Durante o show de lançamento de Estudando a Bossa, o trabalho mais recente de Tom Zé, uma aparição miúda, morena e suave deu um respiro, um momento de placidez, em meio à usina criativa do baiano de Irará. Era Anelis Assumpção, uma das cantoras convidadas para o novo disco de Tom Zé, onde interpreta “Solvador, Bahia de Caymmi” à qual ajuntou no show “Outra Insensatez, Poe!” no CD cantada por David Byrne. Como uma mistura de Astrud Giberto e Lauren Hill, a menina levantou a platéia.
Ser filha de Itamar Assumpção tem lá suas vantagens. “Lá vem a Anelis com idéias, ah! é a filha do cara então tudo bem, deve ter alguma idéia, deve saber do que está falando…”. Segundo ela, sempre foi meio “engolida”. Mas na prática não é bem assim. Quando Anelis era pequena, Serena, a irmã mais velha, já cantava. Ela também, mas nunca assumia para o pai que soltava a voz. E ele não dava espaço. Anelis pedia que lhe ensinasse violão mas ele não tinha tempo ou paciência. Mostrava um acorde, mandava repetir, e quando Anelis percebia, ele estava dormindo. O estalo só foi acontecer lá pelos 17 anos. Ela trabalhava no MacDonald’s, se preparava para o vestibular para artes plásticas e trocava figurinhas com Iara Rennó, quando a mãe desta, Alzira Espíndola, parceira de Itamar, convidou-as para cantar em um barzinho da Penha. As duas cantaram músicas de Rita Lee, e Itamar quando soube, enciumado, convidou a dupla para cantar com ele no primeiro show que marcou. Anelis nunca mais saiu de seu lado no palco.
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“Com ele aprendi o silêncio, a emissão da voz em outra região, escalas, uma outra intenção, muita interpretação, essa coisa muito cênica que ele sempre teve, nada muito técnico. Mas ele falava, era muito verbo, muito sermão”, diz ela, que ouvia o tempo todo “minha música não é música de grito, não precisa gritar”. E Anelis cantava completamente diferente da Iara, que tinha o domínio de harmonia, abertura de vozes. “Afinal, na família Espíndola os caras já nascem abrindo uma terça”, brinca. Itamar sacava isso e ia ensinando na base de muito sermão e ensaio – sempre que não gostava de algo Itamar apelava para o diminutivo. Então Anelis tinha vozinha, compunha musiquinhas, escrevia letrinhas. Pelo menos no início.
Hoje Anelis sobrevive como apresentadora de televisão e mais uma vez foi o pai, meio sem querer, o responsável pelo seu ingresso no meio. Em 2001, na segunda edição de O Banquete Dos Mendigos, disco comemorativo dos 25 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, organizado por Macalé em 1973 e proibido pela ditadura, Itamar e Hermeto Pascoal leriam os três primeiros artigos. Itamar logo compôs uma canção no que foi apoiado pelo albino, mas a direção foi contra. Os artigos deviam ser lidos e não cantados. A solução foi a dupla tocar enquanto Anelis lia para a câmera. Viram seu desembaraço e sua fotogenia e logo ela estava apresentando o programa Guerrilha.
No mesmo bar em que se apresentaram com Alzira, Iara e Anelis conheceram Gustavo Ruiz, que, ao lado de Andréia Dias, “pescada” em Ubatuba por Iara, formaria o núcleo da DonaZica, para Anelis a base de tudo. A banda, pela qual passaram, entre outros, Simone Julien, Gui Mendonça, Alfredo Bello, Simone Sou, Gustavo Souza e André Bedurê, gravou dois discos, Composição (2003) e Filme Brasileiro (2005) e hoje passa por um momento de desquite amigável. Mas foi onde Anelis se encontrou. Embora cantasse e compusesse, viu que tinha mais jeito para olhar o todo, opinar sobre o arranjo, sentir a sonoridade. E dedicar-se à percussão. “Ninguém me ensinou, eu fui tocando, fui tendo instrumento, vendo, tocando junto.” Primeiro com Simone depois com Maurício Alves, percussionista do Mestre Ambrósio e pai de sua filha Rubi – cuja chegada foi responsável pelo ingresso de Mariá Portugal na DonaZica, onde ganhou cadeira cativa. Por isso DonaZica só gravou duas músicas suas “O Piano” (ofício fatídico) e “Pimenta”, parcerias com Iara, que estão no primeiro disco.
Anelis dedicou-se à televisão deixando as composições e a musicalidade de lado. Quando Itamar morreu em 2003 falava em produzir um disco dela. Deixou muita coisa para ser feita, a Caixa Preta com sua obra, discos inéditos. Então foi cuidar disso. “Depois eu vejo como fico e a minha música se é que isso vai acontecer.” Compunha escondido. Até que a convidaram para fazer um show com Zélia Duncan, no ano passado. Projeto Afinidades, um artista consagrado e um novo. Anelis disse que ia consultar o pessoal da DonaZica quando soube que era ela a convidada. No fundo era natural. Já havia cantado no disco dela, no DVD, nos shows. Respondeu que não tinha um show e ouviu na lata, “então levanta um!”
Fritou um pouco com a idéia mas decidiu-se, “é show, tenho música, sei fazer isso”. Mas tinha de começar do zero. Coincidentemente, quando foi buscar um instrumento na casa de um amigo, caiu no meio de um ensaio da banda Rockers Control. Ficou chapada com o estilo dub deles, repetição, loopings, ecos, que já curtia. Houve até um tempo em que cantou em um projeto chamado Cordão da Insônia ao lado de Beto Villares, BNegão, Curumin e Céu, na época garçonete do Spot ao lado de Andréia Dias. Resolveu chamar três músicos da banda Rockers, o dono da casa, Bruno Buarque, bateria, o Mau, baixo, e o Cris Scabello, guitarra, que toparam na hora. Para ter um “chão” foi atrás de Lelena Anhaia, baixista, uma das Orquídeas do Brasil, grupo feminino formado por Itamar, e velha amiga. Por chão entenda-se intimidade. Não era mais a família DonaZica. Em um trabalho solo a ‘brigaiada’ é a mesma de um grupo mas a responsabilidade pelo sucesso ou o fracasso é de apenas um. Foram montando o show, a Lelena concorda em tocar violão, cavaco e guitarra quando cai a primeira bomba. O Bruno ia ter de viajar para o exterior com a Céu ou os Barbatuques. Entra em cena Simone Sou.
Anelis construiu o show com Simone, uma usina de criatividade que, de quebra, introduziu o MPC – Music Production Center, o tal seqüenciador, que organiza e sincroniza samplers e demais sons – que vinha usando em seus shows. No dia do show, a segunda bomba. Uma tempestade fecha todos os aeroportos e a Zélia não vai. A direção do Sesc propõe à Anelis, “você pode fazer sozinha ou podemos devolver o ingresso. De qualquer forma remarcaremos o show”. Anelis tinha investido três meses e resolveu encarar. Casa lotada. Era o público da Zélia. No máximo 10% a conhecia da televisão ou da DonaZica. Mas ninguém devolveu o ingresso. Aplaudiram no fim e Anelis tomou gosto. Hoje filosofa, “quarta-feira, dia de Xangô, claro que ele ia fazer uma coisa dessas comigo”.
Bruno voltou e ficaram duas baterias, mais ou menos como no DonaZica. Lelena curtiu o distanciamento do baixo e as idéias fervilharam. Há muita colagem de músicas, por exemplo “Mrs. Jones”, do Billy Paul, com “Meu Amor”, de Itamar, do disco Sampa Midnight, que ficam tão parecidas que muitos pensam que uma é versão da outra. “Sonhando”, de Karina Buhr, é cantada sobre um tema de Fela Kuti. O rapper Black Alien aparece no meio de “I Want You (Shes’s So Heavy)” dos Beatles. “No No No” se confunde com “Nave”, duas composições de Anelis, que também apresenta “Como é gostoso”, “Estrela”, “Bola com os amigos” e “Passando a vez”, esta com pitadas de Mano Brown. Do pai canta ainda “Bem que meu pai me avisou”, que na verdade chama “Mulher segundo meu pai”, gravado apenas pela DonaZica, e “O que você tem feito”, inédita com a Alice Ruiz, encontrada em uma fitinha caseira.
Disco? Uma incógnita. Está inscrita na Petrobras mas se sair já estará com o disco pronto. Começa a gravar em janeiro. Anelis acha que sua geração pegou um mercado confuso. Ninguém sabe o que vai acontecer, como lidar com direito autoral. Já pensou até em pôr tudo na internet. Com certeza o resultado será diferente do show, que já é diferente da estréia. Compôs uma música com Andréia, outra com Céu e 11 com Alzira e o irmão desta, Jerry Espíndola. Tem músicas que ainda nem mostrou para a banda. Mas adquiriu confiança, sabe o que está fazendo. “Acho que herdei uma coisa do meu pai, que é sempre deixar a coisa leve, colocar na música um certo humorzinho”, afirma, sem perceber o ato falho.
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