Morreu o jornalista José Onofre Krob Jardim. Foi na terça-feira 19, em Porto Alegre. As causas: vida sofrida, punhaladas metafóricas nas costas e, finalmente, parada cardiorrespiratória. Dono de erudição parelha com a Enciclopédia Britânica, fazia de seus textos trabalhos de ourivesaria. Produziu jóias que estão em baús de várias redações. Fazem parte, agora, do butim enterrado pelos bucaneiros que dominam os mares da imprensa. Genial e genioso, Zé não era de fácil convívio. Natural de Bagé, era daquele tipo de gauchão acostumado a dar com pelego molhado nas tropas orientais (uruguaios e argentinos) que se “fresqueassem” neste lado da fronteira. Carregou o costume para as cidades grandes por onde passou. Mas com os amigos, era de uma generosidade materna. Zé Onofre era meu amigo.O finado odiava pieguices, portanto, com medo que me venha dar pelegaço à noite, ouso apenas lembrar do Zé Onofre engraçado. Uma homenagem ao humor refinado, exibido a conta gotas que, até pela raridade, serviram de elixir da vida para quem teve a imensa fortuna de receber uma dose. As matérias-primas preferenciais eram, claro, o cinema e a literatura, áreas que o sábio dominava como poucos. Paulo Francis dizia que Onofre era o melhor crítico literário do Brasil. Mas minha coletânea de melhores momentos envolve histórias de outro campo: o de futebol. Torcedor do Internacional de Porto Alegre, o homem acompanhava e entendia do esporte com o mesmo vigor intelectual que se espera de alguém de seu talho.Assim como fez nas artes oficiais, Zé demoliu mitos do folclore futebolístico, filosofou pérolas e contou histórias. Por exemplo: negava com veemência a autoria da frase “Agradeço as Brahmas que a Antártica nos enviou”, ao ex-presidente corintiano Vicente Matheus, como ficou popularizado. “Foi o Alcindo quem disse isso, no Beira Rio, depois da conquista de um campeonato”, corrigiu Onofre. Por ser colorado, o crítico pegou para cristo o artilheiro Alcindo, que o atormentou inúmeras vezes com gols para o Grêmio. Passou a coletar as trapalhadas do centroavante, tão pródigo em tentos quanto em bobagens.Contava que Alcindo, correndo em direção ao gol colorado, colocou tanta paixão e velocidade no esforço, que ultrapassou a linha de fundo, percorreu toda a extensão do território restante até o fosso tentando frear. Não deu. O jogador caiu no buraco que separa o público do palco gramado. O atacante era uma mula na força e resistência: saiu-se apenas com pequenas escoriações desse acidente. Depois, entrevistado pela Rádio Gaúcha, explicou o evento. “Fui indo, fui indo e acabei fondo”.Gravada na memória de Zé Onofre, e passada para a posteridade, tem outra entrevista. Esta de um goleiro de timinho do interior do Rio Grande, que teve a infelicidade de tomar sete gols do ataque infernal daquele timão do Inter capitaneado por Falcão. No fim do jogo o repórter foi ouvir explicações. “Mas então, tchê, como é que tu deixas passar sete?”. Ao que o goleirão responde: “Bá! Mas também, vem bola diariamente…”Trabalhavam na mesma redação, Onofre e o também ultragaúcho Zé Américo. Este era comunista roxo. Durante a Copa da Alemanha, em 1974, o esquerdista acreditava que torcer para a seleção era dar força para a ditadura. Assim, durante as partidas, com os colegas sofrendo de frente à telinha da tevê, Américo seguia impávido em sua rotina de trabalho. Não dignava sequer um olhar de esguelha à guerra transmitida. Até que chegou o jogo contra a Polônia. Um sufoco. Todo mundo de coração na garganta. E o comuna quieto. No lance mais empolgante do jogo, o ataque brasileiro bombardeou a meta polaca. Dinamite manda a bola na trave, alguém mais pegou o rebote e mandou a bomba, para defesa sensacional do goleiro, que espalmou. A galera não tinha força para gritar mais do que “UUUU!”. No bate-rebate, Américo, já de pé, dá o comando com a agonia dos que repeliam tropas alemãs no fim do cerco a Stalingrado: “Vai! Vai! Dá de fiança! Dá de fiança!” Alguém, acho que o bom Dinamite, parece ter ouvido. Deu de fiança (seja lá o que for isso) e a bola entrou. O grito de gol saiu de todas as bocas. Américo foi carregado em triunfo por uma multidão agradecida por seu comando patriótico.Zé Onofre contava isso com o sorriso do gato de Alice no País das Maravilhas. O que lhe era mais do que apropriado, já que amava aos gatos. E como eles, tinha sete vidas. A última, desgraçadamente, expirou muito cedo. Tinha 66 anos.


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