Show-concerto junta Chitão e Xororó com Bach e Beethoven

Numa Sala São Paulo lotada e animada como há muito tempo não se via, o grande pianista João Carlos Martins, que virou maestro depois de velho, aprontou mais uma das suas maluquices musicais: juntou no mesmo palco sua Orquestra Bachiana Filarmônica com a dupla Chitãozinho e Xororó para intepretar obras de Beethoven, Bach, Schubert, Charles Chaplin e Villa-Lobos, além de alguns clássicos sertanejos.

“Como diz o nosso maestro, finalmente a música venceu!”, berrou Chitãozinho ao final do memorável espetáculo, com os três abraçados no palco, e o público, em pé, pedindo mais. Foi mesmo uma noite memorável para uma platéia formada em sua maioria por pessoas mais idosas, vestidas de forma singela, que entrou pela primeira vez numa sala de concertos.

João Carlos Martins, que trocou o piano pela regência faz cinco anos, depois de enfrentar uma série de cirurgias nas mãos, que o impediram de continuar tocando, abriu (Sinfonia nº 1 em Do maior Op21) e encerrou (Sinfonia nº 9 em Do menor Op125) com Ludwig van Beethoven e acompanhou os dois irmãos em 11 músicas, algumas delas cantadas por eles pela primeira vez.

Foram muitas horas de ensaio para uma única apresentação, mas valeu a pena. José de Lima Sobrinho, o Chitão, e Durval de Lima, o Xororó, que já venderam 35 milhões de discos, e João Carlos Martins e sua badalada orquestra, que já se apresentaram nas maiores salas de concertos do mundo, estavam tão afinados que quebraram as fronteiras entre o clássico e o popular.

Aproximar o clássico do popular, apresentando-se para platéias das periferias e dos grotões do Brasil, que nunca tiveram acesso à cultura é, afinal, a grande obsessão desta segunda vida musical de Martins. Há três anos, sob o patrocínio da Telefônica, ele já levou a música erudita para mais de 500 mil pessoas por todas as partes do Brasil, além de criar a Orquestra Bachiana Jovem Sesi São Paulo, que já revelou vários talentos.

No início do show-concerto, Xororó lembrou que foi naquela estação de trem da Santos-Jundiaí, transformada na mais bela casa de espetáculos de São Paulo pelo governador Mario Covas, que eles chegaram a São Paulo, faz quase 40 anos, “ainda de calças curtas”. Quando começou a cantar, a dupla de meninos era chamada de “Irmãos Lima”, antes de ganhar nomes de passarinhos ao se apresentar na Rádio Capital, nos programas sertanejos dos irmãos Bettio.

Conheci Chitãozinho e Xororó em meados dos anos 1980, quando trabalhava no Jornal do Brasil, e fui acompanhar uma excursão da dupla por cidades do sul do país, no tempo em que eles ainda viajavam com uma pequena banda num modesto ônibus branco, sem muitos confortos. Já lotavam teatros, cinemas e ginásios esportivos de pequenas cidades, na esteira do seu grande sucesso “Fio de Cabelo”, mas ainda eram pouco conhecidos na grande mídia e nas grandes cidades.

Nascidos em Astorga, pequena cidade do interior do Paraná, me contaram que o pai deles era “toreiro”, quer dizer, puxava toras de madeira com um caminhão, antes da família se mudar para São Paulo, onde foi trabalhar como motorista de ônibus.

No segundo dia de viagem, Chitãozinho, o mais falante deles, me perguntou quanto eu ganhava no jornal e, diante da resposta, deu um sorriso: “Só isso? Você não quer ser nosso assessor de imprensa”. Também sorri, achando aquilo uma petulância do então jovem sertanejo, mas hoje me arrependo de não ter nem discutido a proposta

Meu editor no velho JB, mestre Zuenir Ventura, torceu o nariz quando lhe ofereci a matéria, que acabou sendo publicada no caderno B. Seis meses depois, eles estavam se apresentando no Canecão, no Rio, o grande templo da música popular brasileira. E de lá para cá, lançaram 31 albuns inéditos (está para sair um novo) e três DVDs, ganharam dois prêmios Grammy, e centenas de discos de ouro, platina e diamante.

De ternos pretos muito elegantes, como os músicos da orquestra, Chitãozinho com um estiloso chapéu de vaqueiro também preto, a dupla abriu sua parte no show-concerto com a Ave Maria, de Bach e Gounod, grande hit de casamentos, e depois mandaram ver: No Rancho Fundo (Lamartine Babo e Ary Barroso), Evidências (José Augusto e Paulo Sérgio Valle), Serenata (de Shubert, com letra de Edgard Poças, escrita exclusivamente para este concerto).

Entre uma música e outra, um gaiato gritava “Paraná!” do fundo da platéia, certamente orgulhoso com a origem dos irmãos. Quando eles interpretaram Fio de Cabelo (Marciano e Darci Rossi) pela primeira vez (no final, tiveram que dar um bis), com um arranjo especial de Martins ao piano, a platéia foi ao delírio e cantou junto.

“Isso aqui virou público de Chitãozinho e Xororó”‘, comentou alguém na platéia. De fato, daí para a frente ninguém mais lembrava estar na nobre e circunspecta Sala São Paulo.

O repertório ainda teve Majestade, o Sabiá (Roberta Miranda), Céu de Santo Amaro (música de Bach, com letra de Caetano Veloso e Flávio Venturine), Se for Pra Ser Feliz ( de Álvaro Socci, música inédita do seu novo disco), Sorri (de Charles Chaplin, com letra de Djavan), Melodia Sentimental (Heitor Villa-Lobos) e Se Deus me Ouvisse (Almir Rogério).

O momento mais emocionante da noite para mim foi o encerramento com a apresentação de um coral de 50 jovens das favelas de Heliópolis e Paraisópolis, outro trabalho a que Martins se dedica, interpretando – em alemão – a Sinfonia nº 9 de Beethoven. No palco e na platéia, ninguém tinha pressa em ir embora.

Já no saguão do teatro, o maestro pop star ainda passou um bocado de tempo recebendo abraços e perguntas de gente que queria saber: qual é a próxima que ele vai aprontar? Mas ninguém parecia mais feliz do que Chitãozinho e Xororó.


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