CUBA/ESPECIAL: 72 horas em Havana, 50 anos depois

LA HABANA, CUBA – Elas vão e voltam em seu passeio noturno, caminhando devagar e proseando pela rua. Com suas roupas coloridas, chamam a atenção dos turistas, mas parecem flanar em outro mundo, um mundo só delas. São duas senhoras mais ou menos sexagenárias, negras robustas como os enormes charutos de quase meio metro que fumam com prazer. Parecem felizes.

Quase nove da noite de sexta-feira, nossa última em Havana antes da viagem de volta, ainda se sente um calor gostoso, a brisa morna soprando do mar do Caribe. Cada um do nosso grupo de amigos foi para um lado diferente e agora caminho só com minha mulher, a Mara, pelas ruas estreitas e precariamente iluminadas do velho centro de Havana (o país vive mais um racionamento de energia), que foi declarado Patrimonio da Humanidade pela Unesco, e está sendo totalmente restaurado. Mal comparando, aqui é uma espécie de Pelourinho ou Ouro Preto deles.

Boa hora para entrar num bar e tomar um mojito, a bebida típica feita de rum, suco de limão, açucar, água gasosa e ramos de hortelã (pelo tanto que consomem, devem ser grandes as plantações da “hierba buena”, como a chamam por aqui), ouvindo ao vivo um conjunto de música caribenha, claro.

Passamos a tarde percorrendo cada viela, beco e praça, entrando nos prédios históricos – tudo por aqui tem muita história – em companhia de Euzébio Leal, 64 anos, historiador, arqueólogo e arquiteto “honoris causa” pela Universidade de Urbanismo de Ferrara, na Itália, a mais antiga do mundo.

Não poderíamos ter arrumado um guia melhor – para não apenas ver, mas também conhecer e entender o que se passou por aqui, desde as longas e variadas lutas do povo cubano pela independência. Euzébio é uma espécie de “prefeito” desta parte de Havana, apaixonado pelo seu trabalho.

Quando lhe perguntei desde que idade se dedica a este ofício, responde com um sorriso: “Desde a vida toda”. Mais exatamente, desde 1967, quando iniciou a restauração do antigo Palácio do Governo. A partir de 1993, com a criação da Oficina Del Historiador de La Ciudad, um orgão autônomo não estatal que ele comanda à frente de 10 mil colaboradores, entre eles 200 arquitetos, Eusébio Leal é uma espécie de prefeito plenipotenciário da La Habana Vieja.

Além das antigas moradias, ele já restaurou e administra 16 hotéis e mais de 70 comércios, entre lojas, bares e restaurantes, preocupado não só em resgatar o passado, mas em cuidar da rede de proteção social criada para os 74 mil habitantes espalhados por seus 4,9 quilômetros quadrados.

Outras 102 obras de restauração estão em curso e 40 delas devem ser entregues até o final do ano. O mais impressionante de tudo é uma monumental maquete montada com todas as edificações e vias da antiga cidade, que levou seis anos para ser concluída e onde cada um pode localizar o local onde morou.

É uma figura, este Euzébio, que parece conhecer pessoalmente cada morador da sua jurisdição como os velhos párocos do nosso interior. Ao passar pelas ruas – algumas ainda calçadas com tacos de madeira -, é parado a todo momento por moradores que querem lhe contar alguma coisa, tirar uma foto, agradecer algum benefício recebido.

As duas senhoras charuteiras e o historiador Euzébio, além da sensação de segurança e tranquilidade que me deu andar por suas ruas, foram as imagens que mais me marcaram nesta viagem, a sexta ou sétima que faço à ilha, nem me lembro mais quantas foram.

Mas acho melhor contar como foi desde a chegada esta viagem de apenas 72 horas, no ano em que a Revolução Cubana comemorou 50 anos. Bastou contar aqui na semana passada que eu iria fazer esta viagem, justificando minha ausência por alguns dias no Balaio, para que os leitores já se dividessem entre os que defendem e os que condenam radicalmente o regime cubano, dando início ao Fla-Flu ideológico que até hoje provoca reações de amor e ódio em todo o mundo.

A uns e outros já deixo claro que não fui lá para trabalhar, mas apenas passear a convite de amigos. De qualquer forma, seria leviano fazer qualquer julgamento ou previsão sobre um país em tão curto espaço de tempo. Vou relatar apenas o que vi e ouvi. Cada um que tire suas próprias conclusões. Na verdade, para entender melhor Cuba, nada melhor do que ir lá e ver com seus próprios olhos para tirar suas próprias conclusões.

Hotel Nacional e La Floridita

Para chegar a Havana, não há mais vôos diretos do Brasil. Pela Copa Airlanes, uma empresa panamenha controlada pela americana Continental, dá um total de nove horas de vôo, com uma conexão em Panamá City. Em 1981, quando viajei para lá pela primeira vez, era bem mais complicado. O Brasil ainda não mantinha relações diplomáticas com Cuba. Viagens para a ilha eram oficialmente proibidas, como estava expresso no nosso passaporte.

Por isso, daquela tivemos que ir primeiro a Lima, no Peru, para pegar um visto avulso na embaixada cubana e só chegamos a Havana dois dias depois. Mudou o Brasil, mudaram Cuba e o mundo e, desta vez, encontrei muitos turistas brasileiros por lá, misturados a outros milhares do mundo todo, um cenário bem diferente de quase três décadas atrás.

Meio século após a revolução liderada por Fidel Castro, o turismo voltou a ser a maior fonte de receita de Cuba, depois que o preço do níquel, seu principal produto de exportação, caiu no mercado mundial. Percebe-se isso logo na chegada ao novo aeroporto Jose Marti, enfeitado com as bandeiras de quase todos os países do mundo, agora com um movimento muito maior de aviões e passageiros.

Na meia hora de viagem até o Hotel Nacional, trafegando numa moderna van por avenidas largas, limpas e bem arborizadas, sem congestionamentos ou motoristas estressados, nota-se que o antigo e o moderno agora convivem lado a lado como em qualquer cidade turística que tem na sua história o principal chamariz.

Os velhos “guaguas” caindo aos pedaços, foram substituídos por ônibus novos. Há cada vez menos carrões americanos pré-revolucionários e os soviéticos Ladas, dando espaço para carros contemporâneos de todas as marcas e procedências. Tem até táxi Mercedes.

A grande diferença em relação às paisagens que conhecemos está nos cartazes de propaganda, que se mantém imutáveis: em lugar de produtos de consumo, apenas anúncios de apelos patrióticos, denúncias contra o bloqueio americano e homenagens aos revolucionários. Além destas palavras de ordem, monumentos, palácios e estátuas espalhados por toda parte lembram a todo momento que estamos em Cuba e revivem os acontecimentos históricos de 50 anos atrás.

Fora isso, a vida segue normalmente, sem sobressaltos, veículos militares nas ruas, homens armados, nada que lembre um país em revolução permanente por tanto tempo. Também não se vê menores abandonados, famílias debaixo de pontes, sinais de pobreza extrema.

Uma boa surpresa foi encontrar completamente restaurado o Hotel Nacional, que recentemente completou 80 anos. Me fez lembrar o nosso Copacabana Palace, por sua imponência e amplitude das instalações à beira mar, o luxo antigo na decoração e a quantidade de bares e restaurantes para os hóspedes.

Em relação às viagens anteriores, o serviço e a oferta de produtos melhoraram consideravelmente, outro sinal da importância que se voltou a dar ao turismo. Em lugar de burocratas estatais formados na rigidez soviética, agora o atendimento na área de serviços é mais gentil, às vezes até bem humorado, sem ser subserviente.

Tem certos programas que não são nada originais, mas quase obrigatórios, onde dá vontade de voltar sempre que se vai a uma cidade. É o caso do La Floridita, mais conhecido como o “bar do do Hemingway”, o grande escritor americano que viveu seis anos em Cuba e lá escreveu parte de sua obra, além de ter inspirado o daiquiri, um aperitivo também preparado com rum, limão, açucar e gelo picado.

Fomos lá logo na primeira noite. Continua tudo igual, mas melhor servido, embora sempre lotado, com conjuntos musicais se revezando a noite toda para a festa dos turistas. Caminha-se pelas ruas até tarde da noite como em Buenos Aires. Grandes grupos de jovens e de turistas na mesma hora lotam o calçadão junto à amurada do Malecon, onde o mar bate com força e às vezes molha todo mundo.

Vale a pena também visitar a feira de artesanato, com roupas e objetos típicos, os antiquários, os muitos sebos espalhados pela cidade e a fábrica dos famosos charutos Cohiba, onde se pode acompanhar todo o processo de produção artesanal. Como ninguém é de ferro, sempre é bom reservar uma parte do dia para ir à praia. Se o tempo disponível é pouco, melhor ir a Santa Maria, que fica a apenas 27 quilômetros de Havana, tem quiosques de comes e bebes na areia e um maravilhoso mar de águas limpas e tépidas, mescladas de azul e verde.

Alarcon, Acosta, Morais

Tão importante quanto voltar aos lugares que conhecemos e gostamos é reencontrar os amigos para saber como andam as coisas.

Foi o que aonteceu num longo jantar no El Templete, bem em frente ao porto de Havana, encimado por uma grande imagem do Sagrado Coração de Jesus, onde encontramos os amigos Ricardo Alarcón de Quesada, presidente da Assembléia Nacional do Poder Popular (o Congresso Nacional deles), 67 anos, hoje o segundo homem na hierarquia do poder, e Homero Acosta, 45 anos, Secretário do Conselho de Estado, espécie de Gilberto Carvalho de Raul Castro, um advogado apaixonado por música popular brasileira.

No meio do jantar, ainda apareceu nosso velho amigo Fernando Morais, autor de “A Ilha”, que está em Havana fazendo pesquisas para um livro sobre os cinco cubanos presos nos Estados Unidos desde 1998, acusados de espionagem pela Justiça americana, dois deles condenados a duas prisões perpétuas (teriam que nascer de novo para cumprí-las).

Cada vez que vou a Cuba, encontro situações diferentes, sempre carregadas de dificuldades mais ou menos permanentes e muitas esperanças no futuro. As maiores dificuldades continuam localizadas nas áreas de energia (80% do petróleo vem da Venezuela), habitação e abastecimento (80% dos alimentos são importados), agravadas pelos três furacões que varreram a ilha em setembro do ano passado, causaram prejuízos de 10 bilhões de dólares e destruíram dezenas de milhares de moradias.

E o futuro? Quando pergunto a Alarcon, um advogado de 67 anos, de fala mansa e didática, fisicamente parecido com dom Pedro Casaldáliga, como imagina a vida dele e a de Cuba daqui a dez anos, ele abre os braços e um sorriso, como quem diz: “Se eu soubesse”.

Apesar da abertura muito lenta, gradual e segura que se opera hoje em Cuba, como foi no Brasil de Geisel no período final do regime militar, dá para notar que os controles internos já não são tão rígidos, mas ninguém pode imaginar como será a vida em Cuba no período pós-Castro (Fidel, com 83, está doente e fora de combate há dois anos, e seu irmão e sucessor Raul já completou 78) e, principalmente, após o fim do bloqueio americano.

Em Cuba, todos sentem que estão vivendo o final de uma era, sabem que algo está para mudar, mas ninguém arrisca prever o que virá depois, nem quando isso acontecerá. Uma coisa é certa: os cubanos, quem diria, botam muita fé no presidente americano Barack Obama e sabem que até o final do seu governo o bloqueio deverá ser levantado. É apenas uma questão de tempo, de paciência.

Obama tem muitos problemas para resolver ao mesmo tempo no mundo inteiro, sem falar nos seus embates internos. “Para nós, os Estados Unidos sempre tiveram uma grande importância, mas para os Estados Unidos sei que nós representamos hoje uma questão menor, menos urgente”, conforma-se Alarcon, que sempre procura situar as mudanças em seu país no contexto das profundas modificações que podem acontecer no mundo nos próximos anos.

Por tudo isso, os cubanos temem pela segurança de Obama – na visão deles, hoje mais ameaçada do que já foi a do próprio Fidel Castro. Ao mesmo tempo, sabem que o levantamento do embargo/bloqueio não representará o fim de um dia para outro todos os problemas sociais e econômicos enfrentados pelos cubanos hoje.

Ao contrário, pode ser apenas o começo de outros problemas. No dia em que os norte-americanos puderem todos viajar livremente para Cuba – hoje é proibido por lei nos Estados Unidos, a não ser em casos excepcionais – como a pequena ilha suportará a invasão de turistas?

Por quanto tempo resistirão a restaurada Habana Vieja de Euzébio Leal, a limpeza das águas do Caribe, a convivência serena entre nativos e forasteiros tomando a fresca no Malecon? E, na direção inversa, quantos jovens cubanos poderão optar por viver nos Estados Unidos ou em qualquer outro país e não mais voltar?

Em tempo:

No sábado, dia 24, Frei Betto foi recebido para almoço por Raul Castro. Falaram dos impasses da Revolução Cubana, como a existência de duas moedas e os subsídios estatais à alimentação.
Raul Castro revelou que o governo pensa em aumentar os salários e reduzir tais subsídios, pois muitas famílias recebem cesta básica mensal sem dela necessitarem.

No final da tarde do mesmo dia, Fidel Castro recebeu Frei Betto em sua residência, uma casa de dois andares, em estilo californiano dos anos 50. Segundo Betto, conversaram sobre “os governos democrático-populares da América Latina, a importância dos meios de comunicação na formação cidadã das novas gerações e a questão da ética do poder”, tema do seu livro “A Mosca Azul”.

As mais comentadas da semana

Em razão da minha viagem, deixei de publicar ontem a relação das matérias mais comentadas da semana no Balaio, na Folha e na Veja, como faço desde a estréia do blog. Pelo mesmo motivo, o Balaio só destaca hoje duas matérias esta semana. Ver abaixo:

Balaio

O Caso Rubinho: 320
O Rio e o inglês do COI: 313

Folha

Lula: 122
Violência no Rio: 108
Educação/professores: 31

Veja

Albert Einstein: 17
Pressão do governo contra a Vale: 16
Lya Luft: 15


Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.