O “enciclopédia” e suas histórias

A primeira medida era tentar amolecer a chuteira, feita naqueles tempos com um couro tão duro que chegava a machucar os pés. O segredo era torcê-la para um lado, para o outro… até que ficasse um pouco mais confortável. Colocá-la ao sol também ajudava – os boleiros da época diziam que, assim, o couro “curtia” mais rapidamente. Pois Nilton Santos recorria a qualquer truque para deixar o pisante bem macio. Queria “sentir mais a bola”. E a bola, em seus pés, parecia agradecer tal gentileza. “Ela não só agradeceu como retribuiu”, garante o botafoguense que deu 26 títulos ao alvinegro carioca, dois campeonatos mundiais à Seleção Brasileira e foi considerado, recentemente, o maior lateral-esquerdo de todos os tempos pela revista France Football. Os mais novos não devem saber, mas o homem entendia tanto do riscado que acabou apelidado de “Enciclopédia do Futebol”.

“A bola compreendeu meu cuidado com ela e sempre me tratou com muito carinho. Nunca dei bicão e, por isso, ela foi minha fiel amiga durante anos. Ainda hoje acordo no meio da noite sorrindo, lembrando de lances, gols, títulos, dribles”, diz Nilton Santos.
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Hoje, aos 82 anos, o craque está tentando driblar uma miocardiopatia dilatada, um inchaço dos ventrículos que, em estágio avançado, pode comprometer o fluxo de sangue do coração para o organismo. O problema foi diagnosticado em outubro do ano passado e fez Nilton Santos ficar 20 dias internado num hospital do Rio de Janeiro. Em dezembro, novo susto e novo drible na doença. E, no início de 2007, ele passou mais uma noite no Instituto Nacional de Cardiologia, no bairro de Laranjeiras, zona Sul carioca. Mas foi logo liberado – não sem antes dar autógrafos e posar para fotos com os enfermeiros, recepcionistas, porteiros. “O Nilton está sendo medicado e tem um poder de reação muito grande. Não é nada grave, mas não custa pedir para que todos torçam para uma recuperação breve”, disse a mulher do craque, dona Maria Célia Albuquerque dos Santos. Eles moram numa casa simples em Araruama, Região dos Lagos (RJ). Nilton não está rico. Vive como boa parte dos brasileiros, sem luxos – o carro da família, por exemplo, é um Uno popular. Mas se tivesse começado a jogar algumas décadas mais tarde, o craque, hoje, figuraria na galeria dos mais bem-sucedidos (no sentido financeiro, é claro) astros do futebol. Até porque teve uma longa carreira – jogou quase até os 40 anos com a camisa do Botafogo. “Mas não reclamo de dinheiro, não. O futebol me deu muitas alegrias. E terminei minha carreira com os quatro meniscos. Sabe o que isso significa? Que tinha bom equilíbrio, bom preparo físico, que não distribuía patadas e não dava carrinhos. Aprendi desde moleque que futebol se joga em pé.”

A vida com a bola começou cedo, nas areias de Copacabana. Mais tarde, já com seus 18 anos, Nilton entrou para o time da Aeronáutica. Vestiu a 8, de meio-campista. Quando lhe perguntam sobre essa época, ele adora contar a história do trato que fez com o major. É a seguinte. Tinha um major, a maior patente em campo, que era metido a centroavante goleador. Não jogava muita coisa, mas mandava pra burro. Nilton, que precisava ajudar a família – a mãe era dona-de-casa e o pai dava um duro danado como pescador – propôs a seguinte troca ao milico: “Vou te colocar sempre na cara do gol. Cada um que o senhor marcar eu recebo um troco, fechado?”. Fechado. O major virou artilheiro e Nilton engordou o orçamento doméstico dos Santos.

Hoje, as finanças da casa de Nilton Santos são constituídas em parte pela aposentadoria do craque, em parte por uma ajuda de custo do Botafogo e por palestras na Farmácia Popular. No Botafogo, Nilton foi transformado em embaixador do clube. “Ele é o grande representante do alvinegro nos eventos sociais”, conta Jefferson Mello, diretor de Marketing do time. Quando não está nos eventos do Botafogo, Nilton “empresta” suas histórias para a Farmácia Popular. É um projeto coordenado pelo Instituto Vital Brazil, do Rio de Janeiro, cuja principal atribuição é oferecer medicamentos a idosos ao simbólico custo de R$ 1. Uma das atividades do projeto é o Programa de Atenção ao Idoso (PAI), que realiza eventos recreativos, como shows de música, palestras e café da manhã comemorativo em datas especiais. A média de público, nesses encontros, é de 60 pessoas. Mas chega a dobrar quando a programação é um bate-papo sobre futebol com os ídolos Nilton Santos, Brito, Roberto Miranda e Pinheiro. Eles são contratados para divertir e emocionar quem acompanhou pelo rádio ou nos estádios suas brilhantes carreiras. “Nilton, fala do pênalti contra a Espanha, que o juiz não marcou porque você deu dois passos para fora da área”, lembra um dos senhores presentes à palestra. Nilton sorri. “Nilton, conta aquela do Gilda”, grita outro. E Nilton conta. Gilda era o apelido de Heleno de Freitas, moço bonito, de futebol refinado, mas de temperamento explosivo. Um bad boy clássico. Heleno infernizava os adversários do Botafogo e arrebatava corações femininos no Rio de Janeiro dos anos 1940. As torcidas rivais, é claro, faziam de tudo para desestabilizar o craque – até mesmo aproveitar o título de um grande sucesso do cinema na época, o filme Gilda, estrelado por Rita Hayworth – e provocá-lo. Era Heleno entrar em campo e o estádio inteiro entoar o coro: Gilda, Gilda, Gilda.

Explicado o apelido, vamos à história de Heleno com nosso personagem. Num dos primeiros treinos de Nilton Santos no Botafogo, Heleno foi tentar tirar uma bola do novato. Em um de seus clássicos dribles, fingiu que ia atrasar a bola para o goleiro e, quando Heleno se antecipou, Nilton deu um rodopio e saiu pelo outro lado – para delírio dos demais jogadores. Heleno, furioso, foi tirar satisfação com o lateral estreante. Nilton bateu boca, encarou o dono do time e ainda tirou um sarro: “Ô, Gilda, quem sabe de você é o Zizinho”, sugerindo uma improvável homossexualidade de Heleno de Freitas. E era só o primeiro treino de Nilton.

O craque chegou ao Botafogo sem passar pelo infantil ou juvenil – caso raro no futebol. Fez testes e foi aprovado. Dias depois, já no campo dos profissionais, foi abordado por Carlito Rocha, presidente do Botafogo na época: “Continue jogando assim, meu filho, que você acaba campeão do mundo”. Foi bicampeão, na verdade: 1958 e 1962. “Só não fui em 1950 porque o Flávio Costa não deixou eu entrar”, reclama Nilton. Se estivesse lá, garante o craque, Ghiggia, o ponta uruguaio, não teria dominado a bola livremente na ponta-direita, não teria disparado rumo à área do goleiro Barbosa, não estufaria as redes e não entraria para a história como o maior carrasco do futebol brasileiro. “Comigo em campo, o Brasil podia até perder a final, mas não com um gol do Ghiggia. Eu seria a sombra dele.” Dois anos depois da tragédia no Maracanã, Nilton enfrentou Ghiggia numa Copa América. “Dei chapéu, rolinho, fiz o diabo. Ele era ruim demais.” Detalhe importante: o lateral-esquerdo Nilton, naquele 16 de julho de 1950, era suplente do lateral-direito. Pode? “Só na cabeça do Flávio, mesmo. Ele não entendia nada de futebol e não gostava de mim. O Flávio entrou para a história como o treinador que mais apanhou de argentinos e uruguaios. Pode ver a estatística. Enquanto ele comandou a seleção, nós fomos fregueses de Argentina e Uruguai”, esbraveja o craque. “Se eu encontrar o Flávio no céu, vou dar uma porrada nele.” Esse é Nilton Santos.

CRÔNICA DE UMA PELADA
Tio! Tio! Ô, tio!

Nilton Santos caminhava pela praia de Copacabana, na altura do posto 12, e nem deu muita bola para o chamado. Achou que não era com ele. Não podia ser mesmo. Tio? O craque bicampeão do mundo pela Seleção Brasileira, 26 vezes campeão pelo Botafogo, jogador de tantas glórias, o primeiro lateral ofensivo da história, não podia ser simplesmente Tio. No máximo, Nilton. E, de repente, ele se lembrou daquela vez em que Vicente Feola, técnico da Seleção Brasileira em 1958, berrou do banco de reservas: “Volta Nilton, volta cacete, volta Nilton, cacete… Gol, Nilton, Golaço”. Nilton ria, passeando pela praia.

Tio? Tio?

Era com ele mesmo. Não podia ser, mas era. Tá certo que ele já estava longe dos gramados havia alguns anos – e olha que Nilton jogou até os 39 – , mas a garotada da praia andava mal informada. Não era capaz de reconhecer Nilton Santos? Pelo visto, não. E dá-lhe Tio, tio, tio…

Vencido, o “Enciclopédia” olhou de lado. Um garoto magrinho, com seus 12, 13 anos, repetiu: Tio!

– O que é, garoto?

– Dá para inteirar o time? É que aqueles “cara” ali (o menino apontou para cinco garotos) estão me desafiando para um rachão. Aceita?

Nilton olhou os “cara”, mais velhos que o magrelinha ao lado dele. Topou. Seu companheiro de time, como um autêntico Feola, foi logo avisando:

– Olha, tio, é só ficar parado, atrapalhando, que eu resolvo.
Nilton pensou: o molequinho aí acha que é Pelé. E sugeriu:

– Faz o seguinte: fica plantado lá na frente que eu roubo a bola e lanço. Vamos dar de goleada. O garoto pensou: o tio aí acha que é Pelé.

Começa o rachão. O adversário vem para cima de Nilton. Ensaia um drible da vaca. A vaca vai para o brejo. Nilton rouba a bola e faz um lançamento para seu companheiro. Gol. Novo ataque. Outro adversário vem para cima de Nilton. Balança, ginga, pra lá, pra cá… Nilton recupera a redonda, dribla o segundo adversário, o terceiro, e empurra a bola para o gol.

E o jogo segue assim: firulas de um lado, Nilton resgata a bola e coloca o “Feolinha” na cara do gol. Placar final? “Nem me recordo. Foi uma das maiores goleadas da minha vida”, conta Nilton Santos.

Quando o jogo acabou, o companheiro de Nilton lembrou-se:

– Tio, qual é mesmo o seu nome?

– É Nilton. Nilton Santos.

– Nilton Santos?! O “Enciclopédia do Futebol”?! Então, tá. Se você é o Nilton Santos, eu sou o Pelé. Tchau, tio.


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