede 37 mil e pode chegar a 65 mil em dois anos. A demanda é tão grande que a lista de espera para novos exames demora três meses.*

Cerca de metade dos trabalhadores registrados está com problemas respiratórios e um quarto, com problemas relacionados a estresse mental. Hoje o governo americano gasta cerca de US$ 6 milhões por mês para tratar os trabalhadores do 11 de setembro. Ainda segundo o NIOSH, o custo pode subir para US$ 20 milhões mensais até o final deste ano, uma estimativa baseada nos registros de um consórcio médico formado por cinco hospitais em Nova York e Nova Jersey. O maior deles, o Mount Sinai Medical Center, anunciou que, dos 40 mil trabalhadores examinados, 33 mil estão doentes. Para um oficial do governo entrevistado pelo jornal The New York Times, que trabalhou no documento, mas pediu para não ser identificado, o número mostra a deterioração da condição da saúde e a inadequação orçamentária. “O que interessa é que as pessoas estão doentes e não estão melhorando”, diz.

A senadora Hillary Clinton e os representantes do Congresso Carolyn Maloney e Vito Fossella propuseram uma emenda orçamentária que prevê o aumento de US$ 90 milhões para o tratamento dos trabalhadores do 11 de setembro e dos residentes ao redor do Ponto Zero. O programa seria financiado pelo Centro de Controle de Doenças e conduzido em parceria por organizações trabalhistas, pelo Estado e pela prefeitura de Nova York. A emenda foi aprovada em julho e está esperando assinatura do presidente George W. Bush. Mas o valor ainda é pequeno demais se comparado com as estimativas do NIOSH. Segundo o instituto, os gastos devem chegar a US$ 195 milhões só até o final deste ano e a US$ 428 milhões em dois anos. 

O paulistano Wellington da Silva Canova, hoje com 31 anos, já não teve a mesma sorte. No momento em que a primeira das torres gêmeas caiu, Wellington seguiu para o Ponto Zero. Ele trabalhava como paramédico, mas para uma afiliada do FDNY chamada Metrocare. Ele estava procurando vítimas quando a segunda torre caiu e teve de mergulhar debaixo de uma van para se proteger. Assim que a poeira baixou, encontrou uma senhora de 68 anos que havia parado de respirar. Com um balão de oxigênio, o treinamento de reanimação cardiopulmonar e a experiência de dois anos tratando de casos de emergência, conseguiu salvá-la. Passou mais cinco dias procurando sobreviventes e encontrando apenas partes de corpos – “um pé com salto alto, uma cabeça com o braço direito, uma perna pela metade”.

Três meses depois, já não conseguia se concentrar no trabalho. Os pesadelos com aviões entrando pela porta do quarto e os flashbacks de pessoas pulando das torres ficaram mais fortes. Quando se deu conta, Wellington estava dependendo do seguro-desemprego, do seguro-saúde público e das pílulas de Prozac recomendadas pelo médico. O diagnóstico: síndrome de estresse pós-traumático. Em dois anos, perdeu o emprego, o carro, o apartamento e a saúde mental. Sua mulher pediu divórcio e levou seus dois filhos. 

“Entrei em depressão e minha vida ficou um desastre”, diz o residente de Astoria, Queens. “Parecia um retardado, não falava coisa com coisa, mas o pior aconteceu em março de 2002 quando meu filho engasgou com um bonequinho de plástico. Mesmo sendo paramédico, não sabia o que fazer; fiquei besta, um inútil, olhava para ele e chorava.” Wellington Júnior, então com apenas 6 meses, foi socorrido por outros paramédicos chamados por telefone. “Ele quase morreu.”

Desde então, desistiu da carreira de paramédico. Passou um ano e dez meses no Brasil, onde tentou abrir um restaurante com a mãe em Londrina (PR). Voltou para Nova York. Entrou com uma ação de indenização trabalhista. Conseguiu um emprego como segurança e motorista particular. E agora trabalha como caçador de recompensas para o U.S. Recovery Bureau, que presta serviços para o governo americano.

Filho de um delegado da Polícia Civil de São José dos Campos (SP), Wellington veio morar com o tio em Nova York depois que seu pai foi assassinado. Ele tinha14 anos. Hoje ele passa as madrugadas procurando suspeitos foragidos da justiça e as tardes estudando para realizar o sonho de entrar na Unidade de Serviço de Emergência do Departamento de Polícia de Nova York (ESUNYPD). O teste cai no dia do aniversário de um de seus filhos, 28 de outubro. Wellington tem quatro: Steven, 8 anos, e Caitilyn, 6 anos, do primeiro casamento com uma americana chamada Elizabeth, e Wellington Júnior, 6 anos, e Justin, 3 anos, do segundo casamento com uma equatoriana chamada Zeneida.

Apesar do trauma que o deixou arrepiado durante a sessão de fotos no Ponto Zero, Wellington ainda tem vontade e saúde suficientes para exercer uma profissão. Outros heróis não conseguem mais trabalhar. O voluntário Vito Valenti, 42 anos, por exemplo, precisa de um transplante duplo de pulmões e passa o dia respirando através de tubos de oxigênio. O investigador Alan Forcier, 48, depende de 15 remédios diários para depressão. O policial Glen Klein, 48, sofre de graves problemas digestivos. Os faxineiros Alex Sanchez, 40, e Manuel Checo, 55, têm asma e outras complicações respiratórias. E o coordenador de demolições John Feal, 34, em decorrência de um acidente no Ponto Zero, chegou a ser operado dezenas de vezes e acabou perdendo o pé.

Nuvem de fumaça

Vito Valenti trabalhava numa escola perto do Ponto Zero. Ele ouviu a explosão do avião batendo na torre norte, mas pensou que fosse o ar-condicionado. Só percebeu que a situação era séria quando o computador começou a piscar e os vizinhos correram para a frente do prédio. “Eu poderia ter ido para casa, mas, depois que o segundo avião bateu, vi uma senhora caída no chão e não pude abandoná-la daquele jeito”, conta. “Quando as torres caíram, fiquei preso numa nuvem de fumaça junto com um policial. Ele me perguntou se estávamos no céu. Respondi que não, porque ainda não tinha chegado a nossa hora.”

O nova-iorquino descendente de italianos explica que gostaria de ter podido ajudar mais que dois dias, “mas não conseguia parar de pensar nas pessoas pulando das torres em pencas, batendo contra a lateral do prédio, antes de se espatifarem no chão”.

Mesmo assim, a péssima qualidade do ar provocou-lhe asma, fibrose pulmonar, obstrução das vias aéreas, alargamento do coração e problemas circulatórios. Ele toma 26 remédios por dia e há cinco anos dorme sentado na poltrona da sala porque não consegue respirar deitado.

A capacidade pulmonar de Vito está tão baixa que, em maio, faltou-lhe ar ao subir os 14 degraus que levam para a porta de sua casa em Long Island, Nova York, onde mora com o pai e o filho Joseph, de 19 anos. Ele desmaiou, rolou escada abaixo e quebrou dez ossos, incluindo o quadril, a clavícula, vértebras e costelas. “O médico falou que tive muita sorte. Se eu tivesse perfurado o pulmão ou quebrado o pescoço, poderia ter morrido”, conta.

Para entrar na lista de espera por pulmões novos do Mount Sinai, Vito precisa perder 23 kg. “Já perdi 22 kg porque não conseguia comer quando voltei do hospital, mas ainda peso 114 kg. O problema é que não posso fazer exercício e só dieta não funciona.” Além disso, já teve de disputar benefícios com seu seguro-saúde, que, por um período, parou de pagar pelos remédios e tubos de oxigênio. “O que me deixa bravo é que terroristas presos em Guantanamo Bay [base militar americana em Cuba] recebem melhor tratamento médico do que nós”, diz em referência ao documentário Sicko, de Michael Moore, do qual participou.

“Deveríamos ter um sistema social de saúde como o da França, em que, não importa qual seja sua doença, o governo paga. Não podemos ter algo assim aqui por que a indústria farmacêutica vai perder dinheiro?”, pergunta Vito. “Deveríamos pelo menos ter mais orçamento para que novos nomes não sejam adicionados à lista de vítimas do 11 de setembro. O que é mais importante? A construção de um estádio novo? A linha de trem para o aeroporto? Ou tratar os trabalhadores do 11 de setembro com respeito e dignidade?”

Alan Forcier mora na casa de John Feal e está tão deprimido que deixou que o amigo escondesse sua arma, usada quando era investigador do Departamento de Narcóticos da Polícia de Nova York. “Eu botava medo. Trabalhava à paisana, de cabelo comprido, barba e identidade falsa. Comprava drogas de traficantes e tinha de fingir que era viciado. Hoje virei um drogado por causa dos remédios que tenho de tomar”, diz.

Heróis negligenciados

Alan passou sete meses no aterro de Fresh Kills, em Staten Island, procurando provas dos ataques ao World Trade Center, mas mal conseguiu explicar o que encontrou. Começou o tratamento de síndrome de estresse pós-traumático em junho do ano passado, depois de passar cinco anos dormindo “meia hora aqui, uma hora lá, ou bebendo meia garrafa de vodca”. Passou a entrevista se desculpando “por não estar fazendo sentido”. “Falar sobre isso traz de volta o que aconteceu. Tudo bem. Vou tomar remédio extra.”

John dirige a Feal Good Foundation para ajudar os “heróis negligenciados do 11 de setembro” e tenta explicar melhor a situação do amigo. “Ex-policiais como o Al tinham orgulho de ser durões e agora, sem o salário, o distintivo e a arma, a auto-estima foi para o ralo.” Alan rebate reclamando da superatividade do anfitrião. “O John, por outro lado, não pára quieto com a fundação. Passa o dia no telefone. Faz parte da condição psicológica dele e me deixa louco”, diz.

No dia 17 de setembro de 2001, John estava supervisionando a demolição dos escombros quando uma viga de aço de oito toneladas esmagou seu pé esquerdo. “O caminho até o hospital foi ridículo. A polícia parava o trânsito de todas as esquinas. ‘Temos um herói do 11 de setembro.’ As pessoas me aplaudiam como se eu fosse celebridade”, lembra. “Quando cheguei ao [hospital] Bellevue, a imprensa já estava me esperando. Foi aí que comecei a sentir uma dor excruciante.” Os médicos colocaram pinos no lugar dos dedos e dias depois o pé começou a gangrenar. “Foi um erro médico estúpido. Não se pode colocar pino em osso quebrado se não há fluxo de sangue. Eu estava tão dopado que não entendia nada.”

John foi transferido de hospital e os pinos foram retirados. “Foi quando o médico disse que ia ter de isolar alguns órgãos por causa da gangrena. E eu pensando que ia passar apenas dois dias no hospital. Afinal eu era o ‘John Wayne’, tinha feito 17 anos de luta livre, 15 anos de judô, era veterano do Exército.” Depois de nove semanas e dezenas de cirurgias, nenhum órgão teve de ser isolado, a perna foi recuperada e apenas parte do pé foi amputada.

Os médicos disseram que ele só sairia do hospital se pudesse andar. Depois de mais duas semanas praticando sozinho de madrugada, John foi liberado. Meses mais tarde, ele desenvolveu um esporão no calcanhar direito e teve de passar por mais cirurgias – agora nos dois pés. “Foi um ano horrível. Minha mãe morreu de câncer e meu cachorro quase morreu de doença de Lyme. Vendi meu jipe, minha Corvette e minha Harley-Davidson, e hoje aprecio muito o que tenho. Estou vivo.”

A fundação que John preside tem como objetivo informar e ajudar trabalhadores do 11 de setembro sobre seus direitos. John organizou um concerto beneficente em julho que reuniu 1.300 pessoas e angariou US$ 5 mil em doações. “Não é muito, mas deu para ajudar 12 pessoas”, diz. Ele lembra que a definição de herói no dicionário é “pessoa notada por ato de coragem ou nobreza de propósito, especialmente aquele que arriscou a própria vida”. “Como estamos sendo notados por nobreza de propósito se estamos doentes e morrendo?”, constata. “O orçamento do Mount Sinai serve para monitorar os doentes. Até onde eu sei, é o tratamento e a medicina preventiva que salvam pessoas. Isso é um insulto à nossa inteligência. Então vamos ser monitorados até nossa cabeça explodir e virarmos estatística. Não sou um número. Meu nome é John Feal. Sou humano. Tenho emoção. Isso é um insulto”, desabafa.

Esquadrão Hércules

“É a população que faz este país ser grande. Os políticos deveriam trabalhar para ela.” John encontrou recentemente o ex-prefeito de Nova York Rudolph Giuliani numa campanha presidencial para as eleições de 2008 e perguntou: “Se você não conseguiu ajudar Nova York, como pretende governar o país inteiro?”. Segundo o ativista, Giuliani ficou vermelho de raiva.

Glen Klein fazia parte do Esquadrão Hércules da Unidade de Serviço de Emergência que funciona como se fosse a SWAT de Nova York. Dos 23 colegas do esquadrão, 14 morreram nos ataques de 11 de setembro. Passou oito meses retirando escombros no Ponto Zero. E além de síndrome de estresse pós-traumático, ficou com problemas gástricos e intestinais. Assim como Vito, John e Alan, pediu indenização trabalhista e social security – o programa federal de previdência americano. Foi-lhe negado três vezes, mas ainda tem chance porque, no consciente coletivo da população dos Estados Unidos, bombeiros, policiais e voluntários do 11 de setembro são verdadeiros heróis. Parece ser mais difícil incluir aqueles que passaram meses limpando as ruas e os edifícios das redondezas. Portanto, indenizações trabalhistas para faxineiros são ainda mais raras.

Catorze horas por dia, sete dias por semana, durante seis meses, o nova-iorquino Alex Sanchez e o dominicano Manuel Checo limparam dutos de ventilação e ar-condicionado de 12 edifícios ao redor do Ponto Zero. “Havia pó acumulado de décadas antes de as torres caírem. A poeira era tanta que você nem imagina. Mas ninguém falava de contaminação. A gente usava uma bandana e sabe-se lá o que a gente respirou”, conta Alex. Apesar de a Agência de Proteção Ambiental (EPA) ter provas de que havia milhares de toneladas de partículas de cimento, fibra de vidro, asbesto, chumbo, pesticida e outras substâncias tóxicas no ar, a chefe da agência, Christine Todd Whitman, declarou que o ar não estava comprometido. Whitman foi processada e absolvida pelo tribunal federal de apelação, mas o caso poderia ainda seguir para a corte suprema.

Dutos de ventilação

“A gente passava o dia em escadas carregando aspiradores durante muito tempo. Meu corpo ficou destruído. Mas a gente levava nosso trabalho a sério, com muito orgulho. Eu sofro da síndrome do Woody Allen. Amo Nova York. Era uma honra poder ajudar”, explica Alex. Em maio de 2002, Alex não conseguia mais trabalhar. “Todo mundo me falava para voltar ao trabalho, mas meu corpo dizia o contrário. Era tanto químico envolvido na limpeza que fiquei doente e passei uma semana de cama. Meu relacionamento em casa ficou feio. Não conseguia me levantar. Era muito frustrante.”

Os casos de Alex e Manuel são agravados pelo fato de eles não terem podido contar com seguro-saúde. Apesar de trabalharem desde 1999 para a American Building Management – uma das empresas contratadas para limpar os prédios vizinhos ao Ponto Zero –, eles cobriam férias de outros faxineiros e, portanto, não recebiam benefícios. “Perdi meu apartamento e tive de morar dois anos dividindo um quarto com meu filho, minha mãe e minha tia”, diz Alex.

Seu amigo Manuel, depois de perder o emprego em dezembro de 2002, teve de morar seis meses dentro de seu carro. Nascido na República Dominicana, cresceu “em berço de ouro” porque o pai, Manuel de Jesús Checo, era general do ditador Rafael Trujillo, um dos maiores tiranos do século 20. Quando a ditadura caiu, Manuel e sua família se refugiaram nos Estados Unidos.

“Hoje tomo sete remédios por dia, tenho asma, sinusite, depressão, problemas de pele, vivo sozinho num quarto alugado e mal sobra dinheiro para comer”, diz ele.

Alex, por sua vez, toma 15 remédios por dia e tossiu tanto que não teve fôlego para sentar numa mureta a pedido do fotógrafo. “Eu estava com orgulho de poder ajudar na recuperação de minha cidade, mas agora parece que a cidade não se importa com a minha recuperação”, diz.

Com uma indenização trabalhista parcial de US$ 143 por semana, Alex sustenta a mãe, Íris, 57, a avó, Milagro, 80, e o filho Jack, de 6 anos. A mãe de seu filho é alcoólatra e está desaparecida. Alex não tem contato com o pai, Jack Veneno, que é campeão internacional de luta livre e mora na República Dominicana. “Estou com 40 anos e me sinto como se tivesse 90. Queria poder ensinar meu filho a jogar futebol. Ele é fã do Kaká.”


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