Um perfil no meio do meu maremoto*

Na época do depoimento a Luiz Chagas, em dezembro de 2006, Zélia Duncan estava envolvida em vários projetos, mas nem por isso furtou-se a falar de sua vida. Mais sobre os novos projetos de Zélia ou como ela sobreviveu a tudo isso relatado abaixo, na edição 25 da Brasileiros.
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“Eu morava em Niterói e, quando fomos para Brasília, tinha 6 anos. Meus pais se separaram quando fiz 12 anos, ambos têm vozes muito bonitas, vozes com harmônicos, vibratos. Minha mãe fazia umas reuniões em casa com amigos que tocavam violão, serestas, e a gente morava em apartamento. Meu pai também, embora não estivesse mais em casa, a gente sempre se encontrava, e ele sempre cantava. Dirigindo, ele cantava muito, cantava lá as coisas dele e eu fazia uns corinhos com ele.

Tem uma lenda familiar que uma vez eu fiquei ouvindo atrás da mesa, era uma sala em “L”, então eu deitei para ouvir e dormi. Quando todos foram embora, minha mãe foi catar as coisas e me encontrou escondida dormindo. Outra lenda foi que eu pedi de aniversário para o meu avô um gravadorzinho. Ainda não tocava violão, tinha uns 13, 14 anos. Minha mãe tinha uns cadernos com as letras das músicas e não gostava que a gente mexesse. Um dia, ela saiu e eu gravei sozinha Tatuagem do Chico Buarque. Quando minha mãe ouviu começou a chorar emocionada e a pedir desculpas.

Meu repertório não era muito para a minha idade. Eu cantava cheia de emoção Mudança dos ventos, do Ivan Lins, que dizia “me tire uns 20 anos, deixe eu causar inveja..”. e eu tinha 16. Ia ficar com -4.

Somos quatro irmãos. Dois meninos e duas meninas. Eu sou a primeira mulher e meus dois irmãos são mais velhos. Do quarto deles é que veio o veneno, pois eu só ouvia MPB. Começou a pintar Rolling Stones, Pink Floyd, Led Zepellin. O mais velho, o Afonso, me fez ouvir as coisas que vinham de São Paulo. Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção. O grupo Rumo então foi um choque. Acostumada a ouvir Eliseth Cardoso, Bethânia, Elis Regina, Beleléu, o Clara Crocodilo, pirei, “caracas, que loucura, os caras estão falando ou estão cantando?”.

O bom de Brasília foi cantar desde cedo com grandes músicos. Muitos deles hoje no Rio como Jorge Helder, baixo, que toca com o Chico Buarque e Marco Pereira, grande violonista. Cantei com a Orquestra Municipal de Música, cantava com um quarteto instrumental, tocava em dois lugares na mesma noite, chegava em casa às cinco da manhã, fazia de tudo em Brasília. Em 1983, com 18 anos, arrisquei o Rio. Fiz backing para o Bebeto, trabalhei na noite, gravei jingles, fiz locução, uma loucura. Às vezes não sei como tanta coisa cabe numa vida só. Caí no mundo. Morava com a minha avó. Sofri uma involução, mas eu deixei rolar, ralei um ano e voltei para Brasília até que rolou o Projeto Pixinguinha. Viajei com Wagner Tiso e Cida Moreyra por oito capitais do Norte e Nordeste. Pela primeira vez dei um autógrafo na minha vida. A conselho dos dois, eu resolvi mudar para o Rio definitivamente cinco anos depois da primeira tentativa.

E nunca mais voltei. Cantava à noite, de segunda a sábado, morava em Niterói, tinha um fusquinha branco e ia todo dia para a Barra da Tijuca e até pneu troquei na ponte Rio-Niterói, meu irmão. Não tinha dinheiro para trocar de carro. Saía do lugar onde eu trabalhava às três e meia, quatro da manhã. Hoje, eu vejo que era perigoso, que “tudo foi por um triz”.

No meio dessa loucura minha, estudava inglês e música. Música na Musearte, lá tinha uma amiga que vivia falando de um tal de Christian. Quem poderia imaginar que seria meu maior parceiro. Branquinho de olho azul, parece meu sobrinho, mas é um mês mais velho que eu. Dá raiva. Holandês. Tocou Don’t give up do Peter Gabriel e umas coisas dele. Mostrei uma minha, Um jeito assim, e ele me mandou Outra luz, que acabou batizando meu primeiro disco (onde assinou Zélia Cristina ainda). Hoje sou madrinha da filha dele, somos compadres.

Aí veio a viagem pelos Emirados. Tinha o primeiro disco, algumas músicas com Christian, 26 anos e nada no bolso, fase difícil. Me ofereceram US$ 1500 mensais para trabalhar no Hotel Meridien, em Abu Dabi. Só no hotel que eu trabalhava eram trinta nacionalidades diferentes. Então, meus amigos eram assim, os eletricistas do hotel eram tailandeses, o treinador de squash do Sri Lanka, os garçons que serviam na piscina das Ilhas Maurício, esses eram meus amigos. Eu tinha a nítida sensação de que tinha morrido e estava em outra encarnação. Eu ficava muito sozinha, eu lia muito, comecei a escrever ainda mais. Fiquei fora do Brasil ao todo oito meses. Cinco nos Emirados, um viajando e dois na França. Cheguei ao Brasil com seis quilos a mais, sem um puto no bolso, só um violão e um monte de lembranças. O violão é um Takamine que vai para o Museu ZD.

Aí falei, vou fazer o que sempre quis. Juntei uma pequena banda e fui tocar até acontecer alguma coisa. Eu sou intuitiva, graças a Deus. Eu vou chamando as coisas para mim, sem saber exatamente porquê. Então comecei a tocar. E aí sempre alguém que dizia, “hoje o Guto Graça Melo, o bam bam bam da gravadora, vem aí te ver”. E eu, “tá legal” e ele nunca ia. E esse tempo foi bacana. Nesse ano eu ganhei um troféu, de um lugar que chamava Torre de Babel. Um troféu de plástico de “melhor cantora”. Uma viagem. O Paulinho Moska me deu. Esse lugar era do Gringo Cardia. Até que um dia o Guto foi mesmo. Me levou. Só que tinha duas coisas. Eu sou da geração Lenine, Chico César, os balzaquianos, gente que apareceu depois dos trinta, o que por um lado é bom porque não tem desbunde. A segunda foi que o Guto tinha acabado de fazer aquele disco da Bethânia que vendeu um milhão, As canções que você fez pra mim, e eu era uma garota para ele que estava começando e então tinha mais é que esperar. E vamos combinar que não está entre as minhas virtudes a paciência.

N.R.: Zélia Duncan saiu pela Warner, em 1994, e trazia “Catedral”, versão de uma música de Tani Tikaran, até hoje o maior sucesso da fluminense.

Eu saio do show cheia de energia e quando acaba, no camarim, eu estou vazia. Então, às vezes, eu preciso um pouco dessa energia depois, porque vou encontrar com um colega ou vou dar uma entrevista. Mas você pode dizer que 85% das vezes eu recebo o público. Com muito prazer. Eles têm pouca oportunidade de me ver e se sentem prestigiados, é bacana. Eu tenho ódio quando vãoque vão na minha casa, fico chateada porque não sou uma artista inacessível. Então, eu não recebo ninguém na minha casa. Não adianta tentar. Mandar coisa para minha casa não adianta, que eu vejo com má vontade. Porque não precisa. Eu tenho escritório, eu tenho uma produção que é bacana, que recebe as pessoas. Eu adoro a festa, eu adoro fã, eu adoro isso tudo. Eu trabalho muito. Eu não gosto de glamour por glamour. Eu gosto do glamour quando vem acompanhado de um monte de coisa bacana.

Detesto rótulo, tipo sexualidade, eu acho isso horroroso. Porque tem uma coisa, todo mundo está convidado para a minha festa, entendeu? E não há nada na minha vida pessoal que seja tão interessante assim para eu ficar falando. E outra coisa, não tenho nada a esconder, nada. Agora, eu tenho tudo a preservar. Isso aqui não é Estados Unidos em que é tudo segmentado. Adoro ser quem eu sou. Quero ser quem eu sou com as minhas escolhas que dizem respeito a mim. Eu respondo pelo meu trabalho musical e da minha vida pessoal cuido eu, meus amigos, meus amores, minha família.

Com meus músicos o envolvimento é total. E eu aprendi uma coisa muito importante nesses 25 anos. O melhor músico é o músico que gosta de você. Claro, é um bom músico, em quem confio, que chamei porque tem uma assinatura que me interessa. Eu já tive músicos com nomes incríveis que estavam cagando e andando para mim. Eu quero me divertir e ficar feliz com a música. O dia em que eu não ficar feliz, eu paro. Aí eu vou escrever música, fazer uma música ou outra. Por enquanto, eu quero me emocionar, me divertir, porque é o que me faz sentir viva. Eu quero brincar disso aí, vamos embora.”

*Entrevista realizada em 11/12/2006


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