Aprendendo a ser Gay Talese

Quisera eu ser Gay Talese e escrever a Melhor Reportagem de Todos os Tempos, a que ele publicou na revista Esquire de abril de 1966 – “Frank Sinatra está resfriado”. Posso ao menos tentar aprender a ser Gay, o repórter que pôs Sinatra a nu sem sequer falar com ele. Gay pediu uma entrevista, “Old Blue Eyes” prometeu, mas nunca deu.

Encontramo-nos no restaurante Gino’s, na diagonal da Bloomingdale’s (sofisticada loja de departamentos americana). O lugar é uma cápsula dos anos 40. Segundo Talese, o restaurante mais reacionário do mundo. Nada muda desde que abriu, em 1945. Nem o menu, nem os garçons – todos italianos (os que morrem vão sendo trocados por outros idênticos) – e, pelo visto, nem os fregueses. Me sinto um garoto nessa turma. Chego mais cedo e espero no bar. O barman Bruno me olha de lado e me serve um Chardonnay, com repulsa. Quem bebe isso? Um sujeito alto, em todos os sentidos, diz ser agente de Hollywood e me dá seu cartão, que perco imediatamente. Dois senhores bem-vestidos que parecem figurantes da série Sopranos, fazem ar de pouco-caso e tédio. Uma sessentona loura sentada a meu lado estuda o bloody Mary, resignada. Conto as zebras no papel de parede vermelhão, metade com uma listra a menos no lombo, por erro do artista. São 264 zebras fugindo de flechas. Quando o papel desbota, mandam fazer outro idêntico. As flores são de plástico. Aqui não aceitam cartão de crédito. Só dinheiro vivo, cash. O lugar está lotado.De repente todos os olhos giram para mim, porque ele chegou. Gay só vai a restaurantes onde é conhecido e não precisa fazer reserva. Uma mesa vaga aparece por milagre. Gay entrega ao maître Salvatore o casaco longo de camurça havana, forro de carneiro, gola de visom castanho-claro. É dos anos 30, cintado e justo, herdou do pai. O casaco lembra Scott Fitzgerald e a era do jazz – poderia ter um frasco de uísque escondido no bolso. O chapéu é um Borsalino de feltro café-com-leite. Gay tem 12 chapéus de inverno – Homburg, Fedora e Trilby – e oito panamás de verão feitos por um cubano de Miami. Ele acaba de comprar mais dois chapéus na loja Herzfeld, um dos poucos lugares onde encontra roupas e acessórios em Nova York com a qualidade que exige.Quando vai ao Gino’s, que é ao lado de casa, Gay se veste casualmente. O paletó esporte ferrugem, de lapelas pontudas, foi feito sob medida em Paris por Francesco Smalto, o alfaiate oficial da Seleção Francesa de Futebol e amigo da família Talese. Em novembro, Gay comprou em Paris um enxoval completo na maison Smalto. O colete preto de seda é do alfaiate Sal Cristiano, que também fez as calças com duas pregas na frente, de cada lado. Sal veio da Sicília há 28 anos com o irmão Joseph que é barbeiro. A alfaiataria, S&L Tailors, funciona ao lado da barbearia, na esquina da Lexington com a 61. Ali não só Gay Talese, mas os capitães da indústria e celebridades do bairro cortam o cabelo e mandam fazer seus ternos.Gay troca de roupa várias vezes por dia, de acordo com a situação, e combina peças autênticas de determinado período. Possui 75 ternos e quase 20 paletós. Sai vestido de anos 30, 40, ou 50. São roupas feitas pelo pai ou pelos primos Cristiani, que eram alfaiates em Paris na Rue de La Paix antes de se aposentarem no fim dos anos 90. Agora, quando Gay quer uma roupa nova, Sal copia uma das peças antigas da coleção do escritor. O que ele não tem e nunca terá: blue jeans.

A camisa de colarinho e punhos brancos, o corpo listrado nas cores do arco-íris, de algodão egípcio, é da Addison on Madison, uma das lojas de roupa mais exclusivas de Nova York, assim como a gravata de seda amarela, nó Windsor. As abotoaduras esta noite são de brilhantes em forma de trevo. No pulso, o relógio Cartier quadrado, pulseira de ouro, que ganhou da mulher no 35º aniversário de casamento. As mãos são pequenas e bem-cuidadas. Não usa anel.- Aliança de casado é coisa de homem que quer manter as aparências, parecer honrado. Minha mulher aceita que eu não use.Os calçados são encomendados ao sapateiro Roman da casa Vincent & Edgar, outro endereço tradicional de Nova York, no mesmo bairro. São de camurça marrom, e ele faz questão de ilhós de metal para passar os cadarços – cinco ilhoses de cada lado.Gay é estreito e magro, 70 quilos, 1,75 metro. O paletó é 36, tamanho de adolescente. Não tem barriga: 80 centímetros de cintura. Ele se cuida. Três vezes por semana malha na academia Equinox, a dois quarteirões de casa. Quando o tempo esquenta, joga tênis. Costumava jogar até no inverno, cinco vezes por semana, mas com a idade diminuiu a freqüência.Vista de perto, a pele lisa cor de oliva faz com que pareça bem mais jovem – está com 75 – e os olhos enormes, cor de avelã, animam o rosto encovado ao qual o nariz longo e fino dá o ar de senador romano. A voz é alta e clara, o tom às vezes cortante e impaciente, mas suave quando fala de chapéus e roupas.Pede um dry martini que Bruno prepara com gim Bombay, uma gota de vermute e raspa de limão – azeitona, nunca. Encomenda ao garçom Andrea um ossobuco e uma taça de vinho tinto italiano da casa, um Bardolino. Agora podemos conversar.- Quero aprender a ser Gay.- Não insulte minha inteligência.- Você é o mestre. Quero saber como é ser Gay.- Aposto como sua história é muito mais interessante do que a minha.Um martíni depois, ele me faz contar todos os meus segredos e tenta me convencer a fazer de mim mesmo o tema da reportagem, não ele.- Uma boa história precisa de uma cena. Quer cena melhor do que esta? Você me encontra porque quer aprender a ser como eu e descobre que a verdadeira história é você mesmo. Sensacional! Escreva isso. A verdade é mais forte do que a imaginação.Prometo pensar no assunto e vou embora com a sensação de ter sido passado para trás. Continuo sem saber como ser Gay.No dia seguinte ele me deixa um longo recado.- Você tem uma grande história. A sua história. Quem está interessado em Gay Talese? Conte como você tentou me entrevistar e acabou me contando os seus segredos. Faça isso. Não vou mais falar com você. Afinal, o Sinatra nunca falou comigo, e a reportagem acabou sendo sobre mim mesmo, sobre como eu via o Sinatra. Não me ligue mais. Tudo que você quer saber sobre Gay está nos meus livros. Estou indo viajar para o casamento da minha filha na Inglaterra e não vamos mais nos ver. Boa sorte.Os livros de Talese estão quase todos esgotados. Num sebo, compro oito deles, a US$ 3 cada. Três foram bestsellers nos anos 70 e 80. Mas o interesse do público minguou. Em 1992, lançou Unto the Sons (sem tradução no Brasil, é o primeiro de uma trilogia sobre a família Talese), que encalhou. O escritor passou 14 anos sem publicar e, em 2006, saiu A Writer’s Life (sem versão para o português, é o segundo da trilogia), mais um fracasso de crítica e vendas. Mas uma nova antologia das reportagens publicadas na revista Esquire nos anos 70 ressuscitou o mito. Gay Talese é o mestre de um formato, a reportagem longa de revista mensal.Para o perfil de Sinatra, ele passou um mês acompanhando o cantor, a distância, e fez dezenas de entrevistas com a entourage e os parentes do astro. Ficou hospedado no melhor hotel de Beverly Hills, em Los Angeles. As contas pagas pela Esquire chegaram a US$ 7 mil, 45 mil em valores atuais. De volta a Nova York, foram mais seis semanas para organizar o material e escrever a reportagem de 55 páginas. O resultado é um retrato de Sinatra na intimidade, um padrone siciliano cercado de dependentes, ao mesmo tempo generoso e cruel. A história é montada como um filme, as cenas descritas em detalhes saborosos. O repórter e escritor Tom Wolfe consagrou “Sinatra está resfriado” como a primeira obra-prima do Novo Jornalismo, a escola que introduziu na reportagem as técnicas do romance moderno. Mas Gay Talese não considera “Sinatra” sua melhor reportagem. Tem razão. Os perfis do boxeador Floyd Patterson, do craque de beisebol Joe DiMaggio e do ator Peter O’Toole são ainda melhores. Muitos consideram o perfil de DiMaggio a melhor reportagem sobre esportes do século 20.Talese não dá muito valor a perfis de gente famosa. Para ele, as melhores histórias são as de gente obscura. A arte do repórter está em descobrir, em vidas aparentemente banais, paixões como as dos personsagens de romances. Foi assim que ele escreveu seus best-sellers, livros de mais de 500 páginas que venderam acima de 1 milhão de exemplares cada um. Os três são, no fundo, a história de Gay Talese.Primeiro, nos anos 60, Gay voltou como repórter freelancer a seu primeiro e único local de trabalho fixo, o jornal The New York Times, onde atuou, de 1955 a 1965, como repórter de Esportes, depois de Política e, por fim, de Cidade e reportagens especiais. Na editoria de Política, não se deu tão bem. Rebelou-se contra os editores, que mexiam demais em seus textos, e foi punido com o remanejamento para a seção de obituários, onde permaneceu por um ano cuidando de defuntos de segunda classe. Gay deixou o jornal porque não agüentava os deadlines e os copidesques que reescreviam seu texto.Talese construiu um quadro minucioso do dia-a-dia de um grande jornal, contando a história dos jornalistas que nele fizeram suas carreiras e da família dos proprietários. O Reino e o Poder é um clássico, leitura obrigatória nos cursos de Jornalismo.Depois, ele mergulhou nos bastidores do crime organizado. Vinda da Calábria, a família Talese conheceu homens ligados à máfia local, a ‘Ndrangheta (do grego, “heroísmo”). Mas o pai do escritor, Giuseppe, mudou o nome para Joseph e, em vez de dar ao filho o nome de Gaetano, em homenagem ao pai, preferiu americanizá-lo: Gay. Joseph tinha horror à máfia e se indignava ao ver que na cultura popular o ítalo-americano era sempre retratado como mafioso.Gay tornou-se amigo de Bill Bonanno – filho do chefão Joe – quando a família Bonanno foi expulsa de Nova York pelos Gambinos. O escritor mudou-se para a Califórnia, para conviver com os Bonannos, e retratou o dia-a-dia da máfia do ponto de vista das mulheres da família. Honor Thy Father (Os Honrados Mafiosos, lançado no Brasil em 1972 pela Expressão e Cultura) foi o precursor de Os Bons Companheiros, o filme de Martin Scorsese, baseado num livro do primo irmão de Talese, Nicholas Pileggi.Em 1980, Talese publicou A Mulher do Próximo, seu maior sucesso, construído como um romance em que os personagens são os protagonistas reais da revolução sexual, de Hugh Hefner, o editor da Playboy, aos nudistas e adeptos do amor livre de Sandstone, na Califórnia, e freqüentadores de casas de massagem em Nova York. Os direitos foram vendidos a um estúdio de Hollywood por US$ 2,5 milhões, recorde na época, mas o filme não foi feito. A pesquisa levou nove anos e Gay, depois de descobrir o encanto das massagistas, empregou-se por mais de um ano como gerente de duas casas de massagem de Manhattan para observar o tema mais de perto. No livro, a experiência rende apenas algumas páginas, mas quase custou a Talese o casamento. Sua mulher, Nan, uma das mais prestigiadas editoras de livros de Nova York, chegou a sair de casa levando as duas filhas, mas acabou voltando.Hoje, na era da pornografia e da pegação pela internet, a revolução sexual dos anos 70 descrita por Talese parece pateticamente careta e tímida. E o escritor ignora tanto o movimento gay quanto o feminismo, que em termos políticos representaram a verdadeira revolução dos 70. Gay, vale lembrar, não é gay. Muito pelo contrário.”Foi em Sandstone que Talese”, ele escreve referindo-se a si mesmo na terceira pessoa, “ficou à vontade como nudista; e embora ele não fosse bissexual, aprendeu em Sandstone a relaxar na presença íntima de homens nus, e a desenvolver nesse ambiente desinibido laços de amizade com alguns homens que o levariam a abraçá-los com a naturalidade de um aperto de mãos.”Seu último livro, A Writer’s Life, que The New York Times chamou de “uma saga de fracassos profissionais que resulta num fracasso”, é o mais autobiográfico. Especialista em perdedores como Floyd Patterson, Talese se vê diante da impossibilidade de escrever um livro de memórias, pelo qual recebeu da editora Knopf 7 milhões adiantados. O repórter acumula entrevistas, recortes, anotações que renderiam cinco livros, mas não chega a lugar nenhum. Nada agrada aos editores. O mundo mudou, mas Gay Talese continua a escrever centenas de páginas sobre assuntos que hoje não rendem mais que uma nota. Um prédio azarado onde 11 restaurantes fracassaram, um após o outro, ocupa um terço do livro. A história de uma jogadora de futebol chinesa que perdeu um pênalti na final da Copa feminina leva Talese à China por cinco meses e é um tiro n’água. O nocaute vem quando a editora da revista New Yorker, Tina Brown, derruba uma longa reportagem dele sobre John Bobbitt, o sujeito que teve o pênis reimplantado depois de ter sido decepado pela mulher, Lorena. Talese escreve uma ode ao pênis, mas Tina Brown queria uma ode à castradora. A New Yorker sempre esnobou Talese, visto como um fabricante de best-sellers, não como um grande escritor. O artigo recusado acabou se transformando em um dos capítulos do livro.Mas para quem quer ser Gay Talese, A Writer’s Life dá dicas preciosas. Ele nunca usou gravador. Garante que o gravador é um dos responsáveis pela queda de qualidade do jornalismo escrito. Guarda tudo na memória e depois anota em cartões que recorta das cartolinas das lavanderias onde lava suas camisas. Ele comprou uma série de computadores Macintosh, mas nunca se adaptou. Escreve num bloco de papel amarelo, a lápis, em letra de forma, e depois relê, apaga e reescreve, mudando palavra por palavra. Quando está satisfeito, o que pode levar meses, passa o texto a limpo numa máquina de escrever elétrica IBM. Entre 1995 e 1999, produziu exatamente 54 laudas e meia.- Mais escritores deveriam fazer o que eu faço: NÃO escrever. Há tanto texto ruim por aí, para que mais? Deveria haver um prêmio anual dado a certos autores para NÃO ESCREVER.Entre outros, ele tem como alvo o prolixo Bob Woodward, aquele da dupla Woodward-Bernstein do escândalo Watergate.- Woodward e Bernstein viraram estrelas e todos os estudantes de Jornalismo desde então querem ser famosos como eles. Eles criaram o “jornalista celebridade”. O repórter passou a ser mais importante do que a notícia. O pouco-caso em relação aos fatos resultou no caso Jayson Blair, que desgraçou o New York Times.Um autor na mira de Gay Talese: Noam Chomsky.- É um chato. Nos livros dele ninguém consegue passar da página 16.Mas Talese é fã de um dos escritores americanos mais prolíficos, o amigo e co-fundador do Novo Jornalismo, Norman Mailer.- Mailer é um leão, um lutador.Ao contrário de Talese, Mailer, aos 84 anos, continua produzindo best-sellers. Acaba de lançar mais um sucesso, The Castle in the Forest, biografia romanceada do menino Adolf Hitler, narrada por um demônio.Talese se entristece quando o assunto é New York Times. O escândalo de Jayson Blair não foi o único. Tão grave ou mais foi o caso de Judith Miller. Suas reportagens sobre as armas de destruição em massa de Saddam Hussein foram usadas para justificar a invasão do Iraque. Talese lamenta que a instituição onde aprendeu a ser jornalista tenha perdido o rumo. Mas ele nunca teve ilusões sobre a objetividade e isenção do jornalismo.- Os editores escolhem as matérias que lhes convêm, mesmo que não tenham consciência disso. E a verdade jornalística é sempre limitada. Mas é verificável.O ex-repórter de esportes continua fiel à sua antiga paixão.- Sempre começo a ler o jornal pela seção de esportes porque é a única parte do jornal na qual a gente pode acreditar. A única que só contém verdades. Não dá para acreditar no que a Casa Branca diz. É tudo falsificado.Gay Talese se orgulha de nunca ter sido acusado de inventar ou distorcer um fato. Em seus livros, a obsessão com os detalhes exaustivamente documentados às vezes torna o texto pesado e arrastado. É um estilo antiquado. Mas na era dos blogs, quando todos publicam qualquer opinião como se fosse fato, ler Gay Talese é uma lição de jornalismo. Ele nunca dá opinião. Limita-se a descrever o que viu ou apurou e apresenta ao leitor os protagonistas em toda a sua complexidade. Cabe a quem lê digerir essa massa de informações e tirar conclusões. Hoje, quem tem tempo para isso? O público quer tudo já digerido. O jornalismo de Gay Talese é exatamente o oposto do que se faz na TV e na internet.A não ser os estudantes de Jornalismo – a cada semestre ele dá aulas em Nova York e na Califórnia -, o grande público nos Estados Unidos não sabe quem é Gay Talese. Ele não se incomoda. Está começando um novo livro, uma grande aventura.- Não sei onde isso vai me levar. Não tenho um plano, uma tese que eu queira provar. É como pegar o carro e sair dirigindo sem rumo. A gente espera que seja para um lugar bom, a busca da felicidade. Mas não dá para prever, nada garante que eu vá chegar. O bom é a viagem.Gay Talese, quando o tempo melhora, dá longas caminhadas a pé por Nova York. Seu primeiro livro, de 1961, New York: a Serendipiter’s Journey (Nova York, a Jornada de um Serendipitoso, lançado no País em 1973, na coletânea de reportagens Aos Olhos da Multidão, e reeditado em Fama & Anonimato, de 2004), escrito quando ainda era repórter de Cidade, é uma fantástica coleção de fait divers, pequenas jóias, uma crônica dos encantos urbanos que ninguém vê.Nova York é uma cidade de coisas que ninguém nota. É uma cidade de gatos dormindo sob carros estacionados, dois tatus de pedra escalando a Catedral de St. Patrick, e milhares de formigas trepando no alto do Empire State Building.Uma cidade que não existe mais: – Centenas de pessoas fazem fila na Rua 42 esperando abrirem às 8h da manhã os 10 cinemas um ao lado do outro entre a Times Square e a Oitava Avenida. Quem são essas pessoas que vão ao cinema às 8h da manhã? São os vigias noturnos da cidade, os desamparados, as pessoas que não dormem, que não podem ir para casa, que não têm casa. São motoristas de caminhão, homossexuais, policiais, copidesques, faxineiras e empregados de restaurantes que trabalham a noite toda. São também alcoólicos esperando as 8h da manhã para pagar US$ 0,40 e conseguir uma cadeira macia e dormir no cinema fresco, escuro, enfumaçado.O andarilho também gosta de dirigir e tem dois carros esportivos antigos e dois conversíveis Triumph dos anos 50, guardados na casa de praia da família em Ocean City, onde Talese nasceu, uma ilha ao sul da cidade dos cassinos, Atlantic City, no Estado de Nova Jersey.O pai, Joseph, veio da Itália para trabalhar na mesma fábrica de amianto da Pensilvânia que matou o pai dele, Gaetano. Joseph, no entanto, que era alfaiate, descobriu Ocean City por acaso e lá ficou. Abriu uma alfaiataria, mas nunca teve sucesso. Casou-se com uma também imigrante da mesma aldeia da Calábria, Catherine di Paola, e ela o convenceu a trocar a alfaiataria por uma loja de vestidos finos. A família prosperou. Joseph, porém, sempre foi um homem frustrado, isolado naquele fim de mundo, enquanto o primo Antonio Cristiani fazia sucesso como alfaiate em Paris.Gay era um menino muito tímido, tiranizado pelo pai, que sempre dizia: “Deixe de ser fresco!”. O garoto era o único aluno que ia ao colégio de terno, colete e gravata. Ainda por cima italiano, e franzino, numa escola de irlandeses parrudos. Como sofreu! A saída que Gay encontrou foi cortejar os colegas esportistas, escrevendo sobre eles, primeiro para o jornal do colégio, depois para o da cidade. Assim se tornou jornalista. Mas não conseguia se concentrar nas aulas, tinha péssimas notas e foi recusado por todas as universidades da região. Graças a um pistolão, amigo do pai, acabou entrando na Universidade do Alabama, onde continuou a escrever sobre os jocks – os atletas.Ex-coroinha, ele conta que foi no segundo ano da faculdade que se masturbou pela primeira vez. Em A Mulher do Próximo, descreve em detalhes um rapaz se masturbando. É uma das raras cenas eróticas do livro.Pamela, a filha mais velha de Talese, tinha 16 anos quando o livro saiu. Ficou chocada ao ler sobre as aventuras do pai e resolveu “pular” essa fase da adolescência – as experiências sexuais.Todos os dias, depois de passear os dois cães terrier australianos, Talese, vestido de terno, gravata e colete, desce a escada de ferro da casa de cinco andares que comprou em 1971 por US$ 175 mil (hoje vale 10 milhões), a um passo da rua mais valorizada da cidade, a Park Avenue, e abre a porta na altura da calçada que dá para o escritório sem janelas, telefone e internet. Lá ele se senta diante de três escrivaninhas arrumadas em U, onde estão as pastas dos assuntos que pesquisa no momento. As paredes são cobertas de placas de isopor, nas quais prega com alfinetes suas anotações, recortes de jornal, manuscritos prontos. Trabalha até a hora do almoço, tomando notas, copiando recortes numa copiadora Canon, relendo papéis antigos.Gay Talese não joga nada fora. Ele foi ao Brasil em 1998 para dar uma palestra e tem tudo anotado numa pasta. Ficou hospedado com Nan no Copacabana Palace, que considera o hotel mais bonito do mundo. O ponto alto da estada foi um show da cantora Simone, com quem o casal jantou em seguida. Talese e Simone têm em comum o agente, o advogado Roberto Halbouti, que foi diretor da gravadora CBS e parceiro de Fábio Jr. na canção Senta Aqui. Gay e Nan se tornaram fãs da cantora. Têm cinco discos dela, que ouvem sempre. Nan voltou ao Brasil outras vezes, para a Festa Literária Internacional de Parati (FLIP).- Só fui ao Rio, que é uma das cidades mais sofisticadas que já conheci. Os brasileiros me impressionam pela mistura democrática de cores. Não é como esta América dos três S: segmentada, separada e segregada. Os brasileiros têm um espírito de aventura nos cruzamentos culturais e o resultado é uma beleza que não vejo em nenhum outro país da América Latina. Na Europa, nem se fala. Vou à Dinamarca e vejo em toda a parte a mesma pessoa. No Brasil não. Os brasileiros são voltados para fora, não para eles mesmos. Têm intimidade com o Outro.O próximo livro de Talese é uma reportagem sobre seu casamento.- Nos casamos em 1959. Daqui a dois anos completamos 50. Eu tinha 27 anos e estava em Roma enviado pelo Times, para escrever sobre a Via Veneto, onde Fellini filmava La Dolce Vita. Nan foi me encontrar decidida a casar. Me convenceu. Mas não topei o casamento na igreja como ela queria. Nos casamos na prefeitura de Roma. Por que um sujeito como eu está casado com a mesma mulher há tanto tempo? Outros se amam como nós nos amamos, mas se separaram. Já brigamos e nos separamos várias vezes, mas continuamos juntos. Por quê? Em geral, o marido deixa a mulher quando se sente muito mal. Vai ver eu nunca me senti mal o suficiente…Ele guarda todas as cartas, bilhetes, fax trocados com a mulher durante as longas ausências para pesquisar seus livros, e é esse o material que vai servir de base. As duas filhas concordaram em entregar-lhe os diários para acrescentar um ponto de vista diverso ao retrato do casamento. Segundo Talese, Catherine critica o pai por ter sido sempre muito distante… e muito exigente quanto à aparência dos namorados, a ponto de mandar fazer ternos para eles. Já o escritor se considera “o melhor pai do século”. Catherine trabalha como editora de fotografia de revistas como GQ e Absolute New York, e também é escritora, mas não mostra ao pai o que escreve. Pamela, a irmã mais velha, é pintora e dirige a galeria Atlantic no Soho. Seus quadros hiper-realistas revelam, como os textos do pai, a atenção minuciosa aos detalhes mais banais.O novo livro será também uma história do meio literário de Nova York nas últimas décadas. Nan e Gay são o centro de um vasto círculo de amigos, que inclui Tom Wolfe e o primo irmão Nicholas Pileggi com a mulher, a escritora e diretora de cinema Nora Ephron. O jornalista e historiador David Halberstam, morto num acidente de carro em abril deste ano, também fazia parte do grupo. Eles costumam se encontrar depois do jantar ou do teatro para drinques até altas horas no Elaine’s, um restaurante aparentemente despretensioso, presidido pela simpática Elaine Kaufman – mas se você não for “alguém” irá parar na Sibéria, a sala dos fundos. O Elaine’s, que só fecha quando o último freguês vai embora, em geral às quatro da manhã, está para Manhattan como o Antonio’s estava para o Rio nos anos 70 e 80.Gay não é de beber muito. Toma no máximo um martíni e meio por noite e cerveja leve, de preferência a italiana Moretti. No Elaine’s, os freqüentadores pulam de mesa em mesa ao longo da noite. Numa noitada recente, Talese sentou-se ao lado de Kareem Abdul-Jabbar, um dos maiores craques dos Lakers nos anos 70. O escritor ficou sabendo que Abdul-Jabbar, de origem iorubá, converteu-se ao islamismo. O ator Stanley Tucci e a cantora Judy Collins também estavam à mesa. Pairavam os fantasmas de dois notívagos assíduos: George Plimpton e Robert Altman.Gay Talese é um homem que não ri. Totalmente desprovido de humor, incapaz de contar uma piada, está sempre tenso dentro de sua armadura, o three-piece-suit, o terno com colete. Gay anda pela rua como um grão-senhor: cabeça erguida, postura ereta, passadas largas e rápidas. A mãe dele morreu aos 95 e tudo indica que Gay chegará inteiro a 2027. Outro dia foi convidado a dar uma aula numa escola particular para meninos perto da casa dele. Foi a pé, deixando para trás o fotógrafo Cláudio Versiani da Brasileiros, o casaco de pele aberto, apesar do frio cortante, e uma longa echarpe vermelha voando ao vento. Subiu três andares lépido e fagueiro.Falando em pé por uma hora e meia para estudantes de 17 anos, Talese ensinou-lhes os princípios básicos do jornalismo: sejam como uma câmera que registra tudo sem julgar; é fundamental o respeito. Respeitem o outro.- Estamos vivendo num período de trevas no jornalismo. Quando eu era jovem, os jornalistas eram independentes do governo. Eles se dispunham a ser chamados de traidores, porque diziam a verdade.Esse é o credo de Gay Talese. Como os capi da Sicília e da Calábria, como o pai Joseph e o avô Gaetano, ele é um homem de respeito, e de respeito à verdade. Ele jamais ridiculariza ou sequer critica as pessoas que entrevista. Ironia e cinismo, ingredientes do jornalismo de hoje, são totalmente estranhos a ele. Sentimentalismo, também.Uma das cenas mais tocantes de um dos livros de Talese (Unto the Sons) é contada no estilo seco de sempre, falando de si mesmo na terceira pessoa. “Num sábado de manhã, o menino Gay, 12 anos, vê aberto sobre a mesa The New York Times, jornal que ele se recusa a ler porque não traz histórias em quadrinhos. Na capa, a foto das ruínas da abadia de Monte Cassino, totalmente destruída em 15 de fevereiro de 1944 por mais de 600 toneladas de bombas jogadas por aviões americanos B-17, a Fortaleza Voadora, e outros bombardeiros. Era a primeira vez que os aliados destruíam um prédio religioso – e logo um dos mais antigos, do século 6º, onde São Bento fundou a ordem dos Beneditinos, no Sul da Itália, origem da família Talese.O menino ouve uma voz zangada, abre a porta e vê o pai derrubar os aeromodelos pendurados do teto do quarto de Gay, batendo neles com as mãos abertas como se fossem moscas. Ele implora que o pai pare, mas Joseph não responde, joga no chão e pisoteia duas dúzias de modelos – B-17, B-26, B-25, P-38, P-39, P-40 – que eram o orgulho do filho, até destruir tudo. Gay, gritando ‘Eu te odeio!’, calça os patins e sai pela cidade chorando, a toda velocidade, até atravessar a vitrine da padaria, onde cai coberto de vidro e sangue.Quando acorda, vê o pai soluçando, abraçado a ele, a murmurar ‘Non ti spagnare’, não tenha medo, enquanto o menino continua a dizer entre lágrimas ‘Eu te odeio’. Quando Gay é levado para a ambulância, ouve o pai dizer, em inglês, um antigo ditado calabrês: ‘Aqueles que te amam te fazem chorar”.Na mesa do Gino’s, não consigo lembrar como foi que Talese virou o jogo e me fez desabafar o que trago escondido. Só recordo o nó perfeito da gravata, as mãos de gestos econômicos, cortando o ar para acentuar uma palavra ou tocando de leve a testa para trazer de volta uma lembrança. Mãos de um hipnotizador sóbrio. A sobriedade é a essência de seu estilo.Quando nos despedimos, me sinto grato por ter sido ouvido com tanta atenção e interesse. E embora não tenha arrancado nenhuma informação sobre ele, começo a perceber qual é o segredo de ser Gay, Gay Talese. Ele me deu uma pequena aula de seu método. Como fez com Sinatra e tantos outros, ele desaparece no cenário, puro observador, distanciado sem ser distante, profundamente interessado e concentrado, respeitoso sem adulação, a curiosidade no que ela tem de mais humano e filosófico, e assim ele põe o outro diante da própria verdade. Deve ser por isso que é conhecido como “o repórter dos repórteres”.Desrespeitando suas ordens, dou um último telefonema de despedida.- Não vou mais ligar. Vai sentir falta de mim?- Não!Ele sabe que um dia desses eu ligo de novo.


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