Aos 71 anos, Caetano Veloso continua exercendo papel luminar. Não só para a música popular do Brasil, mas para a compreensão da complexa realidade do País. Ele acaba de lançar CD e DVD resultantes da turnê de seu mais recente álbum Abraçaço. Lançado em dezembro de 2012, o CD fecha uma trilogia de títulos em parceria com a Banda Cê. Formado por Pedro Sá (guitarra), Ricardo Dias Gomes (baixo) e Marcelo Callado (bateria), o conjunto repete a clássica formação de trios de rock, como o Cream, de Eric Clapton, e o Experience, de Jimi Hendrix. E foi justamente defendendo um rock moderno e vigoroso, aliado ao lirismo usual de suas canções que, nos últimos sete anos, Caetano imprimiu uma saudável renovação à sua inventiva discografia.
Em entrevista por e-mail à Brasileiros, o compositor de Santo Amaro da Purificação falou sobre seu protagonismo na recente polêmica das biografias – deflagrada com o controverso posicionamento do grupo Procure Saber –, manifestou eventual apoio a uma possível candidatura Marina Silva/Eduardo Campos e relativizou as consequências políticas de uma eventual onda de protestos no País, em 2014. “Qualquer coisinha pode fazer explodirem movimentações de consequências imprevisíveis. Mas temos de ter em mente que Lula e o PT – e por isso Dilma – reinam no coração da população. Até onde isso servirá de freio não se sabe.”
Brasileiros – Em seus trabalhos mais recentes, você esteve em estúdio e nos palcos com a Banda Cê, bem mais enxuta do que as formações que o acompanharam no passado. Além de experimentar novas linguagens – sobretudo correntes modernas do rock – houve também a escolha de defender arranjos mais despojados?
Caetano Veloso – Eu queria fazer discos com poucos elementos. A formação de uma banda de rock moderna respondia a meu interesse histórico pelo gênero e a esse projeto de despojamento. A banda foi inventada para tocar as canções que fiz para o disco Cê, muito enxutas. Depois fiz os outros dois discos a partir da existência da banda.
Brasileiros – Você sempre esteve atento às transformações da canção e de seus diversos gêneros. Até que ponto essa postura influenciou as criações de Abraçaço? Essa busca pelo novo continuará sendo uma premissa para seus próximos trabalhos?
Caetano – Gosto de canção. Desde criança é assim. Pode ser que no futuro eu faça canções mais tradicionais do que as de agora. Não sei. Tenho vontade de compor uma série de sambas. Pode ser que venha a fazer isso, mas não é certo que eu faça.
Brasileiros – Vivemos uma época em que, na maioria dos veículos de imprensa, predomina um discurso conservador. Em Abraçaço, você compôs a canção Um Comunista sobre Carlos Marighella, um dos mais famosos militantes do País. Foi um gesto de independência em relação a essa corrente? Não temeu ser mal interpretado ou submetido a uma patrulha ideológica?
Caetano – Temi fazer uma canção longa demais, com letra em tom didático e, afinal, pouco sugestiva. Mas quando ouvi as pessoas cantando o refrão no Circo Voador (do Rio) e no Baile Perfumado (do Recife), me dei conta de que a estranheza dela é instigante esteticamente. A canção não vale pelo que diz explicitamente, mas por dizê-lo assim, por ser um objeto algo monstruoso. Agora, não creio que o discurso conservador predomine na imprensa. O que houve foi o sucesso de algumas vozes de direita, num meio em que as opiniões eram sempre de esquerda. Não falo do que desejam as empresas que possuem grandes jornais, muito menos dos anunciantes que compram suas páginas, mas dos escritores que devem comentar e interpretar os fatos. Estes eram tradicionalmente de esquerda. O Globo, a Rede Globo, o Estado de S. Paulo, a Folha de S. Paulo, todos contrataram comunistas e esquerdistas notórios desde sempre. Hoje há uma moda de articulistas de direita. Eles me interessam, o fenômeno me interessa, e eu não tenho medo nenhum do que eles possam achar de minhas ideias. Não gosto de me sentir atrelado automaticamente a nenhuma posição ideológica. Sempre fui um rebelde em relação às esquerdas. Sou ainda. O mesmo para a direita. Serei sempre. Sou artista, supersticioso, sonhador. Minha cabeça vai longe num caminho que se esboce dentro dela. Não dá para me enquadrar.
Brasileiros – Para além das colaborações de artistas da nova geração em suas produções recentes, quais compositores ou intérpretes você mais admira da nova safra? Vivemos um bom momento de renovação da música popular?
Caetano – Temos de tudo. De Thiago Amud a Valesca Popozuda, como lembrou um jornalista numa pergunta que me fez. Gosto de neopagode baiano e de funk carioca. Continuo gostando de axé, pagode carioca e paulista, tecnobrega paraense, etc. Nunca me senti atraído pela música sertaneja, mas sempre torci pela sua vitória. O Brasil ficou mais uno quando o Centro-Oeste se fez ouvir. Nos anos 1970, ouvi muita música do interior de São Paulo e comecei a fazer uma canção namorando o tema, que se chamaria A Moda do Peão Paraguaio. Eu ia dedicá-la a Geraldo Vandré, que, para mim, é principalmente o autor de Disparada, nada de Pra não Dizer que não Falei de Flores, embora Um Comunista esteja mais próximo desta, só que de um modo esquisitamente paródico. Percebo o fenômeno do sertanejo universitário como algo que me fascina. E gosto de Tono, Do Amor, Tulipa Ruiz (essa é ótima), várias coisas. Continuo gostando de Roberta Sá como cantora. E de Maria Rita. E de Mariana Aydar. E Cidadão Instigado. E Thiago Pethit. E Leo Cavalcanti. E esqueci mil nomes aqui. Música popular no Brasil é coisa forte.
Brasileiros – Em entrevista de 2012 ao Valor Econômico, Elifas Andreato disse que você e Gil são o que há de vanguarda na música brasileira nos últimos 50 anos. Como você se definiria, ao constatar que, desde o início de sua carreira, é um artista de sucesso que continua influenciando, inclusive, as novas gerações?
Caetano – Fico feliz de ler essa declaração de Andreato. Ele é muito generoso e legal conosco. Mas vejo minha contribuição para música popular com bem mais modéstia. Não sou um talento musical exuberante. Tenho imaginação e isso pode me levar a fazer uma ou outra canção de que se possa lembrar. Mas tenho presença na cena por ser um subintelectual de miolo mole, como genialmente definiu José Guilherme Merquior (sociólogo, diplomata e um dos principais defensores do liberalismo no Brasil, morto em 1991). Não tenho a musicalidade de Gil ou de João Bosco ou de Djavan – para não falar em Milton. Não tenho a responsabilidade musical de um Egberto nem a espontaneidade de um Tim Maia. Gostava de João Gilberto e aprendi a amar Jorge Ben. Não vejo que tenha feito grande coisa além de dizer isso o tempo todo.
Brasileiros – Depois da recente polêmica em torno das biografias não autorizadas e do Procure Saber, que posicionamento você defende hoje? Muita gente ficou confusa com seus comentários a respeito, por se tratar do autor de É Proibido Proibir…
Caetano – Sempre fui pela liberdade para os biógrafos. Apenas, como deixei claro em minha coluna no Globo, quis entender – e explicar – a posição de meus amigos (sobretudo Chico e Roberto Carlos, mas também Gil, Milton e Djavan), que pensam e sentem diferente de mim. A imprensa decidiu fazer uma zoada em que eu aparecia – junto com eles – de “censor”. Nem morta. Quem quer que tenha lido tudo o que escrevi sabe o que eu penso. Não vou ficar dizendo coisas que agradem a uma imprensa que foi descuidada comigo e histérica quanto ao assunto.
Brasileiros – Em artigo escrito há cinco anos, intitulado Pernambuco Fogo-Alto, Bahia Banho-Maria, Antonio Risério contrapôs a efervescência cultural de Recife a uma suposta estagnação de Salvador e sentenciou: “Pernambuco, hoje, é sinônimo de entusiasmo e inquietude – a Bahia, de mormaço e mesmice”. Você concorda com a opinião de Risério? Procura acompanhar de perto as manifestações culturais da Bahia?
Caetano – Entendo Risério. E sei que a Bahia precisa mais do que ouvir um pito. Mas gosto demais do carnaval baiano – e de seu riquíssimo repertório de décadas, ao qual o próprio Risério deu contribuição pioneira – para reduzir tudo a isso. Pernambuco merece os elogios. Não sei é se essa opção pelo sério e pelo imediatamente respeitável condiz com a complicada visão crítica que desenvolvi desde o Tropicalismo. Gosto de axé-music intensa e profundamente. Mas Salvador está maltratada e inchada e com cara de quem não tem solução. Por isso mesmo, precisamos inventar as saídas. Para isso temos de lembrar que Wagner Moura, João Miguel e Lázaro Ramos nasceram da energia que vingou na cidade a partir da Escola de Teatro, assim como Ivete Sangalo surgiu da força que vem de Osmar, Dodô, Moraes, Armandinho, Luiz Caldas, Daniela Mercury, Ilê, Olodum, Malê, Chiclete com Banana ou Asa de Águia.
Brasileiros – Você sempre manifestou opiniões influentes sobre questões alheias ao universo musical. O que pensa de fenômenos recentes da juventude brasileira, como o funk ostentação e os chamados rolezinhos?
Caetano – Amo muito tudo isso!
Brasileiros – Arriscaria fazer algum prognóstico sobre a sucessão presidencial de 2014? Manifesta ou pretende manifestar apoio a algum candidato?
Caetano – Acho que não vou manifestar apoio ostensivo. Parece que Dilma ganha a eleição. Gosto dela, mas não creio que vá votar nela. Em Marina, sim, eu votaria. Talvez vote nela e no Eduardo Campos. Ao contrário dos meus amigos de esquerda e dos economistas desenvolvimentistas e heterodoxos, eu não tenho medo de Eduardo Giannetti nem de André Lara Resende. De todo modo, sinto instintiva atração pelo credo liberal (que Giannetti já pôs em perspectiva desde seu primeiro livro – Vícios Privados, Benefícios Públicos?, em que a famosa fórmula aparece com um ponto de interrogação no título – e Resende já relativizou em perguntas sobre a viabilidade de se manter a exigência de crescimento perene). Precisamos ir além de tal credo, mas não desprezá-lo. O que me atrai em Mangabeira (o filósofo Roberto Mangabeira Unger) é que ele não descarta a importância do liberalismo em suas exigentes sugestões para as esquerdas.
Brasileiros – Que análise você faz das chamadas Jornadas de Junho de 2013? Tendo vivido intensamente a década de 1960, vê algum paralelo dessa movimentação com as insurreições que eclodiram a partir de maio de 1968? Acha justo que, como alguns preveem, os protestos retornem com força maior em 2014, em decorrência da Copa do Mundo no Brasil?
Caetano – Claro que há um paralelo. O que me leva a simpatizar de imediato com as manifestações. Não faço análises. Tenho o miolo mole. Mas sinto que confusões haverá. Óbvio que a maioria não aderirá a qualquer chamado. A classe média, que é quem mais enche as ruas, se retrairá diante dos charmosos anarquistas de máscara negra. E o amor pelo futebol estará em conflito com a crítica do desperdício, dos acordos mal explicados e da superficialidade com que o governo do PT lutou para trazer Copa e Olimpíadas para cá. Como aconteceu com Lula, a vitória e a festa da posse parecem ser um fim em si. Qualquer coisinha pode fazer explodirem movimentações de consequências imprevisíveis. Mas temos de ter em mente que Lula e o PT – e por isso Dilma – reinam no coração da população. Até onde isso servirá de freio não se sabe.
Brasileiros – No final de março, faz 50 anos do golpe de 1964. Há 17 anos, você discorreu com maior profundidade sobre esse momento nebuloso em Verdade Tropical. Que balanço você faz hoje do período? Defenderia alguma mudança de percepção? Como vê vozes influentes como Lobão dizerem que a ditadura teve aspectos positivos para o País?
Caetano – Roberto Schwarz diz que eu próprio dizia isso em Verdade Tropical. Não foi assim que eu entendi. Lobão está deslumbrado com os mimos da direita. Descobriu a pólvora. A narração feita por ele do que a mãe dele disse sobre os comunistas é patética. A ditadura militar foi coisa horrível e não deixou suficientes coisas úteis ao Brasil para que a gente tenda a perdoar seus crimes. Foi, como muita coisa ainda é, atraso latino-americano.
Brasileiros – Analisando o mesmo período em retrospectiva, como você vê as transformações de nossa música popular? Em entrevista à Brasileiros, o maestro Julio Medaglia defendeu que, a partir dos anos 1990, com o advento do axé, das duplas sertanejas e do pagode romântico, o Brasil, que vinha num processo evolutivo desde João Gilberto, da Bossa Nova e da MPB, engatou uma marcha-ré no que tange a evolução da música popular. Concorda com esse diagnóstico?
Caetano – Julio é figura central em minha história e na do Tropicalismo. Fez o arranjo de Tropicália, que virou parte da composição. Mas nunca concordei com essas opiniões dele. Nos anos 1970, ele desancava o que eu fazia, tachando de “bolero” (como se bolero fosse coisa ruim) e exaltava Rick Wakeman. Ele é muito Emerson Lake and Palmer. Eu amo pagode e axé.
Brasileiros – Você está com 71 anos e já afirmou que a maturidade o incomoda. Mudou de ideia?
Caetano – Não creio que tenha dito que a “maturidade” me incomoda. Digo claramente que muitos sinais da velhice são tristes. Há uma alegria básica no corpo jovem que é um valor em si mesmo.
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