Maria Maluca, passarinhos, obras na rua, a nova vida boa

Fui dormir tarde e acordei com os alucinados gritos dela neste sábado de muito sol em São Paulo, meu primeiro dia na nova casa. Quem será esta figura de cabelos desgrenhados, trapos cobrindo o corpo, idade indefinível, que caminha pelas ruas do Jardim Paulista, o dia todo todo dia blasfemando numa língua estranha que ninguém entende – e ela, por sua vez, também não entende ninguém, apenas grita?

Logo de manhãzinha, ao ir até o bar da esquina para tomar café com pão e manteiga na chapa, fui atrás da sua história. Cada um conta sua versão, como acontece com estas pessoas sem biografia conhecida. Ninguém sabe ao certo seu nome, chamam-na de Medusa ou Toninha, mas todos já descobriram que se a tratarem por Maria Maluca, sai gritando mais alto ainda e ameaça bater em todo mundo.

Nunca bateu em ninguém, apenas faz barulho. Contaram-me vários novos vizinhos que a cena se repete há mais de dez anos – a patética figura subindo as ladeiras até a avenida Paulista pela manhã e voltando à tarde para a alameda Lorena, onde agora estou morando.

Dorme em qualquer canto quando se cansa de berrar, sozinha no mundo, senhora do seu destino cruel. Até alguns anos atrás, tinha um companheiro, o Gouveia, um mulambo que a acompanhava sempre de capacete amarelo, empurrando um carrinho de feira com todo seu patrimônio, mas ele um dia desapareceu da paisagem.

Não demorei a descobrir que mudei para um lugar mais barulhento, embora tão próximo do endereço antigo. Quando a mulher indignada finalmente silenciou, no meio da madrugada fui acordado pelos passarinhos e me imaginei no sítio de Porangaba. Só que estes pássaros urbanos pareciam ensandecidos como se estivessem sendo perseguidos por um disco voador.

Assim que eles se acalmaram, chegaram os bravos homens da Comgas empunhando suas britadeiras, e não teve outro jeito: fui bem cedo tomar o primeiro café no meu novo bar da esquina. Já a mil por hora, um taxista não parava de contar piadas sobre gaúchos, fregueses antigos passam perguntando pela feijoada e todo mundo só fala do jogo de domingo entre São Paulo e Palmeiras. Ninguém presta atenção no noticiário que continua rolando na televisão.

Minha mulher, que ficou até as quatro da manhã tentando dar uma ordem na bagunça da mudança, não ouviu nada, continuou dormindo como um anjo. Mal teve tempo de descobrir onde estava ao acordar. No meio da manhã, logo chegaram os netos – e a rotina novamente se instalou na casa como se tivéssemos morado aqui a vida toda. Vida que segue.


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