O Irã dos Homers

Cá estou de novo – O Gringo “do” Paz (Brasileiros, edição 13, agosto/2008). Presumo que os meus amigos brasileiros possam estar um tanto confusos após assistirem à briga que houve para ser eleito o presidente dos EUA. Devem estar com a impressão que o arquétipo do eleitor norte-americano é Homer Simpson (personagem do desenho animado Os Simpsons, seriado de TV criado por Matt Groening para a FOX). Com efeito, não estariam longe da realidade se pensassem assim. Algum tempo atrás eu estive conversando com um sujeito nos EUA que afirmou com todas as letras que deveríamos jogar uma bomba nuclear no Irã. Me ocorreu perguntar se ele sabia onde ficava o alvo do seu ódio. “Claro que sei!”, disse ele com convicção total. Tirei a minha agenda que tinha um pequeno mapa-múndi e pedi para ele me mostrar onde ficava o Irã. “Aqui, ó!” e apontou direitinho para a. AUSTRÁLIA!!

O meu interlocutor pode ter ficado confuso uma vez que na Austrália tem camelos. Mas, pera aí, no Irã não tem cangurus! Ok, vamos assumir que esse cara não seja um dos mais esclarecidos. Não se pode julgar um país inteiro pela resposta de um só sujeito. Mas o que dizer quando dois terços dos americanos não sabem mostrar num mapa onde fica o Irã? Ou quando uma pesquisa num colégio do Texas mostrou que 80% dos alunos não sabiam que gasolina era derivada de petróleo? Texas! Um estado petrolífero!

Para entender os EUA, o grau de ódio e baixeza que marcou a campanha, e a ignorância (aparentemente proposital) do Homer, é necessário ter uma noção da dicotomia que caracteriza o país desde a sua fundação e o que eu chamo de “peso do conhecimento secular”. Os “pais da república” norte-americana – Thomas Jefferson, Benjamin Franklin, etc. – eram formados no “iluminismo” e “utilitarismo” do século XVIII. Eram homens intelectualmente sofisticados, seculares, desconfiados do poder absoluto, e achavam que o ser humano era nem moral nem imoral e sim, simplesmente, racional e autocentrado. Eles criaram um sistema desenhado para governar e frear os impulsos percebidos como negativos (principalmente autoritários) do ser humano por um sistema de checks and balances (essencialmente “contrapesos institucionais”). De acordo com o pensamento deles, era possível criar um sistema de governança em que a tendência de buscar egoisticamente a auto-satisfação poderia fazer o bem – mesmo que essa não fosse a intenção da pessoa. O poder era exercido pelo povo e para o povo e regulado por instituições, não por indivíduos.

Porém, os primeiros colonos dos EUA eram, em sua maioria, puritanos. O puritanismo era produto intelectual da Reforma Protestante e do Calvinismo e tinha uma visão do ser humano totalmente diferente daquela dos iluministas. Para os puritanos, o homem era imoral ‘por natureza’. O mundo era um conflito permanente entre o bem e o mal e o ser humano precisava de regras rígidas de comportamento para manter a ordem social. Portanto, os puritanos acreditavam na necessidade de um poder absoluto baseado nas leis de Deus para governar o comportamento do cidadão.

Necessariamente, as duas filosofias estariam em conflito total até nos seus fundamentos e, portanto, na formação e aplicação de políticas públicas. Ao longo da história americana esse conflito entre as duas posições manifestava-se em atos legislativos, como a Lei Seca (que tratava o consumo de álcool como um ato imoral), ou na proibição do ensino da teoria da evolução nas escolas públicas, o que, na visão dos puritanos, contradizia a “verdade de Deus”. Você acredita que um outro “Homer” me disse uma vez que o homem vivia junto com os dinossauros em perfeita harmonia no Jardim do Éden? Não estou brincando! Disse isso mesmo! Acreditava, e ainda acredita! Será que daí se entende a popularidade dos Flintstones? Será que não era desenho e sim documentário?! Quer mais? Conheço um piloto que faz “modificação climatológica”. Ele entra com o seu avião dentro de tempestades e joga iodeto de prata para diminuir o tamanho do granizo que, sem ser tratado, destruiria as lavouras lá em baixo. Em algumas cidades, os fundamentalistas atiravam com armas de fogo contra o seu avião, pois diziam que o granizo era “vontade de Deus” e se Deus quisesse que a lavoura fosse destruída “Amém, irmão”. Vá entender!

Os iluministas tratavam a relação do cidadão com Deus como uma coisa privada e fora do controle do Estado. Para os iluministas, a única função do Estado no que diz respeito à religião é a de garantir o direito de escolha. Os puritanos achavam que a relação do cidadão com Deus era uma questão social e, portanto, deveria ser controlada pelo Estado. Ateus ou agnósticos não tinham espaço na sociedade dos puritanos.

Esse conflito entre as duas visões do mundo – diametralmente opostas – marcou e continua marcando a sociedade estadunidense até hoje. Durante quase toda a história dos EUA a visão secular predominava, porém aos solavancos. Como cabe à Suprema Corte a interpretação da Constituição, que por sua vez é secular na sua essência, os puritanos – hoje na forma de “fundamentalistas” – escondiam-se nos direitos “residuais” dos estados. Criavam-se Blue Laws (literalmente “leis azuis”) estaduais ou municipais que regulavam comportamentos considerados “imorais”. Assim, havia leis estaduais ou municipais condenando homossexualismo, consumo de álcool, pornografia, casamentos inter-raciais, casamentos entre homossexuais, etc. Lembro-me uma vez que fui “convidado” a sair de uma praia em South Carolina porque a minha namorada estava usando um biquíni brasileiro que foi considerado excessivamente “revelador” e portanto um atentado ao pudor. Imagine! Como uma bunda bonita pode ser um atentado ao pudor? Vinicius de Moraes devia estar girando na cova!!

Nessa mesma praia, de onde eu e a minha namorada fomos, honrada mas puritanamente, expulsos havia uma cerca que entrava mais ou menos uns cem metros dentro do mar. A cerca era para manter a “praia dos pretos” separada da “praia dos brancos”. Quando eu perguntei a um residente local quem havia determinado que cem metros era a exata distância “apropriada” para separar as duas raças, a resposta foi somente um olhar perplexo. Perguntei: “Quer dizer que depois de cem metros os pretos e os brancos podem nadar juntos sem conseqüência?” Não tive resposta. Outros estados (o Tennessee, por exemplo) proibiam o ensino da teoria da evolução nas escolas públicas. Havia também, particular mas não unicamente no Sul dos EUA, o conceito de “separadas porém iguais” para manter escolas especificamente para brancos e outras, supostamente iguais, para os negros. Essas leis, além de algumas outras da mesma forma excludentes, foram paulatinamente derrubadas por decisões da Suprema Corte – secular por natureza e por obrigação.

Quase todas as Blue Laws foram questionadas por meio de processos legais que chegavam à Suprema Corte e muitas foram derrubadas como anticonstitucionais. (Quem tem o direito de me negar o meu “mé”?) Acabou exacerbando-se, e em muito, a divisão entre os “seculares” e os “fundamentalistas”. Esses últimos começaram a sentir-se “excluídos” e discriminados.

A eleição do George W. Bush foi a revanche dos fundamentalistas. Atualmente, em muitos estados discute-se o ensino obrigatório do Creationism (literalmente “criacionismo”), que prega a interpretação literal do Livro de Gênesis sobre a criação do mundo. Para os fundamentalistas o nosso mundo foi criado somente há uns seis ou sete mil anos e o homem e os dinossauros viviam em paz no Jardim do Éden, como havia dito o meu segundo “Homer”. Diz-se que a Sarah Palin, ex-candidata republicana à vice-presidência, acredita que Deus “pessoalmente” (ou “divinamente”?) visitou e abençoou o oleoduto no Alasca, e que a enchente descrita na Bíblia ocorreu no Grand Canyon. (E eu perdi essa??!!)

O conflito entre os fundamentalistas e os seculares foi exacerbado pela internet, que permitiu que todo tipo de informação e opinião pudesse ser divulgado. O isolamento intelectual dos fundamentalistas foi eliminado e eles puderam comunicar as suas frustrações (e as suas besteiras ao meu ver) a outros fundamentalistas outrora isolados em comunidades geograficamente distantes. Assim, puderam criar “grupos de interesse comum” e, portanto, grupos de pressão política. Puderam organizar-se contra o que percebiam ser a “dominação pelos seculares”, ateus e “discípulos de satanás”.

Deve-se notar que a organização social concebida pelos fundamentalistas americanos não difere muito da organização pregada pelos fundamentalistas islâmicos. A única diferença encontra-se na escolha dos americanos cristãos como pedra fundamental da sua filosofia. Daí as declarações de Bush de que a “guerra contra o terror” é uma disputa entre o bem e o mal – que transcende a questão de segurança nacional e passa a ser uma questão moral/religiosa (usou até a palavra “cruzada” num discurso). Daí a preocupação com a possibilidade de uma “conexão islâmica” no passado do Barack Obama na campanha eleitoral.

Para quem conhecia, ou sentia na pele, essa dicotomia, a disputa eleitoral entre Barack Obama e John McCain ofereceu todos os elementos e desconfortos dessa divisão histórica nos EUA entre fundamentalistas e seculares. Hoje, traduz-se a divisão entre os dois em termos de “patriotismo” e a luta entre capitalismo e socialismo – esse último considerado primo-irmão do ateísmo – em que o socialismo não é apenas uma ideologia mas sim uma manifestação política do mal “satânico”. Quando Obama não usava a bandeira americana na lapela era acusado de secretamente apoiar os terroristas. Era acusado de ser “amigo” de um sujeito que, em oposição à guerra do Vietnã, tornou-se terrorista quando Obama tinha 8 anos de idade! (Ora, por esse critério, sendo eu de New Jersey, devo ser um mafioso, pois estudei com os filhos e freqüentei as casas dos capi da Honorata Societá). Os fundamentalistas argüiam que havia duas Américas – uma do bem e outra do mal. A América do bem é a das cidades pequenas do interior e dos “Homers” da vida, dos protestantes brancos e religiosos. A América do mal é aquela das cidades grandes e seculares. A América do bem seria a “verdadeira” América na visão dos fundamentalistas. Conclusão, a “outra” América é ‘falsa’. Essa divisão nos EUA é extremamente perigosa quando se considera o poderio militar do país. (O orçamento militar dos EUA é maior que o total dos orçamentos dos quatro maiores poderes militares do mundo.) A divisão que fazem os fundamentalistas entre o bem e o mal justifica toda maneira de combater o mal, como, por exemplo, a Bush Doctrine, que prega a intervenção militar (leia-se “ataques” ou “invasões”) “preventiva” em países que são considerados ameaças à segurança nacional dos EUA – os países do mal. Justifica também a investigação e prisão “preventiva” de cidadãos estadunidenses (aqueles da “falsa América”) e a tortura dos que possam discordar das determinações dos líderes da “verdadeira América”. Vide, por exemplo, o conteúdo do famigerado Patriot Act (lei assinada por Bush em outubro de 2001, verdadeira agressão à liberdade individual).

Como sou de New Jersey, considerado “urbano”, e vivo (horror dos horrores!) num país latino-americano, em uma das maiores cidades do mundo, já morei na cidade do carnaval e dos pecados da carne (Rio de Janeiro, para quem não reconheceu!), e fui expulso de uma praia nos EUA porque minha namorada “mostrou a bunda”, acredito em evolução, e não acredito que Deus visitou o Alasca (acho que preferiria Nova York ou talvez Miami – se Deus é de fato brasileiro), devo ser considerado parte da América “do mal”? Fiquei triste em saber que eu nasci na “falsa América”. Será que o meu passaporte é válido? Será que o meu serviço militar pode ser interpretado como uma “infiltração subversiva ou alienígena” nas Forças Armadas dos EUA? Será que sou um estranho no ninho?

Caro leitor, nem todos os eleitores estadunidenses são Homer Simpson, mas os “Homers” são suficientes em número para que você se preocupe com a direção que aquele país possa tomar, e quase tomou. Essa dicotomia entre fundamentalistas e seculares pede para terminar, mas continua viva ainda. O mundo agradecerá e os americanos não lançarão uma bomba nuclear sobre a Austrália!

E não acho nada errado apreciar uma bunda bonita num fio dental! Pô, onde nós estamos, afinal??!!

Finalmente, uma pergunta que sempre me preocupou: Se Adão e Eva tiveram só dois filhos, Abel e Caim, e este último matou o primeiro, e não havia nenhuma outra mulher além da Eva no pedaço, de onde saíram os progenitores e progenitoras da espécie humana? Hummmm! Se for por incesto, que supostamente gera cria retardada, está explicada a existência de tantos “Homers” por aí. Só tô perguntando!! Perguntar não ofende!

*Jim Wygand, mestre em economia pela Universidade de Wisconsin, trabalhou em projeto de urbanização de favelas junto à Companhia para o Progresso do Estado da Guanabara (COPEG), foi analista financeiro da DuPont, fundador e presidente da Business International do Brasil, empresa que analisava a economia brasileira para empresas internacionais, e fundador-presidente da Kroll Associates do Brasil (AD – antes da debacle) e da Control Risks do Brasil, especializadas em segurança corporativa. Atualmente presta serviços de consultoria nas áreas de investigação de fraude, due diligence, e gestão de risco através de Singular Strategies Ltda. e é diretor para o Brasil da empresa norte-americana 1st West Mergers & Acquisitions Llc.


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