Ele cunhou o nosso papel-moeda

Os brasileiros letrados, e com mais de 40 anos, certamente se recordam da estranheza – ou justificada indignação – provocada pela seguinte inscrição, estampada nas cédulas brasileiras: “Impresso por Thomas de La Rue”. Sim, o papel-moeda que circulava por todo o território nacional era impresso a 9.486 quilômetros de distância, nas rotativas da gráfica britânica, em Londres, responsável, à época, pela produção não apenas das cédulas brasileiras, como também do papel-moeda de dezenas de outros países.

Coube a um cidadão indiano, nascido na então Guiana Inglesa (atual Guiana) e naturalizado brasileiro, o feito de resgatar a, digamos assim, nossa soberania fiduciária. Sheik Mohamed Hassan Rashid, 70 anos “bem vividos”, formado em Ciência e Tecnologia na Fabricação de Celulose e Papel pela Universidade de Manchester, Inglaterra, foi um dos líderes do projeto que resultou no domínio da tecnologia de produção de papel-moeda.
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A primeira cédula genuinamente brasileira, produzida em escala – uma nota de 10 cruzeiros, com a efígie de Dom Pedro II na face e uma escultura de Aleijadinho no verso -, foi rodada em 1978 na gráfica da Indústria de Papel e Celulose de Salto (SP) – uma parceria entre a Indústria de Papel Simão (posteriormente adquirida pela Votorantim Celulose e Papel – VCP) e a empresa francesa Arjomari Prioux.

O esforço para a produção da cédula brasileira demandou nada menos do que nove meses. “Além dos profissionais da gráfica, o projeto mobilizou técnicos da Casa da Moeda, Banco Central, Ministério da Fazenda e até da Interpol”, lembra Rashid, que evita entrar em maiores detalhes, por razões de segurança.

Sobrancelhas e ralos cabelos brancos, que contrastam com a pele escura, característica dos indianos, Rashid é um apaixonado por papéis. Ele vem de uma família de papeleiros – seus sete irmãos trabalham, de uma forma ou de outra, com papéis, assim como seus quatro filhos.

“Nasci, vivi e vou morrer como papeleiro”, diz Rashid, que comanda hoje, na condição de consultor, o trabalho de pesquisa e desenvolvimento de papéis especiais da fábrica da VCP em Piracicaba (SP), a maior da América Latina.

Fossem líquidos, papel e celulose certamente correriam pelas veias de Rashid, como atestam seu extenso currículo e experiência no processamento de papéis. Rashid formou-se também em Engenharia Mecânica, pelo Imperial College of Science, Technology and Medicine (Londres), e fez pós-graduação em Engenharia de Projetos, pelo The National Institute of Engineering, e em Administração e Economia, pela London School of Accountancy, dentre outros cursos de especialização.

Mas é o processo de fabricação do papel-moeda que entusiasma esse profissional de sorriso fácil e um leve sotaque que denuncia sua longa vivência na Inglaterra. A oportunidade para participar do projeto que resultaria na criação do papel-moeda brasileiro surgiu em 1976, quando a Indústria de Papel Simão o contratou como consultor de papéis especiais da unidade de Salto, interior de São Paulo.

Essa fábrica, especializada na produção de papéis fiduciários, como são conhecidos os papéis de segurança (passaportes, documentos como cédulas de identidade, carteiras de habilitação, vales-refeição etc.), foi escolhida pelo Ministério da Fazenda para dar início à fabricação do dinheiro brasileiro.

Para apoiar o trabalho de desenvolvimento, Rashid foi enviado a Paris, para um estágio específico nas oficinas da Arjomari Prioux. “Os franceses nos diziam: ‘Vocês nunca conseguirão, porque não dominam os processos de segurança’. Pois conseguimos, em menos de nove meses, desenvolvendo e dominando técnicas como a de produção de poliéster – fibra que é usada como elemento de segurança”, recorda Rashid.

“Produzir papel-moeda é uma arte”, diz ele, os olhos brilhando. Confeccionar dinheiro, em sua opinião, é um processo quase artesanal. Trata-se de um trabalho meticuloso, centrado principalmente na utilização de técnicas e recursos de segurança. São marcas-d’água, fios sintéticos, fibras coloridas, marcas holográficas, fios de segurança, características como resistência à dobradura, à tração, à umidade, sensibilidade à luz ultravioleta – tudo, enfim, que impeça a falsificação do dinheiro.

Todo esse complexo trabalho é relativamente barato, se comparado ao valor facial do papel-moeda. O custo de produção de uma cédula – não importa o valor, se de R$ 1 ou R$ 100 – gira em torno de R$ 0,12.

O negócio de produzir dinheiro, a propósito, já viveu dias melhores. Na virada da década de 1980, quando a inflação corria solta, a Casa da Moeda era obrigada a criar e produzir constantemente novas cédulas para substituir as notas que se desvalorizavam praticamente da noite para o dia: o IGP-DI, indicador medido pela Fundação Getúlio Vargas, chegou a 2.708,55% em 1993; no ano passado, o índice somou apenas 3,79%.

O descrédito do papel-moeda era tal que as famílias dos personagens históricos escolhidos para estampar as cédulas recusavam-se a conceder o respectivo direito autoral. Por conta dessa dificuldade, as figuras históricas foram substituídas por personagens regionais – como “o gaúcho”, “a baiana” e outros.

Com a economia estabilizada, as cédulas brasileiras são as mesmas, desde a implantação do Plano Real, em 1994, com valores de R$ 1, R$ 2, R$ 5, R$ 10, R$ 20, R$ 50 e R$ 100 (leia quadro “Da pataca ao real” na página anterior).

Graças ao empenho de Rashid, dos técnicos da Casa da Moeda e do Banco Central, os brasileiros podem se orgulhar de seu dinheiro 100% nacional. As novas cédulas brasileiras, porém, estampam uma outra inscrição, que causa espécie a ateus, agnósticos e defensores do Estado laico: “Deus Seja Louvado”, lema que remete ao “In God We Trust” (“Nós confiamos em Deus”), impresso nas cédulas norte-americanas.

Da pataca ao real
Principal base de troca da economia, o papel-moeda oferece um fiel registro da história político-econômica de um país. Tome-se o caso brasileiro. Nosso primeiro papel-moeda foi cunhado não pelos portugueses, como se poderia imaginar, mas pelos holandeses que se instalaram no Nordeste, comandados por Maurício de Nassau. Cunhadas em ouro, entre 1645 e 1646, ficaram conhecidas como “moedas de cerco”, em alusão ao assédio sofrido pelas forças portuguesas, que acabaram expulsando os holandeses.

A Casa da Moeda foi constituída na Bahia, em 1694, pelo rei D. Pedro II, de Portugal, que determinou que todas as moedas de ouro e prata em circulação no Brasil fossem transformadas em moedas provinciais.

Acompanhando a evolução do fluxo de comércio, a Casa da Moeda foi transferida em 1699 para o Rio de Janeiro e, um ano depois, para Pernambuco, onde funcionou até 1702. No ano seguinte, a Casa da Moeda voltou a funcionar no Rio de Janeiro.

O primeiro papel-moeda brasileiro circulou em 1772, quando a Administração dos Diamantes, a autarquia portuguesa que administrava o monopólio de extração de diamantes na região do Tejuco do Serro Frio (atual Diamantina, MG), passou a emitir bilhetes, que tinham grande credibilidade, sendo aceitos em todas as transações comerciais da região.

Em 1810, o Banco do Brasil iniciou a emissão de bilhetes pagáveis ao portador, no valor de 30 mil réis. Em 1821, antes de retornar a Portugal com sua corte, o rei D. João VI resgatou todas as moedas, jóias e metais depositados no Banco do Brasil, inviabilizando a conversibilidade dos bilhetes.

O real (réis, no plural) foi a moeda brasileira de 1833 até 1941, quando foi substituído pelo cruzeiro. Desde então, os brasileiros conheceram oito diferentes moedas: cruzeiro, cruzeiro novo, cruzeiro, cruzado, cruzado novo, cruzeiro, cruzeiro real e real.

Com o Plano Real, que inspirou o nome de nossa moeda, a economia brasileira conheceu um período de estabilidade e, conseqüentemente, de menor emissão de novas cédulas.

Hoje, a Casa da Moeda imprime cerca de 120 milhões de notas por mês. Pode parecer muito, mas essa produção já foi bem maior, nos tempos de inflação desenfreada: em 1986, as notas em poder dos brasileiros somavam 4,5 bilhões. Hoje, há cerca de 3,4 bilhões de notas em circulação.

No dia 16 de agosto deste ano, havia 3.315.832.729 cédulas em papel em circulação, totalizando
R$ 76.684.570.068,00 (veja a posição do dia no site: www5.bcb.gov.br/adm/meci /principal.asp?id=dincirc).


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