O fim da civilização

Pre-pare!
Pre-para!

O que leva pessoas que sempre acharam zumbis e histórias em quadrinhos duas bobagens sem tamanho a assistir a série de TV “The Walking Dead”, baseada no gibi de Robert Kirkman (publicado no Brasil pela HQM) e fenômeno de audiência nos Estados Unidos e bom público no nosso país? Basta ver dois ou três episódios – que voltam a ser apresentados nesta segunda pela Fox (Brasil), e nos EUA (AMC) para logo se ter a resposta. Se o inventor do gênero zumbi no cinema, o diretor George Romero, sempre politizou seus filmes, ao explorar por meio dos mortos-vivos a segregação econômica, social e racial, a ênfase está no fim da civilização, como a conhecemos, que a epidemia provoca. E nenhuma outra abordagem poderia ser mais atual, diante dos conflitos éticos e morais que acontecem no mundo em 2014.

Na trama sombria e de estética visual uniforme e impressionista, como raramente se vê na televisão, o ex-xerife Rick Grimes lidera um grupo de pessoas – que se tornaram amigas inseparáveis – em luta o tempo todo para não ser devorado pelos zumbis famintos por carne fresca e, ao mesmo tempo, sobreviver aos que ficaram vivos, pois a maioria se tornou dissimulada e perigosa. A brutalidade toma conta da Terra e o lado bestial do homem começa a dominar todos, enquanto os heróis de Kirkman estabelecem como compromisso e código de conduta entre si de não deixar morrerem valores em que acreditam, baseados na solidariedade, no respeito entre eles e na vida em sociedade.  E o modo como isso é colocado faz de “The Walking Dead” uma profunda reflexão sobre até que ponto somos de fato civilizados ou não passamos de bestas dissimuladas, prontas para trair e dominar o próximo.

Os telespectadores americanos estão com uma temporada a mais – a quarta, que retoma em sua metade final – que os brasileiros. Portanto, qualquer observação sobre o que acontece na fase atual estragaria a surpresa. Aparentemente ou à primeira vista, o seriado seria uma mera repetição dos filmes de Romero e de seus muitos seguidores. A obra de Kirkman – que também participa da produção dos roteiros da TV – sem dúvida é bastante fiel aos filmes clássicos de zumbis. É a impressão que se tem nas primeiras histórias dos quadrinhos e também da telinha, até abrir distância de tudo que foi criado para o cinema. E fisgar o público com um estilo de narrativa absolutamente folhetinesca do século 18, na forma de uma quase teledramaturgia narrativa, isto é, lenta, arrastada até, com longos diálogos que conduzem a trama para o sentido buscado pelo roteirista: a intensa dramaticidade da trama, ancorada num realismo jamais visto tanto no universo dos quadrinhos quanto nos filmes de mortos-vivos.

mortos-1Não há dúvida de que Kirkman tem como foco atropelar a mitologia moderna – e contemporânea – do herói, no sentido de explorar características que compõem qualquer obra de entretenimento como se acostumou a ver – desde os tempos do mocinho romântico aos brutamontes dos filmes de velho oeste, de guerra e dos trogloditas policiais das últimas décadas. Na área de quadrinhos, tão referenciada por heróis e super-heróis fantasiados, essa desconstrução é ainda mais evidente, por ser menos espetacular ou fantasiosa, mesmo que sua pegada maior seja a sutileza no modo como faz isso. Há sim um herói em “The Walking Dead”, mas ele parece herói apenas para o leitor, cuja identificação se faz imediata por se revelar quase real. No mundo sem lei do ex-policial Rick, a preocupação não é salvar a humanidade, é preservar sua civilidade, não deixar a si mesmo e aqueles próximos sucumbirem à barbárie e simplesmente se tornarem bestas.

Na série, a linha imaginária que separa um tipo e outro quanto ser civilizado ou não é frágil demais. A única certeza que Kirkman dá é a de que seu herói não é eterno, como todos nós também não somos. E ele pode simplesmente morrer, porque os zumbis vão continuar a fechar o cerco. E, à medida que a civilização rui como cartas de baralho numa ventania, mais assustadora a série fica, no sentido de nos aproximarmos mais e mais da rotina em que vivemos. Como se os zumbis andassem por aí, a cercar a todos de diversos modos, apesar de somente os viciados em crack transformados em escórias nos lembrem eles. É a ameaça de consagração do irracional que vem da reflexão dessa aparente simplória saga em quadrinhos e da TV. O fim das ideologias políticas com a desintegração da União Soviética em 1991 e o medievalismo que aparece no horizonte, ancorado em regimes quase religiosos de caráter ditatorial, amedrontam a todos. Mas Kirkman nos dá esperança. Pelo menos até Rick conseguir se manter vivo.

Origem dos zumbis
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Pode-se dizer que Jack London (1876-1916) iniciou as obras de ficção científica pós-civilizatórias, pós-apocalípticas, com um livrinho de 1912, chamado “A Peste” (Conrad, 2002), sobre a dizimação da raça humana por uma doença letal. London situa sua trama em 1984, o que nos faz pensar se o livro de George Orwell (1903-1950) não seria uma homenagem a ele. Com poucos humanos e muitos cadáveres, sobreviver no planeta imaginado por London é algo quase inviável, por causa das hordas ou matilhas – digamos assim – de humanos animalizados, brutalizados, sedentos de poder e riqueza, capazes de se matar como bestas.

Outros grandes escritores exploraram essa idéia de futuro pessimista nas décadas seguintes, como o tcheco Karel Capek (1890-1938), em suas obras-primas do gênero ficção científica “A Doença Branca”, “A Guerra das Salamandras”, “R.U.R” (peça em que Capek criou a palavra “robô”) e “A fábrica do Absoluto”. Outro livro relevante é o de Richard Matheson (1926), “Eu sou a lenda”, clássico dos anos de 1950. O escritor português José Saramago (1922-2010) imaginou algo nessa linha com seu Ensaio sobre a cegueira.

Mas foi o cinema quem mais explorou essa ideia com uma lista interminável de grandes filmes. Só para citar alguns: “Planeta dos Macacos” (que veio do livro de Pierre Boulle), “A Última Esperança da Terra”, “Eu Sou a Lenda”, “Mad Max”, “O Livro de Eli” e por aí vai. Enquanto esses filmes chegavam ao cinema, o diretor para lá de underground George A. Romero lançou, em 1968, o hoje cultuado “A Noite dos Mortos-Vivos, que iniciou uma das mais longas e duradouras séries do cinema – no caso, de terror.

Romero criou uma trama cheia de lacunas não explicadas, com mortos que sitiavam vivos em busca de carne fresca sem explicar claramente como aquilo tudo começou e por que isso acontecia. E a falta de clareza prosseguiu nas produções seguintes, o que não tira seus méritos. Nunca ficou claro, por exemplo, porque só acertando a cabeça os zumbis são aniquilados. Ou porque são tão lentos. Ou se o que os atrai é o cheiro de carne viva, o barulho ou os movimentos físicos ou a batida do coração… Será que é possível reverter o processo? Por quanto tempo resistem à falta de alimentos?


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