Começa a primavera em Nova York. É a época do ano que a cidade, a verdadeira Fogueira das Vaidades, apaga as chamas da valorização da própria aparência. Sai todo mundo exibindo horrores escondidos por roupas no inverno. Descortina-se uma profusão de pernas brancas, cabeludas e com manchas roxas. É como se todos os cidadãos houvessem participado de uma briga de bar, após renhida partida de futebol, onde sobraram caneladas. Alguns têm pele de dar inveja em onça pintada. E, como não existe povo mais chegado numa calça curta, shorts, bermudas e tangas, o que se vê é uma exposição de Jackson Pollock, em 3 D.

Mal começou a bater um solzinho e o visual chocante de membros peludos e cobertos de hematomas se impõem em contraste à beleza das flores que surgem. Será que o governo federal não poderia dar um jeito nisso? Talvez o fornecimento de banhos de luz em bronzeamentos artificiais coletivos. Ou, pelo menos, farta distribuição de caneleiras para a população sofrida. Por mim, proibiriam-se os shorts. Que mania, essa de usar calção! Mesmo durante o inverno – quando até os ursos, que são peludos, hibernam – tem gente com as pernas de fora. É verdade que são apenas os malucos. Aqueles que não se importam com hipotermia. A perna desses cretinos pode estar gangrenando, mas eles continuam caminhando como se estivessem em Ipanema. A gente vai pegar um avião e dá logo de cara com um sujeito de chinelo, camiseta e sunga. Estão 20 °C negativos lá fora, e o passageiro está indo para o Alasca. No entanto, teima em fazer a viagem seminu.

Com a explosão da primavera, esse espetáculo de can-can atinge proporções epidêmicas. Você vê uma mocinha bonitinha, bem-feita de corpo, mas metida em um calção, revelando pernas que gritam: “Há seis meses não passamos por uma boa depilação. E nos chocamos contra os mais variados tipos de móveis em casa e no trabalho. Nossa carência de vitamina D está em níveis de risco. Por favor: não nos exponha a tamanha vergonha!”. E essas são apenas as menos ofensivas. Há monstruosidades que parecem saídas da tela Inferno de Hieronymus Bosch. Varizes sobem desde os pés até as virilhas, como os enroscos de cipós na selva amazônica, com pelos servindo como espinhos e hematomas fazendo as vezes de frutos apodrecidos na árvore.

Tem um sujeito no meu prédio, com idade avançada, mas disposto a jogar tênis envergando um calção. As meias mal lhe sobem aos tornozelos. E acima delas, começa um intrincado crochê de veias. Quem olha de relance pode até achar que o cara está vestindo meia-calça de rendas. Minha cachorrinha não sabe o que fazer daquilo que vê: às vezes late, outras choraminga. Aquele senhor esportista, durante o inverno, pelo menos enfaixa os cambitos com longas tiras de gaze. Da cintura para baixo fica parecendo múmia. Mas, assim que bate 20 de março na folhinha, anunciando oficialmente a primavera no Hemisfério Norte, o velho solta a franga. Ou pelo menos, as pernas.

Vou escrever ao meu representante no Congresso propondo lei federal. Ficará estabelecido que, desde o começo do outono até o meio da primavera, estão proibidos trajes (para ambos os sexos) que revelem mais do que os tornozelos. Quem anda de calças curtas é criança, praiano (de zona tropical) ou escoteiro. Também será promulgado novo feriado de três dias, no meio de junho, quando todos os cidadãos que desejem expor as carnes manchadas, terão oportunidades de pegar um bronze em praias e parques. O escurecimento da epiderme através dos raios solares ajuda a esconder os testes de Rochard grafados nas pernas americanas. A gente vê essa metamorfose no verão. Mas até lá, ninguém deve ser obrigado a visualizar corpos brutalizados pelo inverno.


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