Subindo na vida sem loteria: três casos do Brasil real

A manicure carioca estava vivendo sua primeira aventura num cruzeiro. No meio da viagem de navio para o nordeste, cruzou com uma cliente do seu salão, que ficou surpresa ao encontrá-la:

_ Nossa! O que você está fazendo aqui? Ganhou a viagem numa promoção?

_ Não, por que? Você por acaso ganhou a passagem numa promoção? Eu estou pagando a minha

Na volta ao salão, dias antes do Natal, a manicure reproduziu a cena e o diálogo às suas colegas e freguesas. Entre elas, estava a minha amiga Cecília Maia, jornalista de Brasília, que está passando férias com a família aqui em Toque-Toque Pequeno, e me contou esta história, um dos três casos do Brasil real que recolhi estes dias na praia.

No post anterior, ficamos sabendo da virada na vida do seu Adolfo, o humilde jardineiro de Santa Rita do Passa Quatro, que de um dia para outro ficou milionário ao ganhar R$ 72 milhões na Mega Sena. O que aconteceu com ele, que logo viu o sonho virar pesadelo, foi belíssimamente contado na quarta-feira em reportagem de outro amigo, Ricardo Galhardo, no iG.

Para milhões de brasileiros como a manicure carioca, no entanto, não foi preciso ganhar na loteria para subir na vida e fazer coisas que nunca havia feito antes, como esta viagem de navio. Os passageiros desta chamada nova classe média entram em 2010 com novos sonhos e planos de vida.

É o caso do piscineiro José Cícero de Gois Lima, 37 anos, pernambucano de Caruaru, que há vinte anos veio trabalhar nos condomínios de Toque-Toque Pequeno. Na segunda-feira, eu estava aqui na varanda da minha casa, escrevendo o primeiro texto do ano novo no meu velho notebook, quando ele veio timidamente me perguntar:

_ O senhor tem youtube aí?

Confesso que fiquei um pouco intrigado e quis saber qual o motivo da pergunta dele. A resposta me deixou mais surpreso ainda:

_ É que eu fiz uma música que está no youtube e queria mostrar para o senhor

Digitei o nome da música “Só Deus que faz chover” e, de fato, lá estava um vídeo com o nome dele cantando uma das suas composições:

Foi Deus
Que criou o céu
E o por do sol
Do entardecer
Foi Deus que criou a noite
E o lindo sol do amanhecer.
Deus fez as nuvens e o mar
Rio de água doce
Pra beber
A natureza que Deus deixou
Se não cuidar pouco a pouco
Vai morrer.
O homem polui os rios
E o ar puro
Que Deus deixou
A ambição do homem
Foi tão longe
Até o clima do tempo
Já mudou.
Só Deus que faz chover
Só Deus que faz parar
Só Deus que pode
Mudar o rumo do vento
Pra onde quer que vá.

Mais espantado fiquei ainda não só com a beleza da música, num ritmo que lembra o sertanejo, mas principalmente com a atualidade dos seus versos nestes dias de verão em que parece que a terra está derretendo.

Para 2010, Zé Cícero, como é conhecido, tem dois planos: gravar um CD com suas músicas e terminar o segundo grau para poder se inscrever no Prouni e fazer uma faculdade. Quer ir mais longe que seu pai, que era barbeiro em Caruaru, mas sempre sonhou, apenas sonhou em estudar arquitetura.

O ex-pescador Jorge de Matos, 50 anos, nascido aqui mesmo no Toque-Toque Pequeno, de onde nunca saiu, filho e neto de pescadores, já entra em 2010 com seu sonho realizado. Em setembro, ele finalmente inaugurou seu restaurante, o “Toque Caiçara”, num puxadinho da casa onde mora, um projeto que ele acalentou durante os últimos 14 anos, desde que o conheci, quando abriu um quiosque na praia.

Enquanto construí minha casa, no final dos anos 1990, aluguei um quarto na casa dele para acompanhar as obras, e ficamos amigos. Toda vez que o encontrava, Jorge falava da idéia de abrir um restaurante com comida caiçara para atender à crescente clientela de turistas que alugavam as casas dos pescadores, hoje a principal fonte de renda da maioria deles.

Ver a alegria deste brasileiro mostrando as instalações do seu restaurante modesto, mas bonito e aconchegante na sua singeleza, já valeu a viagem. Ao lado da sua companheira, a jornalista Nely Noemy, 45 anos, competente editora dos telejonais do SBT e da Record por mais de vinte anos, ele mesmo cuida de tudo.

Entre outros acepipes praianos, o cardápio oferece mariscos colhidos ali mesmo nas pedras da praia e uma bela garoupa azul marinho cozida com banana verde. Na varanda do restaurante, um frondoso pé de bacupari, uma fruta típica de verão, oferece sombra e a matéria prima para uma batida que só tem lá, feita com saquê.

Felizes e orgulhosos com sua obra, Jorge e Nely sentam-se à mesa com seus fregueses, depois de servir os comes e bebes, lembrando antigas histórias de pescadores dos tempos em que aqui só viviam duas famílias, os Matos e os Oliveira, antes da chegada de Yoshiro Takaoka, o grande empreendedor imibiliário que plantou condomínios pelo país afora, e achava este lugar o mais bonito do mundo.


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