Ceará na cabeça

Domingo à noite, praia do Meireles, Fortaleza, Ceará. O casal de poetas equatorianos Edwin Madrid e Aleyda Quevedo Rojas lia poemas para o iPod no saguão do hotel. A van, que em castelhano tem outra denominação, o que motivou um rosário de piadas, esperava para levá-los ao aeroporto. Os dois estavam em uma das primeiras levas que deixaram a 8a Bienal Internacional do Livro do Ceará. Simpáticos, autografaram seus respectivos livros e lamentaram a partida. Edwin adorou o sol cearense, estilo “morde-assopra”. Pudera, pode estar 30 graus mas a brisa marítima nos mantém vivos e alertas. Nada mal para quem vive em uma cidade encravada nas encostas dos Andes a mais de dois mil metros de altitude. Aleyda dizia que iria sentir falta dos meninos da praia. “Cada um deles é um poema ali pronto”, garantia.

Embora tenha envolvido 23 países de quatro continentes, a oitava versão do evento, cujo tema foi A Aventura Cultural da Mestiçagem, primou pela presença maciça de poetas de língua espanhola, principalmente da América Latina. Capitaneados pelo simpático Floriano Martins, curador geral da Bienal ao lado de Karine David e Jorge Prieto, os latinos fizeram da praia do Meireles, no trecho do Clube Náutico e da feirinha de artesanato, o seu ponto de encontro. A razão de tal afluência pode ser explicada pelo fato de Martins, que é escritor, poeta, artista plástico e produtor cultural, ser especializado em literatura hispano-americana com ênfase em poesia. Ao lado do poeta paulistano Cláudio Willer, edita a revista de cultura Agulha, espécie de vitrine para poetas. “Então eu trouxe a minha turma”, brincou Martins.
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LEIA e OUÇA: Poemas da Bienal

Na verdade, explicou em seguida, pela primeira vez a curadoria da Bienal saiu das mãos dos técnicos da Secretaria de Cultura do Ceará para as de um artista. O que surtiu efeito imediato. Assim que chegou, o paulista Paulo Franchetti, que dirige a Editora da Unicamp e iria debater com colegas sobre editoras universitárias, comentava que “Bienal é uma instituição falida em termos de novas idéias”. Segundo ele, tais eventos só servem para a comercialização de livros e o circo habitual em torno de escritores carne de vaca. Sentia-se mais recompensado pela programação das grandes livrarias e seus workshops, palestras e apresentações-relâmpago quase que diárias. Mas ele ainda não tinha sentido a “pegada” do Martins.

Em volta de cervejas devidamente acondicionadas em embalagens de isopor, lagostas-tubarão oferecidas pelos meninos-poema de Aleyda, os poetas passavam as manhãs nas barracas do Meireles, falando, falando. E como poetas, principalmente latinos, têm assunto.

Sem nem mesmo precisar apelar para Obama e a crise mundial. A toda hora Chávez e Morales eram citados como mártires da mídia imperialista ou algum detalhe picante ou cheirando a falcatrua envolvendo algum poeta ausente, coitado, virava um carnaval. O grupo dos primeiros dias era formado por figuras díspares como o sisudo cubano Norberto Codina e seu alegre conterrâneo Roberto Häsler – também pudera, o segundo vive em Barcelona; a figura solar do moçambicano Luis Carlos Patraquim, bem de acordo com o jeito boa gente do argentino-mexicano Eduardo Moshes, o único a levar a esposa – Edwin não vale pois Aleyda é poeta; papeando descontraídos, o chileno Juan Cameron com seu ar de turista belga perdido no Saara, a majestade negra de Alexis Gómez-Roza, da República Dominicana, o ar diplomático do uruguaio-brasileiro Alfredo Fressia, tradutor de Drummond, Ana Cristina César, Gullar, e que acaba de assumir a edição da revista mexicana La Otra, sucedânea da mítica Alforja. Um dos motivos da fama da Alforja era o seu requinte gráfico, fruto do trabalho da ruiva mexicana Maria Luisa Passarge, curadora na Bienal do Ceará do espaço dedicado à relação entre palavra e imagem, uma mulher delicada como a colombiana Amparo Osorio; as duas se bronzeavam indiferentes ao carnaval capitaneado por Martins.

Um carnaval de palavras que todo dia era transportado pela van até o local da Bienal, no Parque Ecológico do (rio) Cocó. Lado a lado ficam os prédios da Bienal, especialmente adornada com um painel com variações sobre o quadro A Paz, do baiano Maninho Abreu, inspirado em Operários de Tarsila do Amaral – o original de A Paz pode ser contemplado no restaurante Mestiço em São Paulo -, e o campus da Universidade de Fortaleza (Unifor), que emprestou algumas salas para a leitura de poesia, debates e conferências. Quem entrava pela porta principal da Bienal era calorosamente saudado por uma bela cearense de “dentro” de um iPod abóbora – o Jobs, de novo.

Mais tarde, Willer me explicaria que a garota estava numa sala onde via a gente por um monitor. E que poderíamos conversar com ela. Perguntei, “onde você está?” e ela, “dentro do iPod”. Deixei quieto. O contraste entre a Bienal e a Unifor era gritante. A primeira, a exemplo de todas, era um frenesi de público. Esperava-se mais de 700 mil visitantes – Fortaleza tem 3,5 milhões de habitantes. No campus, arborizado, cheio de esculturas, reinava a paz. Por vezes excessiva. Palestras como Considerações Críticas Sobre Literatura e Vídeo, reunindo Daniel Adjafre, que escreve Casos e Acasos para a Globo, Marçal Aquino, roteirista habitual de Beto Brant e o consagrado Lauro César Muniz, autor de novelas como Escalada, Espelho Mágico, Roda de Fogo e Salvador da Pátria, que compareceu acompanhado da mulher, a atriz Bárbara Bruno, não contaram com muitos espectadores. “Uma questão de se divulgar melhor”, comentaria depois o jornalista Jacob Klintowitz que deu a palestra Crítica e Literatura de Arte. Afinal, além do glamour da presença de Lauro, Marçal é co-autor de Cheiro do Ralo com o diretor Heitor Dhalia, sucesso de Selton Mello sobre um livro do quadrinista Lourenço Mutarelli.

Foto: Nely Rosa
OS PALESTRANTES
Na mesa: José Geraldo Neres, Lauro César Muniz, Marçal Aquino e Daniel Adjafre

O Espaço Infantil Antônio Sales, encravado no pavilhão da Bienal, dedicado a games, quadrinhos, RPG, computadores, mesas-redondas, palco de palestras sobre o Watchmen, de Alan Moore, o pioneiro Osamu Tezuka, animes e mangás (animação e quadrinhos japoneses), ficou intransitável todos os dias do evento. Segundo Clarice Barroso, coordenadora de projetos da Fundação Cultural Nipo-brasileira, a mais recente das oito edições da Super Amostra Nacional de Animes (SANA), realizadas em Fortaleza, atraiu um público de quase 15 mil pessoas, muitas delas fantasiadas como seus heróis e que foram vestidas assim na Bienal também.

E se o assunto era público, os shows exibidos no auditório principal – Bloco D da Bienal, com capacidade para mil lugares – bateram todos os recordes, com filas extensas em busca do ingresso obtido mediante a doação de um livro. Da “alegria à Oswaldo Montenegro” do Teatro Mágico ao comedimento de Fernanda Takai e sua homenagem a Nara Leão, passando pelo gaúcho Vitor Ramil, os mexicanos do Cabezas de Cera e os pernambucanos do Cordel do Fogo Encantado, casa lotada. Lirinha, do Cordel, apresentou a peça que escreveu e co-dirigiu com a mulher, a atriz Leandra Leal, Mercadorias e Futuros, em que tenta vender o livro homônimo que de fato redigiu e lançou na Bienal. Um achado em termos de humor. O que não se pode dizer da aparição de Chico Anysio, homenageado da Bienal, e que estava lançando o livro Três Casos de Polícia. Depois de começar de uma maneira animadora, dizendo que hoje em dia Fortaleza já está integrada à “grande Maranguape” – município minúsculo na vizinhança da capital onde nasceu -, alegou que só estava livre para escrever porque “desde 2002 a Globo me colocou na geladeira” e que “a homenagem servia para mostrar que não dependo da emissora para ser reconhecido”. Soou amargo.

O pior foi ouvir de Floriano Martins que essa era uma das primeiras homenagens que Chico recebia em sua casa. “Cearense não gosta de cearense”, afirmou, apontando a pouca freqüência registrada pela bem montada retrospectiva do pintor abstracionista lírico Antônio Bandeira no Espaço Nobre da Unifor. Martins disse que uma vez o cantor Belchior, no auge da fama nacional, confidenciou-lhe que seu sonho era “tornar-se conhecido no Ceará”. Senti isso na pele, ou quase, ao usar uma camiseta com um gato do Aldemir Martins, cearense notório. O máximo que ouvi de Bi, assessora da Bienal e cover da atriz americana Julia Stiles, foi “bonito gatinho”.

E o Ceará ferve. Quinta-feira é dia de caranguejada. Fui atrás do bando de latinos para a Praia do Futuro em busca de crustáceo e show de humor, especialidades locais. Os preços nos afastaram do tradicional Chico – um couvert artístico na base dos US$ 50 pra desespero de nuestros hermanos – e acabamos a noite no Atlantis, que se apresenta como “primeiro restaurante temático” com direito a pirâmide, múmia, cascata e um show com a simpática cantora Deborah Lima e sua banda. Em outro dia fui procurar no jornal onde Rubi, cantor goiano radicado em São Paulo, estava cantando e quase caí para trás. Além de Rubi, apresentavam-se naquela noite o metal finlandês do Nightwish, o punk californiano do Offspring, o sertanejo de Zezé Di Camargo e Luciano e Bruno e Marrone, a bossa primal de Leny Andrade, Dóris Monteiro e Claudete Soares. Em um teatro, Chico Anysio dividia o palco com André Lucas, seu filho, na peça sintomaticamente intitulada De Pai Para Filho, enquanto em outro mais um filho do humorista, Bruno Mazzeo, apresentava Enfim, Nós. Para completar, os baianos da Timbalada animavam o 13º Carnabral, os novos filmes de Woody Allen e 007 chegavam às telas e o bluesman Magic Slim ia tocar no anfiteatro do Dragões do Mar. Magic Slim?

Em um pôr-do-sol no calçadão do Meireles estavam sentados comigo o moçambicano Patraquim, o mexicano Eduardo Langagne e o cabo-verdiano José Luiz Tavares, quando passaram para um lado, mais que silenciosos e lépidos, dois policiais a bordo de patinetes elétricos para lá de futuristas. No sentido contrário, pela rua, vinha um trem cheio de crianças escoltadas no primeiro vagão por personagens de dois Walts famosos, o Pica Pau, do Lantz, e o Pato Donald, do Disney, e no outro só Maurício de Souza, ou seja, Mônica, Cebolinha e Cascão. Pendurado entre os dois se agitava o lobista emplumado Zé Carioca.

O cabo-verdiano deu um gole de cerveja e falou, “isto sim é que é mestiçagem, pá”.


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