“Caí no sistema”: mais uma história kafkiana da burocracia

Abro o computador às oito horas desta manhã de sábado e encontro entre as mensagens mais uma inacreditável história da burocracia brasileira relatada por meu amigo Audálio Dantas, um dos maiores jornalistas brasileiros, personagem de quem falei ainda outro dia aqui no Balaio.

Aos 77 anos, mais de 60 de trabalho ininterrupto, ele ainda pega no pesado das redações para poder sobreviver. Trabalha hoje para poder comer amanhã, já que ninguém consegue pagar suas contas só com a aposentadoria do INSS, como todos sabemos.

Em junho, ele teve um motivo de alívio ao ficar sabendo que receberia a restituição do imposto de renda a que tinha direito, mas a alegria durou pouco.

De credor do Tesouro Nacional, passou de um dia para outro passou a devedor numa trama que o editor de Kafka talvez pudesse achar inverossímel. Mas no Brasil acontece.

Publico a seguir a mensagem que ele me enviou com título e tudo:

Caí no sistema

Ricardo, meu caro,

No final da história contada outro dia em seu Balaio, sobre as tentativas infrutíferas de devolver o dinheiro da aposentadoria que o INSS depositava na conta de sua falecida mãe, e de tentativas igualmente infrutíferas de receber a devolução do imposto de renda a que você tinha direito, havia uma espécie de convocação: “Quem quiser que conte outra”.

Pois aqui estou eu para contar outra a você e aos leitores do Balaio. Trata-se de uma história fresquinha, ainda em curso, com toques kafkianos, da qual sou involuntariamente o personagem central.

A história começou com uma alegriazinha, um prenúncio de alívio para os meus apertos financeiros.

A Receita Federal anunciou em seu site que a restituição a que eu tinha direito estaria à minha disposição a partir de 16 de junho, mas antes dessa data tão ansiosamente aguardada recebi uma notificação pela qual fiquei sabendo que devia ao Estado valor quase igual ao que ele teria de me restituir.

Tremi na base, imaginando o que nunca me acontecera ao longo dos muitos anos de fiel declarante de meus parcos rendimentos: cair na malha fina.

Mas não se tratava de qualquer falha na declaração do imposto de renda: eu tinha caído numa tal “malha de débito”.

Não era coisa do Leão. Meu débito estava inscrito na Dívida Ativa da União, por motivo que eu ficaria sabendo depois: cobravam-me pelo não pagamento de taxas de ocupação de um terreno de Marinha, de 2003 a 2007.

O papel da Receita Federal me dava exíguos dias para comparecer a uma de suas repartições em São Paulo, mas não esclarecia as razões. E advertia: o não comparecimento no prazo estabelecido – 30 de junho – implicaria na dedução automática do valor da restituição.

Restava-me a oportunidade de contestar a dívida que me atribuíam, referente a pagamento de taxas sobre um terreno que, há cerca de 40 anos, quando eu ainda me permitia alguns sonhos, adquiri na beira do mar em Paraty. O imóvel tinha sido vendido em 1991 e a dívida, portanto, é de responsabilidade do atual proprietário.

Fui correndo ao prédio central da Receita Federal em São Paulo, portando um requerimento em que expunha a história, devidamente documentada com certidões, selos e conseqüentes carimbos.

Do terreno só me restara o sonho de um rancho à beira do mar. Estava certo de que poderia não só me livrar da “dívida” como receber de volta o dinheirinho que a Receita me deve.

Mas aí o espírito de Kafka baixou no meio do caminho. O processo se complicou.

Cheguei tranqüilo à Receita, com quatro dias de antecedência do prazo fatal. Depois de uma hora e meia de espera, o funcionário que me atendeu exclamou, mesmo sem ler o texto da notificação: “Ah, não é aqui!”

Como não era ali, perguntei, mostrando-lhe que, pela notificação, eu devia comparecer à Receita. Com certo enfado, ele informou que o caso era com a Procuradoria da Fazenda Nacional. E que, também ele, não entendia por que a Receita continuava convocando os cidadãos enroscados na “malha de débito” às suas repartições: “Vem gente aqui todos os dias”.

Era uma sexta-feira, fim de expediente, já não havia tempo de alcançar a Procuradoria da Fazenda. Aguardei, ansioso, a segunda-feira, quando compareci à repartição federal certo de que, ali, poderia desfazer o equívoco. Não deu certo.

A moça atrás da mesa consultou o computador e, como se houvesse combinado com o funcionário da Receita, repetiu: “Ah, não é aqui!”

Mas como, se me disseram na Receita que o assunto é com a Procuradoria da Fazenda? Ela me explicou, até pacientemente, que eu deveria procurar a Procuradoria de Resende, no Estado do Rio, em cuja jurisdição se localiza o imóvel que não é meu há 17 anos.

Entre incrédulo e temeroso, pois estava em cima do prazo, indaguei se não poderia entrar com o meu requerimento de contestação da dívida na Procuradoria de São Paulo e esta, por sua vez, encaminhá-la à de Resende.

Afinal, trata-se de um órgão federal, e hoje em dia, com as maravilhas obradas pelos computadores, seria simples atestar que eu entrara com o requerimento.

Quase maternal, a moça me explicou que eu poderia dar entrada no requerimento, mas isso não garantia que o processo corresse antes de a Receita botar a mão no dinheiro da minha restituição e revertê-lo ao Patrimônio da União.

Como fazer, então, se o prazo (30 de junho) venceria no dia seguinte?

A moça sugeriu: “O senhor não tem alguém conhecido em Resende?”

Sendo totalmente desconhecido em Resende, decidi arriscar entrar com o requerimento em São Paulo mesmo. Ah, mas isso só poderia ser feito no dia seguinte – a data fatal! -, pois o expediente estava se encerrando.

À noite sonhei com baratas (o espírito de Kafka boiava na escuridão) mas, mal desperto, fui correndo logo de manhã à Procuradoria, onde protocolei o requerimento, ao qual juntei todas as certidões, devidamente seladas e com firma reconhecida.

Mas, gato escaldado, decidi repetir o processo enviando o requerimento e as cópias da papelada para a seccional da Procuradoria da Fazenda em Resende, primeiro por e-mail, em seguida pelo Sedex.

Achei que com tal providência estava tudo “cercado” e até suspirei de alívio. Qual o quê! Tocou o celular, era do Banco do Brasil me avisando que o contrato do cheque especial estava vencendo e não poderia ser renovado porque a Receita comunicara a minha situação de devedor.

Argumentei que estava, justamente naquele momento, tratando de comprovar a minha inocência. Tinha todos os documentos, posso apresentá-los ao banco. Do outro lado da linha, a informação que soava como uma sentença: “Não adianta, o senhor está no sistema”.

Por isso, deveria pagar, imediatamente, o que devia no cheque especial. “Mas eu não tenho esse valor agora”, ponderei inocentemente. Não adiantou. Ou pagaria ou meu nome seria enviado para o Serasa.

Mais uma vez, com maior intensidade, tremi na base. O Serasa está aí para defender credores contra devedores relapsos. É uma instituição do tipo faca no peito, ou paga ou será execrado publicamente.

Senti o peso do que é “cair no sistema”.

Resta-me agora rezar para que a seccional da Procuradoria em Resende examine direito a papelada que encaminhei. Por segurança, mandei e-mail para o procurador de lá, Carlos Fernando Dias de Souza, perguntando se ele recebera o e-mail.

Nem esperava, mas ele gentilmente me respondeu, confirmando o recebimento da mensagem eletrônica. Só que não tinham conseguido abrir os anexos com a documentação.

Mas já era alguma coisa. Agora é torcer para que a papelada que foi por Sedex chegue a Resende. Enquanto isso, resta-me a desagradável sensação de desconforto – e até de medo! – por ter caído no “sistema”.

Audálio Dantas


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