Tradução no divã

Desde 1º de janeiro, as obras de Sigmund Freud caíram em domínio público. Um presente para o leitor brasileiro, que agora poderá ter acesso a traduções diretamente do texto original em alemão. Até então, os textos que deram origem à psicanálise só chegavam ao Brasil passando por escalas na Inglaterra ou na França.

Da Companhia das Letras, que pretende ser a primeira editora brasileira a publicar as obras completas diretamente do alemão, acabam de chegar às livrarias três volumes, de uma coleção que, até 2017, será composta por vinte títulos (um deles apenas para índice e bibliografia). Quem coordena a tradução é Paulo César de Souza, germanista que ganhou credibilidade ao traduzir Friedrich Nietzsche e Bertold Brecht.

Polêmica
Acadêmicos, profissionais e curiosos estão descobrindo que o acesso direto à fonte é também terreno fértil para a polêmica. Na tradução de Paulo César, algumas escolhas parecem óleo sobre brasa: alimentam o incêndio. A palavra “Ego”, por exemplo, que no Brasil remete imediatamente ao universo freudiano, não aparece no novo texto em português. A opção do tradutor foi substituir o ich alemão por uma palavra mais corriqueira, quase prosaica: “eu”.
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“Acho compreensível que as pessoas tenham se acostumado com o “ego” trazido pela edição da Standard inglesa, mas eu simplesmente não consigo verter o corriqueiro pronome alemão ich por outra coisa senão o equivalente em português”, analisa Paulo César.

Para trieb, outro termo fundamental no meio psicanalítico, a opção foi a palavra “instinto” no lugar de “pulsão”. A troca somente atiça ainda mais uma discussão antiga. Dá de ombros à tradição francesa que optou por pulsion e se aproxima da herança inglesa que lê instinct. “É sempre uma questão de escolhas. Nenhuma será perfeita. Sempre há perdas. A decisão é ficar com aquela em que os prejuízos são menores”, explicou Paulo César para uma plateia lotada de psicólogos e psicanalistas, no Instituto Sedes Sapientiae, importante reduto da psicanálise em São Paulo. O evento “Traduzir Freud”, no dia 31 de março, foi organizado justamente para confrontar esses dois pontos de vista. O que se viu foi um duelo de titãs.

De um lado, o tradutor que descobre Freud pela linguagem. Do outro, os leitores: psicanalistas que extraem de Freud o texto científico. Nelson Junior, professor do Instituto de Psicologia da USP, questiona as escolhas feitas por Paulo César: “Utilizar instinto no lugar de trieb, dentro da discussão psicanalítica, significa um retrocesso. Dentro da cultura brasileira não se emprega a palavra instinto para falar de uma emoção que não permite que o sujeito pare de pensar em algo. Para quem está preocupado com o rigor dos conceitos, com a espessura científica do texto freudiano, pode ser problemático um caminho que privilegie o texto literário”. Paulo César rebate: “Substituir trieb por pulsão é anacrônico. É como colocar um relógio digital no cenário de um filme da Segunda Guerra Mundial. O conceito de pulsão, como o conhecemos, ainda não está consolidado em Freud. É posterior a ele”.

Quem coloca a dimensão do problema é Noemi Moritz Kon, psicóloga e psicanalista com vários estudos sobre a delicada relação entre arte e psicanálise: “O texto freudiano não está restrito aos estudos filosóficos, como no caso de Nietzsche e de Brecht. Ele é a base do nosso fazer, da nossa clínica. Nós sabemos as consequências da tradução de Freud. O impacto será sentido no nosso cotidiano”.

Cida Aidar, do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes e coordenadora do evento, alimenta o diálogo. “A questão dos diferentes pontos de vista sempre existiu, o que acontece é que agora isso se explicita muito abertamente e é saudável”, pondera.

Miriam Chnaiderman, psicanalista, ensaísta e documentarista, vê a novidade com bons olhos: “As escolhas mostram um posicionamento político e toda essa discussão introduz uma desordem positiva. É bom aproveitar essa bagunça imposta pela poética porque temos a oportunidade de voltar a discutir ideias e conceitos fundamentais”. Renato Mezan, um dos mais influentes pesquisadores da obra de Freud no País, lembra que o melhor mesmo seria aprender alemão: “Não existe poética capaz de restituir o texto original. Por isso, é preciso o bom senso: o texto é um instrumento de trabalho e é bom que existam várias opções de tradução. Acho que devemos usar Freud como Freud usava seus charutos: para fumar, deixar a fumaça evolar e, depois, pensar sobre isso”. Cida Aidar vai além: “Acho que a psicanálise no Brasil ganha muito com essas novas traduções. Finalmente podemos ler Freud em português numa boa tradução, coisa que não tínhamos.”

Quem lembra mesmo que o problema está só começando é a tradutora Claudia Berliner, que já trouxe para o português textos de outros psicanalistas como Jean Laplanche e Jacques Lacan: “A questão está lançada. Com as obras em domínio público, vão surgir novas questões sobre o texto freudiano. Não tem mais um texto freudiano. Esse texto nunca existiu. E agora, fica escancarado que ele não existe”.

Já Paulo César ressalta que a discussão não começou agora e nem vai terminar tão cedo. O tradutor, que já está em sua casa em Salvador “na atual rua Democrata, antiga rua do Hospício, entre a ladeira da Preguiça e a ladeira dos Aflitos”, dispara: “O caso de Freud é bem peculiar. Quando as obras tiveram sua primeira edição completa, na década de 1930, um grande jornalista alemão saudou-as como “A Bíblia dos ateus”. A psicanálise é, em parte, um sucedâneo da religião no Ocidente”.

Quem ganha com toda a polêmica é a psicanálise no Brasil.


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