Em busca dos dogons

Férias no Mali, país do oeste africano. Lá iremos encontrar uma amiga antropóloga que vive entre os dogons, povo de agricultores que ocupa há mais de cinco séculos a região da falésia de Bandiagara, nas proximidades da fronteira com Burkina Fasso. A idéia de ir para tão longe nos enche de ansiedade. É início do ano, estamos em Paris, e partiremos dentro de dois dias. Também somos antropólogos e conhecemos os dogons de livros e filmes, que alimentaram nossa imaginação sobre esse mundo tão distante do Ocidente. Perguntamo-nos se os dogons ainda realizam grandes rituais de iniciação e imponentes funerais, dos quais participam grandes máscaras e uma multidão de espíritos. Qual não será nossa emoção se conseguirmos ver isso tudo de perto.

Duas coisas, no entanto, nos afligem. Temos muito pouco tempo de viagem – 13 dias – e o caminho que separa Bamako, a capital do Mali, do assim chamado “país Dogom” é longo e tortuoso – 700 quilômetros que incluem estradas ruins. Sabemos, além disso, que há atualmente um grande número de turistas europeus se aventurando por esse lugar de beleza indescritível. Os dogons somam, hoje, aproximadamente 450 mil pessoas e, até o início do século 19, conseguiram manter-se alheios ao mundo islâmico e europeu, escondendo-se em sua geografia acidentada. Eles nos parecem bem menos estranhos do que esses bizarros exploradores, que percorrem as falésias a bordo de seus poderosos veículos 4×4.
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Um dia antes da partida, resolvemos visitar o Museu do Quai Branly, espécie de Louvre das chamadas artes “primitivas”. Lá há uma enorme coleção de peças dogons, muitas obtidas durante a mítica expedição Dacar-Djibuti (1931-33), encabeçada pelo antropólogo Marcel Griaule e eternizada por Michel Leiris nas páginas de A África Fantasma (leia box na pág. 80). Observar, dentro de vitrines, essas peças dotadas de grande valor ritual – incluindo a estatuária e as máscaras zoomórficas – causa-nos desconforto. Tal disposição espelha a história do colonialismo francês que perdurou no Mali até 1960, deixando fortes marcas.

O vôo da Air Marroc, que faz conexão em Casablanca, está repleto de homens negros vestidos à moda africana e islâmica. Quando o mapa da África aparece em árabe nas telas da aeronave, damo-nos conta de que sobrevoamos o Saara. Estamos ainda concentrados em nosso itinerário, quando notamos um qüiproquó algumas poltronas à nossa frente. Um homem reivindica em sua língua (que alguém ao nosso lado traduz como pode) 200 euros perdidos no banheiro. De imediato, configuram-se dois grupos “inimigos”, que trocam acusações mútuas. Longe do silêncio organizado dos franceses, aquela bagunça nos acolhe.

Descemos em Bamako, num aeroporto que mais parece uma rodoviária. Uma pequena multidão se acotovela em torno da esteira onde estão nossas malas, à qual qualquer um pode ter acesso. Depois de trocar nossos primeiros cefas (moeda local), recebemos as boas-vindas da polícia militar, que não se lembra de carimbar nossos passaportes quando atravessamos a imigração. No saguão, somos finalmente localizados por Abduci, amigo de Denise, nossa amiga brasileira. Sem saber direito onde estamos, entramos num táxi, no qual se amontoam outros passageiros, e somos levados até a Place de la Maternité, no bairro de Korofina. Lá está localizada a hospedaria onde ficaremos nos próximos dias. Há muita poeira e nenhuma luz.

Na manhã seguinte, acordamos debaixo do mosquiteiro que nos protege. Temos muito medo, mesmo. Os mosquitos estão por toda a parte. Tentamos, com a ajuda de repelentes, separar a paranóia do risco real, mas neste momento isso parece impossível. A sorte é que viajamos na estação seca, quando há menor incidência da malária.

Depois do café da manhã, Mamah, a jovem togolesa que cuida da hospedaria, aceita nos acompanhar até o centro da cidade, onde buscaremos informações sobre como chegar ao país Dogom. Ela não pode ajudar muito, pois chegou há pouco tempo a Bamako e não domina o bambara, língua mais falada na capital, ainda que o francês seja reconhecido como idioma oficial do país. Conforme o táxi se aproxima do centro, temos a impressão de que, em Bamako, tudo é periferia.

Nesta cidade de 1,3 milhão de habitantes há poucas ruas asfaltadas e quase nenhum saneamento básico. Estamos num dos países mais pobres do mundo, onde 90% dos mais de 11 milhões de habitantes vivem com menos de US$ 2 por dia, 80% são analfabetos e 2% são portadores do vírus HIV. A situação só poderia ser pior se, a exemplo de outras nações da África Ocidental, o Mali fosse vítima de um regime ditatorial nos tempos atuais. Depois de passar por uma longa e turbulenta experiência socialista, esse país, hoje presidido pelo general Amadou Toumani Touré, vive desde 1992 um processo de democratização e descentralização política.

As agências de turismo que procuramos no centro não nos oferecem boas alternativas para chegarmos aos dogons. O aluguel de um 4×4 é caríssimo (mais de 200 euros – cerca de R$ 520 – por dia), os aviões saem sem regularidade e a viagem de ônibus é excessivamente longa para o tempo de que dispomos – além de ser temperada por atrasos, paradas inesperadas e atolamentos. Frustrados, zanzamos pela Avenue de la Nation, no centro da cidade. Num cenário nublado pela poeira e pela poluição, destacam-se pessoas vestidas com trajes coloridíssimos (e belíssimos). Elas se misturam em meio ao comércio, que invade as calçadas, ou rasgam o asfalto, montadas glamourosamente em suas mobiletes possantes.

Eis que nos deparamos com uma figura estranha que se oferece como guia. Ele se chama Souleiman, nome tipicamente muçulmano, como de grande parte da população (oficialmente, entre 80% e 90% dos malianos são adeptos do Islã). Ele se veste como rastafári, tem dreads no cabelo e bem poderia ser confundido com um freqüentador das Grandes Galerias do Centro de São Paulo. O mais incrível é que ele é um dogom originário de Sanga, conjunto de aldeias incrustado na falésia.

Souleiman diz que muitos dogons vão à capital para ganhar a vida. Apresenta-nos a uma conterrânea, que vende bananas na rua e nos conduz, então, ao Marché des Roses, onde se vende de tudo um pouco. Ali, as cores dos tecidos e os sons dos tambores misturam-se ao cheiro forte das comidas e dos chás preparados e consumidos ao ar livre. Souleiman quer nos levar para fazermos roupas típicas num costureiro e para comprarmos fetiches (estatuetas) dogons. Retrucamos que não temos dinheiro, queremos apenas ver o movimento. Para Souleiman, todo tubab (termo para se referir aos brancos) tem dinheiro e gosta de fazer compras. Ele se frustra um pouco com nossa resistência, mas isso não o impede de continuar o passeio e de nos levar à tenda de um amigo, onde somos recebidos com o som de um balafom (espécie de vibrafone) e com um baseado.

Passadas 24 horas, Souleiman não consegue arranjar um carro. Afinal, não temos o dinheiro necessário. Quase perdendo a esperança de chegarmos ao destino desejado, nos entregamos com ele – que a essa altura virou um amigo – aos prazeres de Bamako. Vamos parar numa casa noturna chamada Le Hogon, nome do chefe político-religioso dogom. Uma espécie de jam session de música maliana embala locais e europeus, que dançam loucamente ao ar livre. Apesar da fama da música deste país, que reúne celebridades como Ali Farka Touré e Salif Keita, não imaginávamos que a noite na capital pudesse ser tão quente.

Quase dispostos a trocar a viagem à falésia pelas noitadas urbanas, somos surpreendidos por uma nova proposta. Encontramos um amigo italiano de Denise, que vem acompanhado de Miwa, uma japonesa de uns 30 anos, que procura companhia para ir à falésia. Ela conseguiu um velho 4×4 por um preço razoável, mas precisa de alguém para dividir as despesas. Radiantes, aceitamos de imediato. Pé na estrada. Quem nos conduz é Alassane, um senhor de uns 50 anos, de origem fula (um dos povos que vivem no Mali) e muçulmano. No caminho, quase rente ao Rio Níger, passamos por diversos povoados, todos construídos com barro. Alassane comenta, em tom de estranhamento, que um deles é habitado por comedores de carne de cachorro. Horas depois, chegamos a Segu, antiga capital do Império Bambara (que perseverou entre o início do século 18 e meados do 19) e atual sede de um famoso festival de música africana, que acontece todo mês de fevereiro.

Pernoitamos em Segu e, na manhãzinha de uma segunda-feira, nos encaminhamos para Djenné, onde compramos peixe defumado para presentear os dogons, conforme o combinado com Denise. A 330 quilômetros de Segu, numa ilha no meio do Rio Bani (afluente do Níger), esta cidade medieval é famosa por sua grande mesquita de barro e pelo mercado que acontece toda segunda-feira. Nesse dia, Djenné se torna uma Babel. Seu comércio articula os mais diferentes povos, que falam distintos idiomas e muitas vezes vêm de longe para vender ou trocar produtos. Ali estão os bambaras com seus belos tecidos bogolan, os fulas com seus chapéus que lembram os dos cangaceiros, os tuaregues com suas pratarias e turbantes típicos do deserto, os dogons com seus panos tingidos com o autêntico índigo blue, os bozos com seus peixes defumados, entre tantos outros.

Depois de passarmos por Mopti, Sevaré e atravessar um longo cerrado, o 4×4 chega enfim a Songo, aldeia dogom, onde Denise nos espera. Está muito escuro, e sentimos um frio na barriga. Quem nos recebe são as crianças. “Ça va?”, “Ça va?”, “Ça va?”, repetem sem cessar, embora não falem francês. Guiados por elas, vamos ao encontro de Denise na casa em que está hospedada. Ela e alguns amigos nos conduzem ao “campement”, alojamento construído pelo Banco Mundial para abrigar turistas. A infra-estrutura do local é bem diferente do que esperávamos: construção de pedra em estilo arábico, água encanada, gerador de luz e um restaurante improvisado, no qual é servido um ótimo espaguete. Este cenário esquisito nos traz novamente um desconforto. Estarão os turistas europeus, mesmo que munidos de boas intenções, protagonizando uma nova forma de colonialismo? Estarão eles interessados na vida daquelas pessoas ou apenas no registro do exotismo dos costumes e objetos e da beleza da paisagem?

Com a luz do dia vem o fascínio diante da paisagem que parece não ter horizonte. Chegamos, quem diria, ao nosso destino. Estamos num planalto, numa região que ainda não é a da falésia. As casas e celeiros de barro se esparramam por entre as pedras e os arbustos, quase se misturando a eles. Songo é um povoado com pouco menos de 2 mil habitantes, número avantajado se comparado a outros povoados dogons. Nessa época do ano, há poucos jovens ali. Eles partiram, como Souleiman, para a cidade em busca de oportunidades e novas experiências. Mas na época de chuva, eles hão de voltar para cumprir as tarefas agrícolas.

Somos levados pelo pessoal do “campement” à famosa gruta dos circuncisos. Localizada no alto de uma colina, dessa gruta se vê toda Songo. Ali, grupos de meninos são submetidos à circuncisão e mantidos em reclusão até que suas feridas cicatrizem. Lá também são guardados os instrumentos sagrados, utilizados nos rituais. Uma das coisas mais impressionantes é ver as pinturas rupestres na parede, retocadas a cada novo ritual.

Um homem de meia-idade, com quem conversamos horas a fio, nos conta que a circuncisão, hábito que marca a iniciação dos meninos à vida adulta e que já existia antes da chegada dos muçulmanos (no século 19), permite extrair a parte feminina dos meninos. Uma explicação parecida é utilizada com relação à excisão, mutilação do órgão genital das meninas pequenas. Ficamos chocados quando nos dizem que isso é fundamental para que elas se sintam femininas e menos agressivas. E lembramos dos protestos lançados por feministas africanas como Oumou Sangaré, a diva da música maliana, contra o horror da excisão e da poligamia. Mas como condenar, nós que viemos de tão longe, hábitos cujas razões e conseqüências desconhecemos? Estranhamos o fato de as mulheres em Songo não nos parecerem nada infelizes em relação a sua vida conjugal e sexual.

Numa tarde, Denise pede permissão ao chefe da aldeia para que possamos circular livremente pelas áreas de acesso proibido aos turistas. Somos bem-vindos. O sentido das cenas cotidianas que vemos nos escapa, estamos maravilhados só de observar. Um homem tece. Mulheres preparam juntas a manteiga de karité, muito apreciada nos mercados devido a seus usos cosméticos e alimentares. Crianças socam milhete com o pilão. Um grupo de homens conversa dentro da “tuguná” (casa da palavra), espécie de ágora onde as questões políticas são discutidas. Somos apresentados a um ferreiro, ofício extremamente valorizado pelos dogons, e, em seguida, a uma feiticeira, que agarra nossas mãos e nos diz coisas incompreensíveis, que podem ser uma bênção.

À noite, somos convidados a degustar o tôto, prato típico, uma espécie de angu de milhete (cereal que é a base da alimentação local) servido com molho de quiabo. A baba nos transporta inevitavelmente a Minas e, assim, nos sentimos em casa. Os dogons, como outros malianos, costumam comer com as mãos em volta da panela coletiva. Mas eles nos oferecem colheres, temendo que nos queimemos com o molho quente. Ao final da refeição, são servidas, num copinho igualmente coletivo, três doses de um chá africano amarelo e adocicado. Seguimos a etiqueta passo a passo.

No dia seguinte, Alassane nos acorda bem cedo, pois Youssouf, um jovem músico amigo de Denise que vive em Bandiagara – espécie de capital do país Dogom, próxima de Songo -, chegou para nos acompanhar até a falésia. Este é talvez o momento mais esperado da viagem: ir até Kundu Kinu, pequena aldeia situada num ponto muito alto, onde a vida transcorre relativamente alheia ao turismo e ao Islã. Denise pede que entreguemos parte do peixe trazido de Djenné para seus amigos de lá. Isso com certeza nos aproximará deles. Antes de partir, acontece um imprevisto. Um de nós acordou com febre e muita dor de garganta, e resolve permanecer em Songo. Ele, que nunca foi muito fiel ao espírito de aventura, não verá de perto a vida de uma aldeia do alto da falésia.

ÁFRICA FANTÁSTICA
Livro de Cosac Naify traz relato do etnólogo francês Michel Leiris sobre a expedição Dacar-Djibuti que cruzou com os dogons na década de 30
“Formidável religiosidade. O sagrado nada em todos os cantos.” Essas são as palavras de Michel Leiris (foto) para descrever as vésperas de um funeral em Sanga, conjunto de aldeias dogons encravado na falésia. Tais impressões datam de 29 de setembro de 1931. Leiris tinha 30 anos, era um escritor iniciante, surrealista dissidente do grupo de André Breton. Tinha sido contratado para relatar a expedição Dacar-Djibuti, que em dois anos cruzou o continente africano da costa ocidental à oriental, sob direção do antropólogo Marcel Griaule. Nesse caminho, conheceu inúmeros povos, dentre os quais os dogons. O relato foi escrito como um diário de viagem, publicado em 1934 sob o título A África Fantasma, e deverá ser lançado em português pela Cosac Naify no segundo semestre. No prefácio escrito em 1981, Leiris diz que o livro deve ser lido um pouco como documento, um pouco como poesia. Afinal, o que ele narra é uma viagem interior, o confronto de um jovem francês, inevitavelmente atado à realidade do colonialismo, com outro mundo, apaixonante pelas suas gentes, seus ritos de possessão, suas danças de máscaras, suas histórias. Essa viagem – certamente iniciática – transformou Leiris no etnólogo que iria, nos anos seguintes, aliar a paixão pelo texto à pesquisa sobre a África. (RS)

Solo de Maíra
Despeço-me de Renato. Se ele melhorar, vai nos encontrar amanhã em Kundu. Sigo com Youssouf, Alassane e Miwa em direção a Sanga. Miwa está há dois anos dando a volta ao mundo. Quando partimos, ela saca duas máquinas fotográficas de uma pequena mochila e observa a paisagem africana com sua tranqüilidade oriental. O velho 4×4 atravessa diversas aldeias sobre a falésia. Pela janela, plantações de cebola e grupos de mulheres agricultoras. Ao longo do caminho encontramos homens adivinhos que oferecem seus serviços aos viajantes. A seus pés, um complicado desenho na areia, com pequenas pedras distribuídas em pontos estratégicos. O adivinho dogom pergunta se há algo que nos aflige. Manipulando aquele complexo jogo de adivinhação, ele é capaz de, junto com seres invisíveis, ajudar aqueles que precisam.

Chegamos enfim a Kundu, uma aldeia no pé da falésia, onde armamos nossas barracas. Dali seguimos para Kundu Kinu, numa quase escalada. Faz muito calor, o ar é muito seco e Miwa não se sente bem durante a caminhada. Ela é levada por uma pessoa que passa de volta ao acampamento. Como temos pouco tempo, sigo com Youssouf. Persisto na idéia de alcançar o lugar mais distante da viagem. Conforme vou entrando na falésia, sinto que a noção de tempo presente me abandona. Posso estar em qualquer tempo. As paredes rochosas tornam-se muito altas. Atravesso fendas escuras. Tenho a sensação de que estamos procurando pessoas que não desejam ser encontradas. Youssouf diz que sim, que os dogons gostam de viver escondidos. São pacíficos, fogem das guerras.

Ao chegar a Kundu Kinu, sou levada ao chefe da aldeia. Sentada num pequeno banco, debruço-me exausta sobre a caixa de peixes. Digo em francês que é um presente enviado por Denise. Youssouf traduz para outro homem dogom o que digo. O homem escuta e traduz novamente para o chefe. Os dogons falam diversas línguas, muitas delas incompreensíveis entre si. Estou muito longe de qualquer coisa conhecida. A sensação de que aquelas pessoas vivem em outra temporalidade me causa vertigem. Do alto, sentada, posso ver a fronteira do Mali com Burkina Fasso. O chefe diz palavras de acolhimento. Aos poucos, crianças e velhos se aproximam. A generosidade dessas pessoas tão diferentes de mim me comove. A conversa de boas-vindas soa como música, passando de boca em boca. Perco as palavras e choro. Imediatamente me pergunto sobre o sentido que esse choro teria para eles. Youssouf me acalma dizendo para eu não me preocupar, pois os dogons choram pelos mortos, em brigas de casal e de alegria. Sinto-me à vontade, choro mais ainda.

De volta ao acampamento de Kundu, já é noite e ficamos sabendo de um ritual funerário em uma aldeia vizinha. Sem hesitar, seguimos pela falésia numa caminhada de duas horas. De longe, escuto tiros de fuzis e tambores. A aldeia está muito cheia, homens tocam de um lado, mulheres cantam de outro, e, no centro, homens possuídos por espíritos dançam com uma espada de fogo na mão. A multidão está em êxtase.

No dia seguinte, visitamos outras aldeias encravadas na falésia. Pelo caminho encontramos as ruínas da civilização tellem, povos caçadores que teriam ocupado a região do século 10 ao 16, vivendo ainda mais escondidos, nas cavidades naturais das paredes rochosas. Na hora do almoço, voltamos ao acampamento para reencontrar Renato, mas Alassane nos entrega uma carta em lugar do amigo. Num trecho, leio o seguinte: “O pior já passou, afinal trouxe comigo um pacote de antibióticos. Tive delírios noturnos, entremeados de horas em horas pelos cantos soturnos e belos dos rezadores muçulmanos (os tais marabus). Inevitável não lembrar do filme do Bertolucci, O céu que nos protege. Hoje de manhã, quando já estava melhor e aliviado, o pessoal da casa de Denise me acordou com bolinhos de amendoim e verdura deliciosos. Eles são mesmo de uma hospitalidade incrível! Por isso tudo, enquanto me recupero, acho melhor ficar por aqui…”.

Antes de retornar a Songo para encontrar Renato, decidimos, Youssouf, Miwa e eu, voltar ao ritual funerário para assistir à dança das máscaras. Além de todos que ali estavam na noite anterior, vemos agora os turistas franceses que, deslumbrados, não param de fotografar. Sofro quando penso que posso ser parecida com eles, mas sofro também com a possibilidade de não filmar o que estou vendo e ouvindo. Conversando com Youssouf, decidimos fazer um filme juntos. Meu amigo dogom sabe muito melhor do que eu como participar do ritual e assume a câmera. Vivo, sem palavras, a cena.

Despedimo-nos do pessoal de Songo, depois de ver com alguns deles, na tela da câmera digital, as imagens emocionantes do funeral. A viagem de volta é rápida. Paramos em Mopti, considerada a cidade maliana com as piores condições sanitárias, e pernoitamos novamente em Segu, onde conseguimos, para nossa alegria, trocar uma barraca de camping e um mosquiteiro embebido de inseticida por tecidos bambaras de ótima qualidade.

Quando nos damos conta, já estamos de volta ao metrô de Paris e seus repentinos silêncios. Ali tudo nos parece estranho, com exceção do carregado sotaque africano entoado por dois jovens negros, que se vestem como rappers. Eles estão ao nosso lado, mas não nos percebem. Não é nada impossível que eles nos revelem sua origem dogom, como o fez Souleiman, o já saudoso amigo de Bamako. Paris, sabemos, está repleta de imigrantes malianos. Isso nos deixa de alguma forma tranqüilos.

Este texto é dedicado a Denise Dias Barros, que nos deu a chave para essa viagem ao país Dogom.


Comentários

Uma resposta para “Em busca dos dogons”

  1. […] música e no crime, é muito difícil se desenvolver em uma república que fala de igualdade. Tem ainda os livros de história que dizem que seus ancestrais eram escravos e foram colonizados pelo povo francês, que o povo francês foi civilizar a África, os povos atrasados. Não tem espaço para falar das grandes civilizações como aquela dos Dogons (leia reportagem em brasileiros.com.br/2009/01/ Em busca dos Dogons). […]

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