“Os poetas não têm biografia. Sua biografia é sua obra.” Essas palavras do diplomata e poeta mexicano Octavio Paz ecoam no depoimento pessoal do poeta e diplomata pernambucano João Cabral de Melo Neto: “Eu não tenho biografia. Minha biografia é: em tanto de tanto foi para tal lugar. Em tanto de tanto foi para tal lugar, essa é a biografia que tenho.”
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A obra de João Cabral se inicia, a rigor, com a publicação, em 1942, do seu primeiro livro de poemas, Pedra do sono, de nítida influência surrealista, mas que já apresentava, como o percebeu o crítico Antonio Candido em resenha da época, um rigor construtivo herdado do Cubismo. Conhece, a partir de 1940, no Rio de Janeiro, alguns dos mais importantes poetas brasileiros da geração de 1930, como Murilo Mendes, Jorge de Lima, Vinicius de Moraes e Carlos Drummond de Andrade, a quem já dedicara o seu primeiro livro e dedicaria o seu livro seguinte, O engenheiro (1945). Publicou, também, na Revista do Brasil, em 1943, a peça em prosa poética Os três mal amados, até hoje não encenada, que toma como mote o conhecido poema Quadrilha, de Drummond.
Em 1945, sob grande influência do poeta e engenheiro pernambucano Joaquim Cardozo, publica O engenheiro, livro em que apresenta os princípios da poesia do rigor, da clareza e da objetividade que marcariam toda a sua obra. Passaria, então, a ser conhecido como o “poeta-engenheiro”, embora estivesse longe de abraçar tal profissão. Influenciado pelas ideias do arquiteto Le Corbusier, cujas palavras relacionadas à arquitetura, “machine à émouvoir” (máquina de comover), estampa como epígrafe do livro, e que são correlatas à definição de poesia dada por Paul Valéry, como “machine du language” (máquina da linguagem), João Cabral de Melo Neto busca, a partir de então, uma poesia que não deixa de emocionar ou revelar o sonho, mas o faz com o equilíbrio e o rigor matemático e construtivo da engenharia.
É uma poesia que nenhum véu encobre, uma poesia das coisas concretas, do substantivo, que o poeta vai perseguir a partir de agora, tornando-se, assim, o mais rigoroso e exigente dos poetas da nossa literatura.
O diplomata começa, a partir de 1947, a perambular pelo mundo, ocupando diversos postos em sua carreira. De início, serve em Barcelona, onde conhece o pintor Miró, sobre o qual escreve um dos seus raros ensaios críticos e monta uma tipografia artesanal, O Livro Inconsútil, através da qual publica, além de vários livros de poetas brasileiros como Manuel Bandeira e espanhóis, seus livros Psicologia da composição (1947) e O Cão sem Plumas (1950). O primeiro, segundo João Cabral, um “livro teórico”, volta-se inteiramente para a metalinguagem; enquanto o segundo já prenuncia o olhar do poeta que se volta para sua Recife natal, em especial o rio Capibaribe que a corta.
Em 1950, é removido para Londres, onde fica até 1952, quando é afastado da diplomacia, acusado de subversão e comunismo. Retorna ao Brasil para responder ao processo. Absolvido, permanece no país até 1956. Durante esses anos de “exílio interno”, Cabral acrescenta à sua poética um componente novo: a preocupação social. Em poemas mais “comunicativos”, mais “fáceis”, como O Rio, escrito em 1953 e vencedor do Prêmio do IV Centenário de São Paulo (1954) e Morte e vida Severina, escrito em 1954/55 e publicado na coletânea Duas águas, de 1956, João Cabral de Melo Neto apresenta uma poesia mais narrativa, popular e voltada para os problemas sociais do Nordeste, mais especificamente de seu estado natal, Pernambuco.
Voltando à ativa no exterior a partir de 1956, tem uma carreira diplomática brilhante, servindo como cônsul-geral ou embaixador do Brasil em diversos locais, como Marselha, Genebra, Berna, Dacar, Quito, Honduras, Porto, etc. Aposenta-se em 1990 como embaixador, mesmo ano em que recebe o maior prêmio literário da língua portuguesa, o Prêmio Luís de Camões.
Em livros como Dois parlamentos (1960), Quaderna (1960), Serial (1961), A Educação pela pedra (1966), Museu de tudo (1975), A escola das facas (1980), Auto do frade (1984), Agrestes (1985), Crime na calle relator (1987), Sevilha andando (1990) e Andando Sevilha (1994), o poeta foi abordando os temas mais diversos, como a própria poesia, a pintura, o futebol, suas memórias, a morte, a memória do Recife na morte de Frei Caneca, suas viagens, a sensualidade das sevilhanas, o sertão, etc. Sempre tendo a feminina e gentil Espanha – Sevilha à frente – e o masculino e árido Pernambuco para dar o tom na poesia rigorosa, consistente e ímpar que o “poeta-engenheiro” construiu desde a década de 1940 até sua morte.
A morte de João Cabral, dez anos atrás, deixou um vazio profundo na poesia que busca se construir com rigor e objetividade, contra a poesia fácil, “dita profunda”, verborrágica e sentimentaloide, de matizes românticos, que ainda predomina na mentalidade poética média do Brasil hoje. As ideias do “poeta do rigor” não são fáceis de assimilar. Movem-se contra a corrente do lugar-comum, contra a mitificação do fazer poético, contra o elogio da facilidade que predomina no universo cultural consumista de hoje.
Essa dificuldade em digerir as posições bem claras e radicais defendidas por Cabral tem levado, nestes anos que sucederam sua morte, a tentativas bastante frequentes de deturpação das suas ideias e a leituras melífluas e mediocrizantes de sua obra. Muito se falou, desde então, que João Cabral, afinal, não era tão cerebral assim, que ele no fundo era lírico e até sentimental, que era emotivo e inspirado, etc. Ou seja, para elogiá-lo, muitos negam a própria essência da sua luta, das suas ideias difíceis de serem digeridas pelo senso comum, da sua obra consciente, antilírica e racional. De sua ojeriza por lugares-comuns como “inspiração”, “dom” ou “talento”. De seu elogio obstinado do suor e do trabalho.
É preciso lembrar sempre de que João Cabral era o que falava e escrevia. Honremos o poeta no aniversário de dez anos da sua morte, lembrando das suas ideias e lutando com todas as forças contra as reiteradas tentativas de adocicá-lo, facilitá-lo, torná-lo mais palatável ao senso comum, embalá-lo com a mesma mediocridade e o mesmo sentimentalismo piegas que sempre combateu.
Poema escrito por Frederico Barbosa no dia seguinte à morte de João Cabral:
Pior do que a morte
para JC
O pior é que dizem: rezou.
Ele que sempre foi contra,
do contra, ateu,
agora que zerou,
creu?
Ele que sabia que a vida é coisa
de sempre não.
Sem fórmulas fáceis,
nem saídas para a dor
de cabeça
de pensar
de ser sem crer.
Ele que sabia que não há aspirina
contra o bolor.
Logo dirão que se inspirou,
e compôs de improviso
um soneto vendido,
dos que sempre enfrentou.
Dirão ainda que se converteu
e defendeu a vida devota,
a pacificação bovina,
a prédica dos pastores.
( Verbo e verba:
pragas velhas. )
E que se arrependeu do pecado
de ser exato, claro e enjoado.
Vida, te escrevo merda.
Às vezes fezes, mas sempre merda.
Fingida flor, feliz cogumelo,
caga e mela.
Sempre severa e cega
merda.
Triste é depender
de relatos carolas,
acadêmicos, cartolas.
Triste é depender
da leitura alheia,
fáceis falácias: farsas.
Triste é depender
dos olhos dos outros,
de voz de falsas sereias.
Triste é não poder mais
se defender.
Mas
um aqui, João,
incerto, grita
e insiste em não crer
na sua crença repentina,
que a morte (sua) desminta a obra (sua) vida.
Um aqui, João,
o tem por certo:
é mais díficil o não
crer, não
ceder, não
descer, não
conceder. Não.
Não, não orou.
Frederico Barbosa
10/10/99
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