Por que tanta gente quer ser jornalista?

Faz muitos anos que os cursos de comunicação social que formam jornalistas são os mais cobiçados nos exames vestibulares. Faculdades de jornalismo pipocam por todo país, são centenas por toda parte.

Por isso, eu me pergunto: por que tanta gente quer ser jornalista, exatamente neste momento em que se anuncia a morte dos jornais e a nossa profissão é tão criticada pelo conjunto da sociedade?

Além disso, estamos prestes a ter uma decisão do Supremo Tribunal Federal, provavelmente acabando com a obrigatoriedade do diploma, o que, na prática, significa que qualquer um poderá ser jornalista, como já ver acontecendo.

Claro, eu sei que com o crescimento das novas mídias eletrônicas ninguém mais precisa ter diploma nem emprego para ser jornalista, pois cada um pode fazer seu próprio jornal na internet.

Mesmo assim, uns 50 mil jovens, ninguém sabe ao certo quantos, estão hoje cursando faculdades de jornalismo para ter um diploma. Daqui a pouco vamos ter um contigente maior de estudantes do que o conjunto de profissionais em atividade.

Cada vez que faço uma palestra ou participo de debates em faculdades, vejo aquele mundão de gente no auditório e me preocupo com o futuro profissional daqueles jovens. Haverá emprego e trabalho para todos?

Emprego bom, não sei, mas trabalho certamente quase todos terão se quiserem mesmo ser jornalistas. Mudaram tanto as relações de trabalho que você hoje já não sabe quem é patrão e quem é empregado de quem diante dos milhares de títulos de impressos e de assessorias de imprensa, sites e blogs na internet.

O mais difícil é saber por que e para que eles querem ser jornalistas. Fiz esta pergunta aos meus alunos quando dei aulas por um período na USP e na PUC/SP no século passado e poucos souberam responder.

Cheguei à conclusão de que a maioria estava ali porque jornalismo era a profissão da moda, sem a menor idéia do que gostaria de fazer na profissão, além de aparecer na tela da TV Globo, é claro, ou ter uma coluna na Folha ou na Veja.

Aquela velha história de idealismo, compromisso social, mudar o mundo, e todos os sonhos dos meus tempos de estudante, acabou. A grande maioria quer mesmo é se dar bem, fazer sucesso e ganhar uma boa grana, sem saber como.

Fico impressionado com a quantidade de estudantes que me procuram para dar entrevistas, fazer palestras, dar depoimentos para seus TCC (Trabalho de Conclusão de Curso, uma praga que inventaram para atazanar a vida de velhos jornalistas) ou simplesmente conversar sobre a profissão.

Muitos deles buscam apenas uma palavra de estímulo, um alento, já que em suas escolas os professores os desanimam tanto diante das dificuldades que encontrarão no mercado de trabalho que muitos desistem antes mesmo de tentar alguma coisa.

E, no entanto, a cada encontro com estudantes de jornalismo me surpreendo não só com a quantidade, mas também com o entusiasmo e a qualidade de alguns deles, dispostos a encontrar nesta profissão não apenas uma opção profissional, mas uma opção de vida.

Foi o que aconteceu na última segunda-feira, na Universidade São Judas, na Moóca, em que tive dificuldades até para sair do auditório. Estava com pressa porque tinha um outro compromisso naquela noite, mas eles queriam fazer mais perguntas até no caminho do banheiro.

Eu até agora não sei responder à pergunta que fiz no título deste post. Se algum leitor tiver a resposta, por favor me diga.

Abaixo, transcrevo a palestra, na esperança de que os estudantes interessados em saber o que penso encontrem as respostas que procuram e me deixem um tempo para poder fazer minhas matérias.

1964-2009: 45 ANOS DE REPORTAGEM

Boa noite, obrigado por terem vindo

Antes de mais nada, queria agradecer e dar os parabéns aos alunos que me convidaram e organizaram este encontro – o Maurício Hermann, o Roberto Favaro, o João Luis e Lindemberg Rocha e a Patrícia Santos.

Já tinha decidido não fazer mais palestras gratuitas em faculdades este ano por dois motivos:

– Preciso de mais tempo para me dedicar à reportagem e ao meu blog. Estava dando mais palestras e entrevistas do que fazendo matérias. Não está certo isso.

– Como vivo do meu trabalho, apesar de aposentado, também não acho certo trabalhar de graça. Todo trabalho deve ser remunerado.

Mas os colegas de vocês me convenceram a abrir uma última exceção e por isso estou aqui hoje para falar por amor à arte sobre o nosso ofício de repórter.

Sei que ler um texto é chato, mas, apesar de ter trabalhado durante tantos anos com o presidente Lula, até hoje tenho dificuldades para falar de improviso.

Por isso, peço licença a vocês, para ler um texto que preparei sobre o tema proposto como introdução para o debate que teremos a seguir.

Quero me dirigir principalmente aos jovens que ainda acreditam nos compromissos dos jornalistas de servir à sociedade com ética, fiéis ao seu tempo e à sua gente.

Este ano, estou completando 45 anos de profissão, e continuo acreditando nestes princípios.

Fui repórter na maior parte deste tempo, e ainda sou, mas já fiz de tudo um muito na carreira de jornalista – menos trabalhar em circo, por enquanto

De repórter estagiário a diretor de redação, passando por editor, chefe de reportagem, correspondente na Europa, repórter, comentarista e diretor de televisão, assessor de imprensa de candidato a presidente, Secretário de Imprensa da Presidência da República, e atualmente blogueiro profissional, já fiz um muito de tudo.

Trabalhei, em diferentes cargos e funções, nos principais veículos da imprensa brasileira, com exceção da revista “Veja” e da TV Record. Fica mais fácil dizer aonde não trabalhei.

Para quem começou a trabalhar como ajudante de jornaleiro e depois foi “foca” de jornal de bairro, em 1964, até que não posso reclamar da vida

Aprendi, logo no início da minha carreira, que uma das principais tarefas da imprensa é fiscalizar o poder público e denunciar o que tem de errado, sem deixar de contar o que está acontecendo de bom, sair dos gabinetes, contar histórias da vida real.

A imprensa era então chamada de quarto poder. Mas, nos últimos tempos, alguns jornalistas e alguns veículos parecem ter-se promovido por conta própria ao primeiro poder – primeiro e único.

Quer dizer, a mesma imprensa que investiga e denuncia, também julga e condena. A um só tempo, faz o papel de promotor e juiz, dona da ética e do destino.

Hoje, é fácil. As denúncias muitas vezes chegam prontas para os jornalistas – em forma de dossiês, fitas, listas, como um serviço de delivery.

Vivemos, afinal, o mais amplo e duradouro período de liberdades públicas desde que me conheço por gente.

Em geral, primeiro denunciam para só depois checar a veracidade do que foi publicado – mais ou menos como o policial que primeiro atira para depois pedir documentos.

Mas nem sempre foi assim.

Em meados dos anos 70 do século passado, fui autor da primeira reportagem de denúncia publicada pela imprensa brasileira, depois da retirada da censura prévia no “Estadão”, instalada com o famigerado Ato Institucional nº 5.

Com a colaboração de toda a rede de sucursais e correspondentes do jornal, coordenei uma série de reportagens sobre as “mordomias” do regime militar, relatando os abusos e privilégios de ministros e altos funcionários do governo federal.

O presidente da República era o general Ernesto Geisel e os jornalistas naquele tempo corriam risco de morte no exercício do seu trabalho.

Mais ou menos nessa mesma época, meu colega Vladimir Herzog foi suicidado na prisão e vários outros jornalistas foram presos e torturados.

Tive mais sorte e acabei indo trabalhar como correspondente do “Jornal do Brasil” na Europa.

Sobrevivi para contar estas e muitas outras histórias no meu livro de memórias “Do Golpe ao Planalto – Uma vida de repórter”, lançado pela Companhia das Letras, em 2006.

Nele conto como se deu a passagem da ditadura à democracia, sob o ângulo de um repórter que viu e viveu de perto as mudanças no país e na imprensa na segunda metade do século passado.

Como comecei em jornal no inesquecível ano de 1964, a partir daí relato o que aconteceu na imprensa e no país até 2004, quando trabalhei como Secretário de Imprensa, no Palácio do Planalto, com o presidente Lula.

O livro apresenta um registro destas quatro décadas, divididas exatamente em dois períodos de 20 anos: 20 anos de ditadura e 20 anos da nossa jovem democracia.

No meio, como um divisor de águas, localizo a Campanha das Diretas, o grande marco no processo de redemocratização do país.

A mesma grande imprensa que apoiara com entusiasmo o golpe militar de 1964 e, depois, foi colocada sob censura prévia em 1968, a partir do golpe dentro do golpe, demorou a se dar conta das mudanças, vinte anos depois.

No final dos anos 1980, um grande movimento popular estava ganhando as ruas para dar um basta à ditadura.

Trabalhava nesta época no jornal “Folha de S. Paulo” que, desde o primeiro momento, ainda nos últimos meses de 1983, abriu suas páginas e mobilizou toda sua equipe para fazer a cobertura da Campanha das Diretas.

Pela primeira vez, notei esta mudança de direção entre os chamados formadores de opinião, abrigados na grande imprensa, e a vontade popular expressa pela sociedade civil organizada.

Em vez de a imprensa fazer a cabeça do povo para ir às ruas, como aconteceu em 1964, agora era o povo nas ruas que obrigava a imprensa a ir atrás para descobrir o que estava acontecendo.

Com a liberdade reconquistada, a imprensa viveria um período de prosperidade, com investimentos em profissionais e máquinas modernas que produziam veículos graficamente cada vez mais bonitos.

Isso durou mais ou menos até meados dos anos 90, quando se instalou uma crise econômico-financeira na mídia. Algumas empresas até hoje lutam para sair dela.

Redações foram progressivamente sendo reduzidas, ao mesmo tempo em que, para cortar custos, o espaço das reportagens na mídia impressa foi sendo ocupado por colunas e pelo noticiário burocrático cevado nos gabinetes e apurado por telefone.

Em conseqüência, houve uma inversão de prioridades na pauta dos veículos. Em lugar das histórias sobre a vida no Brasil real, a mídia impressa passou a dedicar cada vez mais espaço ao Brasil oficial, aos bastidores e às futricas da disputa política, assim como à vida das celebridades.

Com a imprensa regional cada vez mais dependente do noticiário das três grandes agências nacionais – Folha, Estadão e Globo -, o resultado é que passamos a ter Brasília demais e Brasil de menos nos jornais e revistas.

É o caso de se perguntar hoje o que é causa e o que é conseqüência.

A mídia impressa deixou de produzir reportagens por causa da crise econômica dos veículos?

Ou a crise é justamente conseqüência desta mesmice, com os veículos cada vez mais parecidos uns com os outros e distantes do seu público?

Nos anos mais recentes, essa situação se agravou com a concorrência das novas mídias eletrônicas. Agora, já não basta encontrar novas fórmulas para diferenciar um veículo do outro, mas também acrescentar algo a mais ao noticiário das agências on-line, para diferenciar uma mídia da outra.

Além disso, enquanto a grande imprensa de papel encolhia, emissoras de rádio e televisão passaram a investir cada vez mais em jornalismo. E se multiplicaram por toda parte os sites e os blogs.

Bem abastecido de informações durante todo o dia, o leitor dos jornais de prestígio passou a sentir um gosto de pão amanhecido no noticiário impresso que acompanha seu café da manhã.

Esta modorra só costuma ser quebrada quando surge um novo dossiê, uma nova fita ou entrevista explosiva capaz de balançar os alicerces da praça dos Três Poderes.

Em compensação, os jornais populares não pararam de crescer no mesmo período, incorporando um leitorado novo. Quase todas as grandes empresas investiram nesse filão, atraindo gente que nunca antes teve dinheiro para comprar jornal.

O casamento do preço de capa bem mais barato com a melhoria de renda dos trabalhadores criou um novo e promissor mercado. Além disso, temos agora também os jornais distribuídos gratuitamente nas esquinas.

Por isso, entre outras razões, não faço coro aos profetas do apocalipse que anunciam há tempos o fim da imprensa de papel.

Assim como o cinema não acabou com o teatro, e a televisão não acabou com nenhum dos dois que vieram antes, acredito que todas as formas de divulgação de informações sobreviverão.

O que cada mídia precisa fazer será definir qual é o seu papel nesta história e ser capaz de atender às demandas da sua freguesia.

Para que isso seja possível, penso que se torna cada vez mais necessário estabelecer marcos regulatórios na comunicação social. De preferência, com a auto-regulamentação da atividade, tanto para empresas como para os profissionais, a exemplo do que já acontece com o CONAR, que zela pela ética na publicidade.

Num mundo cada vez mais conectado à grande rede, em que seremos todos um dia, ao mesmo tempo, emissores e receptores de informação, há que se estabelecer regras do jogo claras para todos.

Só assim a liberdade de expressão e informação será realmente um direito da sociedade democrática e não um privilégio de interesses particulares de grupos políticos ou econômicos.

Assim como aconteceu lá atrás na Campanha das Diretas, assistimos hoje a um processo semelhante, em que a população já não se submete mais passivamente aos velhos donos da verdade, mas forma sua própria opinião a partir das mais diversas fontes e, principalmente, dos fatos concretos da sua própria realidade.

Na medida em que, pelas mais diferentes razões, a chamada grande imprensa deixou de acompanhar o cotidiano da vida real em largas regiões do país, ao invés de surpreender seus leitores, muitas vezes ela é que está sendo surpreendida pelos fatos.

De outro lado cresce a importância dos veículos regionais, das publicações independentes, das rádios e televisões comunitárias, um passo importante para a democratização das informações.

Deixei para o final a parte mais importante da história: a grande revolução que a internet está provocando hoje nas relações humanas – a maior desde que Guttemberg inventou a imprensa, faz uns 500 anos.

Quase 60 milhões de brasileiros já estão ligados à grande rede, tornando-se ao mesmo tempo emissores e receptores de informação, acabando com esta história de formadores de opinião.

Hoje, cada um quer formar a sua própria opinião e, se possível, influir na opinião dos outros

Eu, se fosse vocês, querendo mesmo ser jornalista, começaria desde já a trabalhar na internet, nem que seja de graça Só comecei neste mundo muito recentemente, já chegando aos 60 anos, e confesso que estou gostando muito

Voltando à mídia tradicional. Para aproximar novamente um mundo do outro, quer dizer, a fábrica de papel impresso da realidade vivida por sua clientela, só tem um jeito.

É colocar novamente os dois em contato, falar a mesma língua, reaprender a contar histórias da vida real, não só contar mas também explicar o que está acontecendo.

É sair da redação, largar o telefone e as teses dos analistas políticos, botar outra vez o pé nas ruas e nas estradas, olhos e ouvidos bem abertos.

Para isso, sigo sempre a lição do velho mestre Cláudio Abramo. Ele dizia a ética do jornalista deveria ser igual à ética do carpinteiro – ofício que ele também exercia nas horas vagas.

Quer dizer, precisamos apenas ser honestos naquilo que fazemos, e fazer bem feito o nosso trabalho, qualquer que seja nosso cargo ou função.

Não é a função ou o cargo que faz o profissional, é o contrário: em qualquer cargo ou função, seja numa redação ou numa assessoria de imprensa, a nossa ética tem que ser a mesma.

Era assim que pensava e agia quando trabalhei como Secretário de Imprensa no governo.

Nós, afinal, prestamos um serviço ao público, para o conjunto da sociedade, e não para quem eventualmente nos paga o salário, seja uma empresa privada ou o governo.

O caminho que escolhi e segui quase a vida toda foi o da reportagem – a melhor maneira de contar o que está acontecendo, de denunciar o que está errado, mas também de louvar as iniciativas de brasileiros que estão mudando a sua própria história e a do país.

É o que procuro fazer agora na Brasileiros, revista mensal de reportagens, uma iniciativa de alguns jornalistas da minha geração, que ainda não perderam a fé na nossa profissão, apesar de tudo.

Se alguém ainda tiver dúvidas de que vale a pena ser jornalista, basta dar uma olhada na revista, que já está completando dois anos.

Desde abril do ano passado, escrevo também no portal iG, onde mantenho um blog chamado “Balaio do Kotscho”. Não percam!

Para mim, não faz a menor diferença se escrevo um texto para a internet, uma revista ou para um novo livro.

Nós, repórteres, somos contadores de histórias da vida real – o meio usado para isso, a tal da plataforma, pouco importa.

Se antes, quando eu comecei, era arriscado e difícil denunciar a corrupção dos podres poderes de sempre, hoje o desafio que se coloca para nós profissionais é outro.

É não servir de instrumento a interesses político-partidários, sejam eles do governo ou da oposição, preocupando-nos unicamente em contar o que a sociedade tem o direito de saber sobre o que está acontecendo.

Sei que pode parecer romântico ou utópico o que estou dizendo, especialmente se falo para jovens que muitas vezes já perderam a capacidade de sonhar e de ousar.

Mas sempre foi assim que entendi o nosso papel de repórteres – esses historiadores do cotidiano que escrevem sobre o dia de hoje, sempre na esperança de contribuir para um amanhã melhor.

Posso garantir a vocês que vale a pena tentar, mesmo remando contra a maré, mesmo dando murro em ponta de faca: é muito bom poder trabalhar como jornalista num país como o Brasil – onde tanta coisa ainda está por ser construída e tanta história para ser contada.

Muito obrigado.

Ricardo Kotscho


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