Depois de quase 33 anos trabalhando como mordomo na Embaixada do Brasil na Inglaterra, oito embaixadores e embaixatrizes por patrões, e de ver circular à sua frente não apenas diversos presidentes brasileiros e autoridades do governo, mas também príncipes, princesas, rainhas, primeiros-ministros e ministros de Estado, Santana, a poucos anos da aposentadoria, deu-se mal com o atual embaixador brasileiro em Londres.

Apesar da oferta para tomar conta de um castelo na República da Irlanda, resolveu que pararia de trabalhar, que se aposentaria – apesar de antes do planejado – e que trataria de bem viver a vida, enquanto tivesse saúde. Se poria a viajar, a conhecer o mundo e a visitar todos aqueles dispostos a recebê-lo de braços muito abertos, os ex-patrões, suas famílias e mesmo os hóspedes a quem fielmente serviu e que até hoje perguntam pelo Santana, como aliás fez recentemente o governador José Serra, ao notar a sua ausência na residência da Embaixada do Brasil em Londres.
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Impossível não distingui-lo: jeito de indiano e fala de português, Santana Filômeno Milagres Dias nasceu em Goa, no tempo em que o enclave sobre o mar arábico era português. Ali, em tempos de educação européia, aprendeu português, inglês, francês, “e latim também, mas só a doutrina”. Foi, em pequeno, explica, um “altar boy“, ou seja, coroinha. Nunca deixou de ser católico, daqueles de jamais faltar à missa “em dias de obrigação”.

Quando Goa, esse antigo estado português à beira-mar, foi invadido pela União Indiana no dia 18 de julho de 1961, data que jamais há de lhe sair da memória, Santana deu entrada com pedido de passaporte português junto ao consulado brasileiro em Nova Délhi, encarregado, à época, de cuidar dos nacionais de Goa que desejassem ir para Portugal. Via Karashi, Paquistão, foi como chegou a Lisboa, onde logo foi chamado a prestar o serviço militar obrigatório. Rolava a guerra colonial na África, e, rápido, viu-se transformado em sargento e morando em Macau, no extremo oriente, território hoje devolvido à China. Depois de breve volta a Portugal, novamente partiu, desta vez para Angola. Ali passou sete anos de vida civil, até o país conquistar sua independência. Diante da situação política instável e problemas com a segurança, achou de bom alvitre, sendo ele um cidadão português, que tratasse de partir. Foi o que fez, chegando a Londres em 1975.

Depois de três meses trabalhando num hotel em Park Lane, foi procurar trabalho na Embaixada do Brasil. O embaixador era Roberto Campos. Havia vaga. O elegante e impecável mordomo Manuel Teimão, do tempo do embaixador Sérgio Corrêa da Costa, migrara para a embaixada de seu país de origem. E assim, sob os auspícios de Stela Campos, iniciava-se a sua longa e nada monótona carreira de mordomo na Embaixada do Brasil em Londres.

Santana resolveu casar com a bela Maria Julia, que fez vir de Portugal e que virou arrumadeira. Tiveram um filho, tudo sob as bênçãos da embaixatriz Stela, cuja bondade Santana não esquece. Havia outro copeiro, algo desandou e o casal separou-se. Durante o período Campos todos continuaram ali, na santa paz do subsolo, onde estão situadas a grande cozinha e as dependências dos empregados, até que, passados sete anos, deu-se o que inevitavelmente acontece em qualquer embaixada, a troca de titular.

Foi-se Roberto Campos.

Veio Gibson Barbosa. O embaixador Mário Gibson Barbosa tinha sido ministro das Relações Exteriores no governo Médici, depois embaixador na Grécia e estava casado com a segunda mulher, também de nome Julia. Consta do anedotário, que Santana, ao atender a um chamado para o novo patrão, respondeu que o embaixador estava no banho, daí sua impossibilidade de chegar ao telefone. Ao que Gibson depois, furioso e indignado, teria se posto a repetir: “Embaixador não toma banho… Embaixador não….” Segundo Santana, o embaixador Gibson “era maravilhoso, humano com todos os empregados e nos dava aumento todos os anos”. Não confirma a história, e acha que pode ser “conversa da embaixatriz Julia”, que temendo um novo “shame and scandal in the basement“, resolveu despachar a xará Maria Julia, o que afastou Santana do convívio diário com o filho Michael: “Ela andava sempre a cavalo e dizia preferir bichos a crianças”. Resultou que Maria Julia foi morar em palácio, mais precisamente em Kensington Palace, onde trabalhou durante 14 anos como arrumadeira do príncipe Michael of Kent e sua mulher Marie Christine. O filho de Santana, Michael, que em criança, apesar de “não ser muito permitido”, brincou com crianças reais, formou-se com loas pelo Imperial College, é hoje analista de sistemas no Banco Schroeder e “um filho maravilhoso que há até quem chame de docinho”. É o que diz o orgulhoso pai, revelando que Michael “ganha umas três vezes mais do que eu ganhava na embaixada”.

Depois dos Gibson vieram os Souza e Silva, Celso e Cuca: “Ele era normal, nem contra nem plus. Já a embaixatriz Cuca me adorava”.Foi quando, pela primeira vez, viu Margareth Thatcher, na embaixada. Era a primeira-ministra da Grã Bretanha e foi homenageada em jantar na residência. Depois dos Souza e Silva, veio a era Paulo Tarso & Lúcia Flecha de Lima: “Foram quase quatro anos de muito trabalho, de muito serviço, de vida social muito intensa, família grande. Às vezes a gente servia um jantar para 14, 15 pessoas e em seguida tínhamos de botar a mesa novamente para mais nove, dez pessoas, os filhos e os amigos”. Foi quando se contratou um administrador para a residência, responsável pela manutenção, uma espécie de intermediário entre a embaixatriz e os empregados. Santana perdia, de certo modo, a primazia, mas nunca se queixou disso. Liderar nunca fora mesmo o seu forte, nem nunca assumiu a típica postura do english butler. Tem ótimas lembranças dos Flecha de Lima, dos hóspedes freqüentes como Antônio Carlos Magalhães e da princesa Diana, que ali às vezes passava os weekends, e “que era muito simpática e muitas vezes descia ao subsolo” mas ao lado de quem nunca tirou fotos “pois não era permitido”. Discreto, Santana se abstém de mais contar sobre esses anos tão manchete no Brasil.

A seguir vieram os cinco anos e meio em que lá estivemos, meu marido e eu, e que Santana insiste terem sido os melhores dos seus quase 33 anos na embaixada: “O embaixador Rubens Barbosa nos tratava a todos muito bem e jamais disse uma palavra que pudesse diminuir um empregado”. No dia de nossa chegada, que poderia ter sido em meados de dezembro, mas que deixamos para o início de janeiro, evitando perturbar o Natal e a passagem de ano de empregados que ainda não eram nossos, confesso que estranhei a fala desse mordomo com cara de indiano e sotaque de português, e que me pedia para alertar a família e amigos no Brasil para que não nos chamassem ao telefone no meio da noite. Com meus botões pensei, será que ele pensa que as pessoas no Brasil não têm educação ou noção de fuso horário? Anos depois constatei que, caso um telefone ou campainha de porta tocasse em hora esdrúxula, seria o fiel Santana, e não outro, a atender o chamado.

Incansável e cioso de suas responsabilidades como a de zelar pelo armário-cofre onde eram guardadas as baixelas e os talheres, Santana se gaba de ter sempre procurado economizar para o Brasil: “Nunca abri uma garrafa de vinho sem necessidade, não enchia copos sem ter a certeza que a pessoa quisesse mesmo beber e nada poderia sumir da adega. E também nunca deixei luzes acesas inutilmente. À minha frente sempre vinha a lembrança de quantas pessoas morrem de fome no Brasil”.

Do tipo passivo, não era de reclamar. De apenas duas embaixatrizes tem mágoa e queixas. Uma delas, segundo ele, fazia cara feia “quando me via com meu filho na área de serviço, mesmo que fosse dia de folga”, e a outra “pois vivia no sótão, só sabia torturar, interrompia as nossas refeições, mandava que limpássemos a casa de noite e não nos deixava descansar nem depois de uma recepção. Foram as únicas vezes em que tive de reagir, apesar de não ser de meu feitio”. E, filosofando, acrescenta: “Quem não respeita empregado é porque não sabe mandar”.

Santana teve a chance de ver duas vezes na embaixada, em carne e osso, Sua Majestade, a rainha Elizabeth II da Inglaterra. A primeira foi na gestão Roberto Campos, quando de uma visita de Estado, em 1976, do presidente Geisel à Inglaterra. Houve um banquete na residência para 150 pessoas com a presença também da rainha-mãe. A segunda, foi na gestão Rubens Barbosa, quando depois de mais de 20 anos, um presidente brasileiro, no caso Fernando Henrique Cardoso, em dezembro de 1997, era novamente recebido em visita de Estado, aquelas do tipo em que o chefe de governo estrangeiro, com sua comitiva, se hospeda em Buckingham Palace, e depois, ao término da visita, em retribuição às gentilezas e à hospedagem, recebe a rainha na embaixada de seu país. Foi feito um jantar para apenas 74 pessoas, com a presença de dez membros da família real, inclusive o príncipe Charles, e que Santana não esquece.

Fico sabendo por Santana que, quando o presidente Lula, anos depois, durante a gestão José Bustani, visitou a Inglaterra em caráter também de visita de Estado, ou seja, a convite da rainha Elizabeth, e se hospedou em Buckingham Palace, não aconteceu a festa na embaixada, o que fez Santana lamentar não vê-la ali uma terceira vez.

A visita dita “de Estado” difere das muitas visitas oficiais ou de trabalho que costumam fazer os presidentes. Não foi, portanto, nem uma, nem duas – foram inúmeras – as vezes que Santana viu presidentes brasileiros hospedados na embaixada. Conheceu José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco e tem fotos com FHC, Lula e muitas mais, ao lado de autoridades que por ali passaram. No tempo de FHC, abriu a porta para Tony Blair, Margareth Thatcher, ministros de Estado e presidentes de vários países, inclusive o ainda presidente do Peru, Alberto Fujimori, em visita de cortesia ao nosso então presidente.

Santana não perde uma oportunidade de viajar. Visitou-nos em Washington, onde o hospedamos na embaixada, e foi seguidas vezes a Paris visitar o embaixador Sérgio Amaral, que sucedeu a meu marido em Londres e, mais recentemente, para visitar o embaixador José Bustani, nosso atual embaixador na França que, por sua vez, foi embaixador em Londres depois que Celso Amorim deixou o posto para se transformar em ministro das Relações Exteriores do governo Lula. Desses dois casais, os Amaral e os Bustani, Santana tem as melhores lembranças. Janine Bustani teria chegado a chorar ao saber da aposentadoria antecipada do mordomo. E ficou tocada ao saber que, em sua viagem ao Brasil, Santana foi visitar sua mãe, dona Odette, “que esteve doente mas está muito bem”. Deles, só tem boas coisas a dizer. Foi por Amaral e Bustani, em diferentes momentos, hospedado na Embaixada do Brasil em Paris, e foi no apartamento de Rosário Amaral que se hospedou durante sua recente passagem por São Paulo, já em caráter de cidadão aposentado. Conta que viu crescer as meninas Adriana e Camila que “eu adoro e adoram-me” e que desejara ser o anfitrião, num restaurante, de um jantar de aniversário em homenagem a Rosário, o que acabou não ocorrendo, pois ela teve de viajar devido a uma morte na família. O embaixador Sérgio Amaral, por sua vez, convidou-o para jantar num restaurante e o embaixador Rubens Barbosa recebeu-o em casa para almoço. Esteve visitando os filhos dos ex-patrões, os netos que não conhecia, e ainda conseguiu encontrar-se com alguns ex-hóspedes da embaixada que “eram pessoas muito delicadas e me davam muito boas gorjetas”.

E assim, muito rápido, transcorreu sua primeira semana no Brasil.

Um motorista levou-o até Congonhas. Era hora de partir para Brasília. Santana estava convidado por Lúcia e pelo embaixador Paulo Tarso Flecha de Lima para conhecer a capital. Foi recebido com tapete vermelho. Jantou duas vezes com eles em casa e, por conta do casal, passou a semana num hotel com direito a guia motorizado. Embora não tivesse conseguido ver o governador Serra em São Paulo, sem desanimar, partiu com o firme propósito de abraçar o presidente Lula, “que sempre foi muito gentil comigo”.

Conseguiu: “Meu amigo de Goa!” – foi com essas palavras que o presidente o recebeu no palácio, às 15 horas de uma terça-feira, ao regressar de um almoço para o presidente da Indonésia no Itamaraty.

De excitação e alegria, Santana ligou-me bem cedo de Brasília, num daqueles horários em que as pessoas ainda podem estar dormindo. Contou ter sido recebido pelo ministro Marcos Vinicios Vilaça no Tribunal de Contas da União (TCU), que em Brasília só circulou de blazer e gravata, e que conseguiu, no Itamaraty, estar com muitos dos diplomatas que conheceu ao longo de seus 33 anos trajando dólmã de mordomo, abrindo porta, servindo a mesa e atendendo o telefone. A todos oferece, “pois quero retribuir as gentilezas”, a casa com cinco quartos, todos com cama de casal, que conseguiu comprar em Carcavelos, a seis quilômetros do Estoril e a 15 do centro de Lisboa. “Em Londres eu não conseguiria morar, pois é caro demais.” No Itamaraty esteve ainda com o atual secretário-geral, Samuel Pinheiro Guimarães, e com o ministro Celso Amorim, seu patrão em Londres durante 13 meses e que “sempre foi educado e me tratou bem”.

Depois de mais uns dias em São Paulo e uma semana no Rio de Janeiro “pois dizem que é a cidade mais bonita do Brasil”, onde foi hóspede de Lenir e do ex-ministro das Relações Exteriores, o embaixador Luiz Felipe Lampreia, e planejava visitar o ex-ministro da Fazenda Pedro Malan, sua mulher Catarina e o “menino Pedrinho”, pessoas que tantas vezes ele viu hospedadas na embaixada, Santana embarcaria de volta à Europa e para uma nova vida: a de casado em Portugal. A noiva, Ana Paula, é uma portuguesa de 51 anos, que conheceu em Figueira da Foz, perto de Coimbra e que “admira todas as minhas qualidades”. Diz que a nova mulher vai ajudá-lo receber, na casa de cinco quartos, os muitos amigos que se dispuserem a aceitar o seu convite. Santana não fez amigos ingleses, apesar dos tantos anos vividos na Inglaterra, mas tem amigos italianos, como o casal de empresários Piero e Marta, uma amizade que começou junto a uma esteira de malas no aeroporto de Gatwick. Santana foi gentil, ajudou-os com as malas, serviu-lhes de guia em Londres e já foi recebido por eles na Sardenha, com direito a hospedagem, carro, motorista e, sobretudo, amizade.

Eis o segredo de Santana, o bom coração.


Comentários

Uma resposta para “O mordomo fiel”

  1. Que sorte teve este senhor.Ser tratado bem. Desde de Bob Fields ,ja sabiamos que a “pianista Tupinamba estava sempre pertinho. A JGB necessita de tratamento adequado em como ser uma lady.TODO mundo diplomatico sabe disso.
    Filha de diplomata que sou, verifiquei com verdadeiro Horreur” o q os pobretoes do ABCD mandaram para nos representar fora.Nao sabem nem o que fazer com os talheres e, sequer usam guardanapos.As “mulheres” sujam copos com baton e, nao estao nem ai para a finalidade dos napkins de papel que vem junto…..
    Muito tenho a dizer BUT, sinceramente nao ha mais pachorra pra baixaria.O 9 dedos? Um horroe em todos sentidos e, sua “troupe” pior ainda em vulgaridades. FUI

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