Não se pode julgar o blogueiro pela cara

Julien Sorel no cinema
Julien Sorel no cinema

Para justificar o título, não sei o que se julgaria pela minha cara, então achei melhor me apresentar pelo lado que me define bem, ao menos em parte: as leituras.

Desde que me entendo por gente, tenho a sensação de estar com um livro na mão. Há uma foto minha, de quando tinha uns dois ou três anos, em que eu estou sentado no chão, brinquedos coloridos em volta e um livro no colo, que parece abduzir minha atenção.

Quando eu tinha uns seis, amigos dos meus pais perguntaram o que eu mais gostava de ganhar de presente. Diante da resposta “livros”, eles ficaram horrorizados, achando que papai e mamãe, professores universitários, estavam “sequestrando” minha infância, ou algo assim, impondo um dever intelectual a quem deveria estar correndo atrás de uma bola.

Constrangidos, explicaram que eu era assim mesmo, como seu eu fosse um pequeno alienígena. 

Assim mesmo. Mas corria atrás de bola, andava de bicicleta, tinha amigos. Só não via televisão, pois essa só apareceria alguns anos depois, com o Gordo e o Magro e os Perdidos no Espaço.

Não tinha nada de alienígena, muito menos de intelectual precoce. Li o Robson Crusoé e As aventuras do Barão de Munchausen como se estivesse vendo um filme 3D em tela maxiplus. Era absolutamente crédulo, tudo o que os escritores me contavam eu acreditava. E viajava com eles. Se eu usei a palavra abduzido antes, não foi à toa.

Monteiro Lobato era meu herói, assim como Mark Twain e Julio Verne. Deste último, lembro de ficar com olhos míopes arregalados por horas depois de ler um trecho, que até hoje me deixa arrepiado. Está no Miguel Strogoff. É a famosa cena em que ele, condenado a perder a visão por meio de uma lâmina incandescente, escapa à sina porque suas lágrimas apagam o fogo do aço que se aproxima. Não lembro a razão das lágrimas. Acho que ele vê sua mãe na multidão que viera assistir à execução.

O fato de parecer inverossímil só aumentou a impressão forte desse trecho. Era a prova do poder da literatura. Tudo nela é possível. Tudo, se escrito com força e estilo, é plausível. Talvez eu seja agnóstico por isso. Mesmo arqueando a sobrancelha com ceticismo, não descarto nada. Eram os deuses astronautas? Não creio, mas talvez fossem. 

Literatura dá músculo e alongamento. Podemos correr mais longe, em qualquer direção. Podemos pegar qualquer maçã com o esticar do braço, ver qualquer paisagem com o esticar do olho. Estar aqui e ali ao mesmo tempo. Eram os deuses escritores?

Alguns personagens me marcaram profundamente, foram espelhos que me permitiram caber em seus reflexos. De imaginação romântica, mas com espírito crítico, não escapei de me ver na pele do sedutor Julien Sorel, de O Vermelho e o Negro, moralmente ambíguo, mas de uma força de vontade irredutível. É a expressão própria da formação do indivíduo, que tem de batalhar num matagal de dúvidas e enfrentar desejos e ambições violentos.

O Hans Castorp, de A Montanha Mágica, também, ainda que, de certa forma, seja um negativo de Sorel. Doente, preso a um sanatório, vive mais da conquista de ideias que de mulheres e posições sociais. Não que isso tudo não esteja representado no soberbo romance de Thomas Mann. Mas aqui as aventuras são mais da mente que do corpo, ainda que exista a misteriosa Claudia. Na excentricidade dos pontos de vista dos demais doentes, Castorp reflete sobre os grandes temas do homem e descobre a si mesmo – o que nos ajuda, consequentemente, a fazer o mesmo (quem disse que literatura não é útil?)!

Samuel Beckett.
Samuel Beckett.

E o que dizer do arrogante e contraditório Raskolnikóv e do existencialista apático Meursault? Ambos se rebelam contra deus e a lei dos homens, o primeiro por soberba, o segundo por causa do sol nos olhos. Qual o valor da vida e que peso tem a moral quando a inteligência ou um bem imaginado é superior ou quando o descaso com a própria existência e a dos outros é mais forte? As conclusões do Crime e Castigo de Dostoiévski e do Estrangeiro de Camus são bem diferentes, mas ambos livros, de uma beleza perturbadora, iluminam o lado escuro da consciência contemporânea.

Poderia ficar aqui o dia inteiro escrevendo. De Flaubert e Beckett aprendi o rigor do estilo, a profundidade do pensamento. De Machado, Voltaire e Swift, a ironia. Do meu amigo Reinaldo Moraes e seu Tanto Faz, e do Jogo da Amarelinha de Cortázar a liberdade. Do Meu último suspiro, memórias de Buñuel, a espirituosidade, o humor idiossincrático, a autenticidade. De J.G. Ballard, a distopia elegante. De Javier Marías, o fraseado longo, as digressões inteligentes. De…de…

Bom, espero que talvez tenha respondido à primeira pergunta, lá em cima. Um abraço! 


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