Brincando nos campos do Padim Ciço

“O que é que eu faço meu filho? Ora eu reciclo o mundo.”

Quem diz isso é uma velhinha de rosto encovado, touca de tricô, equilibrando-se no braço da poltrona do ônibus fretado. Até então a mineira Efigênia Ramos Rolim, mirradinha e quieta ao lado da acompanhante Dinah, transparecia seus 80 anos. Mas que nada. A partir do momento em que foi reconhecida como a mulher que constrói um universo a partir de papel de bala e muita poesia, desatou a falar e tecer rimas. Logo que desceu do veículo, deu uma cambalhota. Efigênia foi uma das mestras da cultura convidada para o III Seminário Nacional de Culturas Populares e o IV Encontro Mestres do Mundo, iniciativas do governo do Ceará e do Ministério da Cultura, realizados no início de dezembro último no Cariri cearense, baseada em Juazeiro do Norte e espalhando-se pelos municípios vizinhos, Crato e Barbalha.
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LEIA e OUÇA: Os sons de Juazeiro

A velhinha dando cambalhota mostra um pouco o espírito do evento. Durante cinco dias mestres da cultura, tesouros vivos, ou seja, pessoas que trazem consigo um conhecimento esquecido ou em vias de ser esquecido, se encontraram para relatar suas experiências, pleitear ajuda do governo, trocar idéias com seus pares. O Encontro de Mestres do Mundo era realizado em Limoeiro do Norte. Os três primeiros eventos, que vêm sendo realizados desde 2005, reuniram 2.400 participantes e atraíram um público de mais de 150 mil pessoas. Segundo a secretária adjunta de Cultura do Estado do Ceará, Delânia Azevedo Cavalcante, a coincidência de datas e propósitos entre o Encontro e o Seminário, e a idéia de que o evento conjunto atraísse a atenção nacional, levou à escolha de Juazeiro como palco para os acontecimentos. A cidade fundada por padre Cícero tem suas peculiaridades.

O tal padre tinha uma visão cultural muito grande. Deixou Crato no final do século XIX para oficiar missas no povoado de Juazeiro, reunido em torno da capela de Nossa Senhora das Dores, padroeira local. Em 1889, a hóstia ministrada à beata Maria de Araújo transformou-se em sangue na boca da crente. O fenômeno repetiu-se durante os dois anos seguintes. E começou a atrair curiosos de todas as partes. A tal hóstia sanguinolenta provou ciumeira, padre Cícero foi excomungado, absolvido diante do próprio Papa XIII, mas até hoje ainda não foi reabilitado. Deixou inacabada uma catedral que rivaliza com a de Aparecida do Norte. Hoje em dia, com mais de 250 mil habitantes, Juazeiro tornou-se a segunda cidade do estado e um entreposto comercial para a região Sul, do Cariri pernambucano e do Cariri cearense. Você anda pela cidade e constata que são centenas de ruas de comércio. Mas não perdeu a coisa da cidade pequena do interior, ainda gosta de cultura popular. Tem até uma figura arquetípica. O seu Lunga, o maior mau-humorado do mundo, que inspirou inúmeros comediantes como Chico Anysio. Duas histórias típicas dele: 1. Seu Lunga vai tomar uma caninha no bar e pede para ouvir Luiz Gonzaga. O balconista diz que não pode pois seu tio morreu. E seu Lunga “ora e morreu e levou os discos?” 2. Seu Lunga vai com a mulher e as filhas no restaurante. O dono, educado, os recebe e diz, “e aí seu Lunga, trouxe a família?” ouvindo do irascível, “não, isso aqui é tudo quenga, peguei no caminho”. Não se sabe se seu Lunga é uma pegadinha ou se existe mesmo. A casa dele está lá, mas o sujeito não aparece para dar entrevistas.

Regina Maria Vieira dos Santos, de 29 anos, natural de Juazeiro, trabalhou como estagiária não remunerada para o evento que envolveu cerca de 600 pessoas. Formada em geografia e aguardando um mestrado em Alagoas, contempla um futuro que se bifurca entre dar aulas ou cair fora. Ela conta que este ano a Igreja de Nossa Senhora das Dores foi elevada pelo Vaticano à categoria de Basílica Menor. Antes disso no estado esse status era reservado para Canindé, onde se cultua São Francisco. Segundo estudiosos, Canindé recebe a segunda maior peregrinação no mundo devotada a São Francisco, perdendo apenas para Assis, na Itália, onde o santo nasceu afinal. Em Juazeiro a população praticamente triplica nas festividades, que não são poucas, Nossa Senhora das Dores Nossa Senhora das Candeias, Dia do Romeiro e Finados, e por aí vai. Do Memorial do Padim, no centro da cidade, à sua estátua, no alto do horto, são quatro quilômetros. Como resolvi pagar minhas promessas no cartão de crédito, deixei de lado esse negócio de subir a pé e fui até lá na garupa de uma moto-táxi. Afinal estava 40 graus e sem sombra!

Durante o evento os dias eram divididos em encontros de mestres pela manhã, realizados no Tênis Clube do Crato, seminários à tarde no Memorial Padre Cícero, em frente à Igreja do Perpétuo Socorro, cujo pátio acomodava dois palcos para as apresentações noturnas abertas à população contando com grupos não necessariamente ligados ao evento, (como a Noitada das Violas do Brasil, que juntou Paulo Freire, SP, Abel Santos, MS, Grupo Viola de Cocho – Siri Cururu, MT, Levi Ramiro, MG, Manasses, Geraldo Amâncio e Francinaldo Oliveira, CE, ou a banda Cabaçal dos irmãos Aniceto do Crato, que lançou seu novo CD) “terreiradas”, também à noite, oferecidas por mestres locais a convidados previamente inscritos. As manhãs eram festivas. Uma “trocação” de figurinhas que não acabava mais. Nos galpões corriam as rodas formais conduzidas por mediadores. Sagrado, Sons, Corpo, Mãos e Oralidade. Os agraciados contavam suas experiências, caso de dona Fátima Brasileira, organizadora e dona de Pastoril, Coco de Roda, Baiana, Taieira, Maracatu e Guerreiro do Grupo de Folguedos e Danças Professor Pedro Teixeira, que descrevia a batalha pelo local de ensaio, sede, roupa, instrumentos. Ou Jota Rodrigues, pernambucano radicado desde 1949 no Rio, onde chegou como chofer de pau-de-arara. Autor de 600 obras como cordelista, palestrante, entendido de medicina popular, aos 74 anos defende a moralidade e a propagação de cultura através do cordel. Do lado de fora, o pátio era ocupado por barraquinhas. Um mundo. As incríveis xilogravuras de José Lourenço, da nova geração da Lira Nordestina, nome dado por Patativa do Assaré à mais antiga gráfica de cordel ainda em funcionamento no Brasil, criada no Cariri por José Bernardo da Silva nos anos 1930. As figuras de barro moldadas por dona Maria de Lurdes que ainda as vende ao lado da filha e também artista Maria Cândido. Os discos do selo Mundo Melhor do músico e pesquisador Alfredo Bello. Os objetos trançados em cipó por Cícero, filho do famoso mestre Pedro Balaieiro, de Guaramiranga, no Baturité cearense. Seus brincos em forma de cestinha adornavam as orelhas de quase todas as participantes e só rivalizavam em popularidade com as bonecas e os vestidos de dona Efigênia. Mimada por todos os presentes, como a carioca Benita Lama Gonzales, diretora do Simpósio Internacional de Contadores de Histórias e debatedora do programa Sem Censura, da TVE Brasil, que fez questão de posar para um foto ao lado do amiga, Efigênia só se irritava com o chão de terra, impróprio para cambalhotas.

E em volta a balbúrdia. Em uma rodinha, Edson Alves Fontes, do grupo Favoritos da Catira, de Guarulhos (SP), tocava viola para Silvio Antonio de Oliveira, da Companhia de Moçambique São Benedito, cantar, sob o olhar atento de mestre Gil (Gilberto Augusto da Silva) do jongo de Piquete (SP) e do historiador Walter Cassalho, presidente da Associação dos Criadores de Lobisomens. Em volta a carioca Marilene Nunes do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré falava sobre o Livro de Contos e Lendas da Maré, escrito por moradores da favela, a paulista mestre Fia (Otavia de Castro) do Grupo Samba de Roda de Pirapora do Bom Jesus, citado por Mario de Andrade, que vivia por lá, e considerado o “berço do samba paulista”. Na hora do almoço uma defecção. O goiano Mestre Doma (Lindomar Alves da Conceição), premiado pelo seu projeto de viola, acostumado a dar palestras e espetáculos sobre o assunto, afirmava que só come o que cozinha. ‘Me chamam de Urtigão, sou uma espécie de eremita”, justificou.

Às tardes o ar condicionado do Memorial Padre Cícero ajudava na sesta de alguns enquanto o papo rolava no palco. Ouvia-se experiências emocionantes, como a de dona Luzia Simões, de Coqueiro Seco, Alagoas, personificação de um “tesouro vivo”. Aos 75 anos ela sabe de memória os repertórios de manifestações esquecidas, como chegança e taieira, além de dois pastoris. São músicas que aprendeu desde criança observando folguedos dos quais sequer podia participar. Affonso Furtado da Silva, presidente da Federação de Reisado do Estado do Rio de Janeiro e autor do livro Reis Magos – História, Arte e Tradições, citado por Jota em seus cordéis, ressalta que mais que o prêmio em dinheiro, o que importa aos mestres é o reconhecimento formal de sua missão “sagrada”, um compromisso recebido de seus antepassados. O que vale é a comenda, a faixa, entregue por alguma autoridade. Como afirmou mestre Cosmos, natural do Rio Grande do Norte, há oito anos em Juazeiro, “o cabra chegar e dizer que é mestre parece que está se vangloriando”. Tal reconhecimento, ou falta de, teve um exemplo trágico. Enquanto todos os forasteiros se voltavam para o evento, o jornalista Dalwton Moura, do Diário do Nordeste, de Fortaleza, comparecia ao velório de Francisco Correia de Lima, o Mestre Correinha, compositor, artesão, do Crato. O número de pessoas presentes, mestres, admiradores, amigos, dava conta de sua importância. Ao que parece não havia recebido a comenda do governo porque tinha uma situação financeira para lá de estável. Mas morreu amargando esse “esquecimento”. Furtado da Silva gosta de citar o exemplo mexicano. Segundo ele, a Dirección General de Culturas Populares e Indígenas (DGCPI) recebe 12% do orçamento anual do governo. No Brasil mal chega a 1%. “Nossa educação não reflete a nossa cultura, mas a francesa, a européia. A escola não proporciona ao aluno informações sobre a sua cultura popular”, afirma.

As “terreiradas” visitadas (“Mestre Convida”) foram o Reisado do Mestre Aldenir, no Crato, que ofereceu um mugunzá delicioso: na segunda noite a Ordem de Penitentes do Sítio Cabeceiras do Mestre Joaquim Mulato, em Barbalha: e finalmente a Lapinha da Mestra Dona Tatai, com presépio vivo e muitas crianças. Eram noites intensas. O teatrólogo de Fortaleza, Oswald Barroso, deu uma idéia do que é um reisado típico. Eles se desenvolvem em torno da figura arquetípica do rei, são ritos de celebração. Referem-se tanto a coroações quanto à visitação dos Reis Magos e têm na frente o rei, o mestre e o contramestre. Nas duas alas seguem-se embaixador, guia, contra guia, coice, contra coice e o bandeirinha. Além dessa estrutura fixa, os entremeios, animais como o boi, a burrinha, a ema, seres fantásticos como o jaraguá e o guriabá, figuras sociais como o Pai Tomé e finalmente tem os cômicos que fazem o mundo invertido, a catirina, um homem vestido de mulher buchuda e bunduda e os dois Mateus, Oguns que trazem a cafuringa na cabeça, um grande chapéu afunilado com espelhos e fitas coloridas, óculos escuros e rosto pintado de preto. A apresentação dura no mínimo quatro horas.

Mas era nas manhãs do galpão do Tênis Clube do Crato, que a coisa fervia. Uma babel tupiniquim. Você podia ver pessoas especiais como a carioca Eleanora Gabriel, da Companhia Folclórica do Rio (UFRJ) se divertindo com o casal paulista Kleber e Patrícia, que desenvolve um projeto fotográfico da cultura caiçara na região de Cananéia, ao lado de Raquel, professora visitante de Tocantins, toda marcada por queimadura de potó (“potó?” perguntei, “o que é isso?”, e ela, “um bicho parecido com tesourinha”, “mas tesourinha não morde”, e Raquel, “é só parecida”). E tudo bem. Quem abafou os quatro dias no salão informal foi o casal Juvenal Domingues, de 72 anos, e Maria da Conceição, de 67, a “Maria do Juvenal”, rei e rainha do Guerreiro São Pedro Alagoano Tabuleiro do Martins, de Maceió, Alagoas. Devidamente paramentados, com adereços enormes na cabeça, os dois eram fotografados por todos rivalizando com dona Efigênia em termos de popularidade. O Brasil é uma minissérie que não acaba nunca.

Somente no último dia é que voltei a ouvir falar em Obama, Lula, crise, demissões em massa. Na piscina do hotel havia alguém falando disso. Fui ver e tratava-se de empresários de Petrolina que tinham vindo para a confraternização de fim de ano de suas firmas. Pensando na volta para São Paulo foi a minha vez de ter vontade de dar uma cambalhota. Só que de raiva por deixar aquele mundo. Que afinal é nosso.


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