Dentre os artistas que se destacam na nova geração do rap nacional, o paulistano Rashid é um dos mais novos. Com apenas 25 anos, Michel Dias Costa (seu nome de batismo) está longe, no entanto, de ser um novato, e talvez por isso colha tão cedo os frutos de seu trabalho. Pois da estreia nos palcos e nas batalhas de freestyle até chegar ao disco “Confundindo Sábios” – que saiu em 2013 e tem agora shows de lançamento no Sesc Belenzinho – passaram-se cerca de dez anos, com um EP, duas mixtapes (discos de músicas compiladas) e shows por vários cantos do País.
Ainda adolescente, em batalhas como a do Santa Cruz, a Rinha dos MC’s e a Liga dos MC’s, Rashid já havia mostrado que determinação e talento para a rima não lhe faltavam. Mas aos 19 – depois de morar em Minas Gerais dos 13 aos 17 e de volta à zona norte de São Paulo –, quando decidiu que o rap seria seu sustento, encarou uma escolha difícil para quem mal tinha dinheiro para pegar o transporte público. “Eu falei: agora vai, num importa mais nada, vou fazer isso aí da minha vida e vai dar certo”, conta ele. E deu.
Hoje Rashid tem meio milhão de seguidores no Facebook – “e pra pessoa curtir ali, pelo menos de uma música ela tem que ter gostado”, diz ele, rindo – e as 5 mil cópias tiradas de “Confundindo Sábios” (também mixtape) já estão perto de esgotar. As três noites de shows de lançamento terão como convidados importantes nomes que participaram do novo trabalho, entre eles Emicida, Di Melo, Kamau, Rael, Daniel Cohen e Tássia Reis.
Rashid não esconde a felicidade com o bom momento, nem a surpresa com a velocidade do reconhecimento alcançado recentemente. “2013 foi um ano de crescimento monstro! É absurdo.” Mas não se mostra deslumbrado, e sim bem disposto a seguir fazendo seu rap de letras críticas e batidas fortes. Rashid recebeu a reportagem da Brasileiros para uma entrevista e sessão de fotos em sua casa, no bairro do Mandaqui, na zona norte de São Paulo. Falou sobre o novo trabalho, sobre rap nacional e gringo, sobre política e violência policial. Leia a conversa abaixo:
Brasileiros – Você lançou recentemente “Confundindo Sábios”, que você chama de mixtape, não de disco. É uma compilação dos trabalhos mais recentes?
Rashid – Sim, com algumas coisas que eu já tinha soltado, outras inéditas. A mixtape livra um pouco da responsa de dizer que é um álbum, até porque quando eu for fazer um disco mesmo, quero que seja de outra forma, com um diretor musical e tal. Fazer como manda o script. Essas músicas foram feitas num esquema mais rápido mesmo. Recebo as batidas, aí escrevo as rimas e gravo. Uma ou outra tem mais coisas, guitarra, percussão. Mas a maioria é nesse esquema mais freestyle.
Brasileiros – E pensando em comparação aos trabalhos anteriores, como você vê essa mixtape? O modo de compor, as temáticas tratadas, as suas preocupações… mudaram muito? Quer dizer, é um momento diferente, mais maduro talvez?
R – Sinto diferença. A forma de compor mudou. Alguns pensamentos lá do começo também voltaram, assim como de outras coisas a gente acaba se livrando, de certas manias. Perdi também o medo de falar de certos temas. Antes achava que se eu falasse disso ou daquilo alguém ia reclamar, julgar… Mas uma hora você olha e pensa: na moral, vou ser sincero no meu som, vou falar! E é isso. Até porque, quando você começa a fazer algum barulho, ao mesmo tempo em que você conquista muitos fãs, você conquista muitos haters. E eu ficava na maior neurose com uns comentários na internet. Mas comecei a ver que tem esses comentários em todos os vídeos, de qualquer artista, pequeno, médio ou grande (risos). E eu agora larguei esse receio do que as pessoas vão dizer, e fiz a música que eu queria fazer.
Brasileiros – E tem essa coisa da patrulha do politicamente correto hoje em dia…
R – Sim, principalmente com o rap, que é uma música muito política.
Brasileiros – E o nome, “Confundindo Sábios”?
R – Tem um versículo da Bíblia que diz algo assim. Que Deus usa as coisas loucas para confundir as sábias. Eu cresci indo na igreja com minha mãe, e desde que eu ouvi pela primeira vez esse bagulho, ficou na minha mente. Porque acho que tem muito a ver com rap, com periferia, com o momento do rap, que se firmou. E pelo fato de ser minha última mixtape antes de um álbum oficial, eu queria que o título trouxesse essa ideia de que num é mais só uma onda… Olha só, tem a ver com o momento do país, do povo, do meu momento, de antes não ter nada na vida e agora conseguir viver fazendo a música que eu amo.
Brasileiros – Vejo no disco duas linhas fortes que percorrem as letras, e que se misturam. Uma visão às vezes mais pessimista, de que há um mundo hostil, uma realidade dura, de falta de oportunidades; e de outro lado uma visão otimista, de que se você lutar você consegue, de que não se deve nunca desacreditar. Faz sentido?
R – Sim. E eu diria que essas duas linhas correm juntas no meu trabalho, e no hip hop no geral. Porque viver de rap é viver do sonho. E quando você sonha – seja lá o que você quer fazer –, todo dia você bate a cara em vários muros. E aí derruba um, e amanhã tem outro que você tem que derrubar também. Então, assim, minha fé no rap sempre foi inabalável. Ia dar certo, não importando se eu ia chegar no topo ou não. Mas a ideia é: vai dar certo, tá ligado? (risos) Mas as dificuldades sempre foram muito presentes. Então tem que transformar as dificuldades em combustível, em poesia.
Brasileiros – E apesar de as letras falarem de uma realidade bem brasileira, as bases e a musicalidade trazem também bastante influência da música gringa, do rap americano…
R – Acho que tem. Muitas coisas são influências dos produtores, que mandam as bases para mim. E o rap norte-americano é uma grande escola.
Brasileiros – Falando nisso, quem você citaria como suas grandes referências no rap? Nacional e internacional…
R – Se for pra citar um nome daqui e um de lá: Racionais e Jay-Z. Racionais desde sempre, desde que eu comecei a entender o que era rap, que foi na época do “Sobrevivendo no Inferno” (1997). E o Jay-Z eu comecei a ouvir por causa de um DVD chamado “Fade to Black” (2004), e não parei mais de acompanhar.
Brasileiros – E além do rap?
R – Gosto muito de Cartola, gosto de Chico Buarque, de Adoniran Barbosa, de Seu Jorge. Escuto muito samba, samba antigo. Porque é muito poético, tem muito a ver. O samba me faz tentar trazer mais poesia pro meu rap. E também ouço Tim Maia, Jorge Ben…
Brasileiros – Você falou anteriormente em dificuldades… Me parece que a realidade em que os Racionais faziam rap nos anos 90, por exemplo, é muito diferente desta em que você faz rap hoje. Houve melhorias sociais, a desigualdade diminuiu etc. Você concorda? Você percebe essas mudanças?
R – Mudou, e isso é perceptível. Mas não dá pra achar que agora é Brasil ao lado de Estados Unidos e Japão. Mas, sim, você sai na rua ali e passa um moleque de 9 anos, da favela, com celular. Porra eu tive celular com 20 anos! Ou passa uns moleques de moto. E minha mulher fez faculdade, vinda de uma região em que ninguém fazia faculdade. Na minha casa, por exemplo, minha mãe nunca chegou a falar sobre faculdade comigo. Era uma realidade muito distante. Hoje vejo vários caras entrando na faculdade. Então mudou, mas tem muitas coisas que continuam iguais.
Brasileiros – Você tem boas expectativas do governo Fernando Haddad em São Paulo?
R – Tenho. Mas acho que ele pegou a cidade, digamos assim… Sabe quando você tá numa casa com os amigos e a louça vai acumulando na pia? Acumula, dá bicho, aparece lagarto, escorpião, e aí falam: hoje é sua vez de lavar! Acho que ele pegou isso aí em São Paulo, depois do Kassab. Eu tenho esperança de que ele consiga mexer em algumas coisas, mas é difícil também. É mais ou menos o que o Obama pegou nos EUA, dadas as devidas proporções, claro. Mas o Obama chegar depois do Bush é que nem o Haddad chegar depois do Kassab.
Brasileiros – Agora, a violência policial parece que não melhorou…
R – Não, isso tá horrível. Olha lá, o Douglas [jovem de 17 anos morto pela polícia na zona norte de São Paulo], que tava numa esquina e o policial chegou atirando. E dizem que ele perguntou: “Por que o senhor atirou em mim?”, o que virou o tema de uma campanha, que a gente foi fazer protestos. É terrível. Podia ser eu ali, meu primo, meu amigo, qualquer um. E tudo o que aconteceu no ano passado também, nas manifestações, que a polícia saiu dando porrada. Tá errado! Os policiais são seres humanos também. E a polícia é mal paga, mal instruída, eu tenho noção disso. Vários policiais podem até ser meus vizinhos aqui e tal. Mas é uma polícia ignorante, não dá para negar. É só bater os fatos…
Brasileiros – Voltando à música. Você faz rap em um momento em que ele já não é mais um som marginalizado, ele está no “mainstream” também. De qualquer modo, você acha que o rap ainda é a música dos “oprimidos”, digamos assim? Um som muito mais identificado com as pessoas pobres…
R – Acho que sim, essa raiz não tem como deixar. Olha o rap norte-americano por exemplo. Mesmo com aquele rap ostentação, falando de grana e umas coisas absurdas – jatinhos e lanchas –, mesmo assim a população pobre, da periferia, ouve. É o som oficial dos caras. Aqui no Brasil a gente tem outras coisas também. Tem o samba, o pagode, o tecnobrega, o arrocha, o funk… mas eu ouso dizer que, pensando em São Paulo, o rap é a música oficial da cidade. E claro que o som chegou em outros lugares, em outras pessoas, outras classes sociais. Mas continua muitas vezes falando das mesmas coisas, mesmo que a linguagem tenha mudado. O último disco dos Racionais, se bobear até policial escuta. E no Morumbi escutam também, e aqui no Lauzane escutam. Tem muita gente que ouve que não é de periferia, mas é ainda uma parada dominante na periferia.
Brasileiros – Já teve muita discussão sobre essa coisa de o rap chegar nos “playboys”, dos rappers tocarem em casas de show para ricos e tal. O que você acha disso? Você quer que seu som seja ouvido por todos, seja o “playboy” ou o “favelado”?
R – É muito simples. Acredito que a nossa música tem que chegar nas pessoas. A gente fala uns bagulhos “da hora” no som, e quer que as pessoas escutem os bagulhos “da hora” que a gente fala. Vai onde tiver que ir. Se os Racionais vão tocar em um clube de playboy, e daí? Eles fazem uma porrada de shows de graça nas quebradas… Então é isso, às vezes as pessoas querem apagar toda a caminhada de um artista por causa dessas coisas. Olha a luta dos caras pelo rap, pelas quebradas! Se os Racionais precisarem provar pra alguém quem eles são, eu posso parar de fazer música agora, porque tá tudo errado.
Brasileiros – Para acabar, o que é a “sabedoria de loucos”, que você sempre fala?
R – Cara, eu conheço pessoas que estudaram só até a sexta série, e se você conversa com elas você vê que poderiam lecionar. E não foi pelo que elas aprenderam na escola. Então acredito que esse tipo de inteligência é a sabedoria dos loucos. Porque você anda na rua, você aprende. A escola me ensinou a ler, mas o meu interesse por leitura foi despertado pelo rap. Na época que eu batalhava [batalhas de Freestyle] eu lia um livro por semana. Eu morava no fundo da igreja com a minha avó, e lá tinha uma biblioteca, com livros não só de religião. Eu li quase tudo, até manual de torneiro mecânico (risos). Eu lia, porque sentia necessidade de ter vocabulário para o meu rap. E isso não aprendi na escola, nem vendo o Jornal Nacional. Essa é a sabedoria de loucos.
Rashid – Lançamento de “Confundindo Sábios”
Sesc Belenzinho (Rua Padre Adelino, 1.000)
Dias 16, 17 e 18 de janeiro, às 21h30
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