[48 de 100] O minimalismo do cotidiano, segundo Raymond Carver

img285Uma síntese da singularidade do universo literário do escritor americano Raymond Carver (1938-1988) poderia ser o primeiro parágrafo de “Fique quieta, por favor”, conto que fecha livro homônimo, primeiro do autor a ser publicado no Brasil, em 1988, mesmo ano de sua morte, pela Rocco: “Quando Ralph Wyman tinha dezoito anos e estava saindo de casa pela primeira vez, seu pai, diretor da Jefferson Elementary School e solista de trompete na Weaverville Elks Club Auxiliary Band, advertiu-o de que a vida era uma coisa muito séria, um empreendimento que exigia firmeza e força de vontade dos jovens que o enfrentam pela primeira vez, uma empreitada muito árdua, todo mundo sabia, mas também compensadora, o pai de Ralph acreditava nisso, e falou.”

O jovem Wyman fazia parte da galeria de sujeitos anônimos que Carver consagrou em dezenas de histórias – menos de uma centena –, quase sempre curtas, ácidas, mas delicadas e carregadas, invariavelmente, de desespero velado, mostrado do modo sutil. Mestre do humanismo colocado às avessas, ele temperava suas narrativas com certa poesia e pungência. O escritor era filho confesso e direto do chamado realismo americano, que marcou a literatura nos Estados Unidos ao longo de 1900, por seu caráter inconformista – que ia de Jack London (1876-1916) aos beatniks da década de 1950. Carver é considerado um dos genitores do minimalismo, escola revolucionária e importante da segunda metade do século passado. Tudo isso fez com que se tornasse cultuado por contistas e romancistas em todo o mundo – criava histórias que tinham sentido por meio da forma, essencialmente.

O autor, desse modo, captou em suas tramas, quase exclusivamente, fatos banais e personagens consideradas anônimas e de vidas simples, comuns, como a maioria do povo americano, sempre às voltas com as trivialidades da vida. A partir da intimidade de casais, desnudava seus dramas – com ênfase em episódios que podiam ser separações, demissões, tristezas, subempregos e paixões intensas. Carver buscava, assim, transformar a percepção do leitor, ao tentar tornar belo e poético o que era corriqueiro. É o que se vê nas 22 historinhas de “Fique Quieta, Por Favor”, publicadas originalmente entre1963 e 1976, onde ele exercitou a chamada estética do mínimo, em que se preocupava em usar poucos elementos fundamentais como base de expressão.

São narrativas elaboradas com esmero, quase como um exercício de construção literária, que fluem em leituras prazerosas e instigantes, pois explora uma rotina em que provoca profunda identificação com o leitor. O livro abre com a história de uma garçonete que fica fascinada por um homem tão gordo que se refere a si mesma no plural para se expressar. A moça, porém, fica impressionada especialmente com seus dedos grandes, grossos, roliços e exagerados, enquanto tenta de todas as formas atendê-lo de modo satisfatório e sem preconceito – isto é, fazer comentários sobre a quantidade de comida que devora. Pouco a pouco, ela se identifica tanto com ele que reduz, aos poucos, o marido a uma “coisinha de nada, praticamente imperceptível”.

Em outra, o marido ouve comentários deselegantes de dois estranhos sobre o excesso de peso de sua esposa, atendente de uma lanchonete, e a força a um regime, sob intensa vigilância e pressão sem sentido. A pedido dos vizinhos para que alimentasse seu gato, um casal visita regularmente o apartamento e descobre o fetiche de sentir atração pelo cenário, de modo a experimentar o renascimento do amor e da felicidade que pareciam mortos entre eles, por meio de objetos e roupas alheias. Um menino é ajudado pelo pai num atrito com os moradores de casa próxima. Agradecido, procura exprimir-lhe o afeto que tem por ele, mas não sabe como fazê-lo. Todos esse personagens são, de certo modo, perdedores de uma rica e poderosa nação, que apenas tentam levar sua vida, ante a angústia e a necessidade de pagar contas e comer. Seus sonhos foram sepultados faz tempo e chegam à conclusão de que é preciso apenas seguir em frente. Sem esperanças.

Seus personagens são tipos como zelador, serralheiro, entregador, garçonete, caixeiro viajante etc. Apesar de ter escrito contos em sua maioria amargos sobre a solidão do homem urbano, numa América nada boazinha para com seus filhos, e ser descrito como o autor que pintou o cotidiano de seu país de modo tão impactante – em apenas quatro livros de contos –, Carver estabeleceu, por meio da literatura, um jeito peculiar de tratar “a mais completa derrota do sonho americano”. Era como se ele olhasse para o freguês ao lado, sentado no balcão de um bar, e tentasse imaginar o quanto a sua vida anônima e cheia de frustrações, angústias e decepções poderia lhe render uma boa história. Não precisava ter vivido nada de excepcional nesse sentido. Tramas assim foram reunidas na década de 1990 para compor o longa-metragem “Short Cuts – Cenas da Vida”, de Robert Altman, e sua versão em livro foi publicada em português também pela Rocco.

Não se deve esperar grandes reviravoltas ou finais arrebatadores em suas histórias – nem imaginar onde cada uma vai parar. Não era isso que ele perseguia. Seu propósito estava cortar com um estilete afiado as cruezas que todos vivenciam no cotidiano, as dificuldades financeiras, as decepções por causa de uma existência medíocre e tediosa, a impossibilidade de confiar e a possibilidade de ser traído. Um crítico americano escreveu que, em suas curtas narrativas, Carver “revelava o estranho oculto por trás do banal”. O que ele de fato fazia era mais um pouco que isso: captava as idiossincrasias das alegrias e tristezas do comportamento humano, no movimento aleatório das experiências da vida. Uma visão de mundo que alguns poderiam chamar de sombria Ou de hiper-realista.

Além de impregnar suas narrativas de intensidade dramática, Carver se mostra um mestre do diálogo para desenvolver situações muitas vezes bizarras. Numa entrevista de 1928, ele observou que “tudo é importante em uma história, cada palavra, cada sinal de pontuação. Eu acredito muito em economia na ficção.” E ressaltou que algumas das suas histórias, como “Vizinhos”, eram três vezes maiores em seus primeiros rascunhos. “Eu realmente gosto do processo de reescrever. Os começos são muito importantes. Uma história é abençoada ou amaldiçoada com suas linhas de abertura. Editores têm tantos manuscritos de olhar através de que muitas vezes tudo o que fazem é olhar para o primeiro parágrafo ou dois a menos que seja um autor que sabe.”

Descrito como expoente do chamado realismo sujo americano e célebre por seus contos e poemas minimalistas, Carver se consagrou ao publicar um número expressivo de contos em diversos periódicos importantes, como “The New Yorker” e “Esquire”, só depois reunidos em livros. Desde a década de 1960, suas histórias têm sido incluídas nas mais importantes coletâneas norte-americanas, como “Best American Short Stories” e “O. Henry Prize Stories”. O escritor morreu em Port Angeles, Washington, aos 50 anos, vítima de um câncer. Enfim, esqueça o magnífico e cultuado filme de Altman e mergulhe apenas nas histórias impressas de Carver, unidas por um único tema: a desesperada luta para se manter em vidas insuportáveis, embora a maioria dos personagens com quem tanto nos identificamos não perceba isso.


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