Havia dois tipos de apartheid nos EUA. O primeiro era um apartheid legislado em âmbitos municipal e estadual com proibições específicas, como escolas "separadas porém iguais", restaurantes e hotéis com restrições contra negros, etc. Esse tipo caracterizava o sul dos EUA onde passei a minha adolescência. O outro tipo é o que chamo de apartheid informal ou social. Esse tipo de racismo pode ser descrito parafraseando Millôr Fernandes, "o negrosabe o seu lugar". Esse caracterizava o norte dos EUA, onde eu nasci. No sul, com a sua história de escravatura, e como no Brasil, havia muito contato entre negros e brancos no dia-a-dia. Portanto, criavam-se regras para regular a interação. No norte onde "o negro sabia o seu lugar" as "regras" eram informais, mas não menos restritivas. Em New Jersey eu nunca tinha contato com negros. Quando eu tinha 16 anos de idade o meu pai foi transferido para o sul (North Carolina) onde ainda existia o apartheid formal. Interessantemente, foi onde eu tive o primeiro contato com negros. LEIA TAMBÉM: Internet, o futuro das eleições Cidadã exemplar Me da um dinheiro aí! Até a minha escola (high school) privada era integrada. Mas, "integrada" em termos. Os negros e os brancos não se misturavam socialmente. Compartilhávamos as mesmas salas de aula e o mesmo refeitório, mas os grupos mantinham uma distância social um do outro. Com efeito, a minha escola era uma exceção, pois as escolas públicas não eram integradas, nem simbolicamente (como a minha). Como eu era um "intruso" na minha escola e vinha do norte supostamente "integrado", os professores achavam (penso eu) que eu teria fácil trânsito com os negros na escola. (De fato, os negros da minha escola foram os primeiros que havia conhecido em toda a minha vida até então.) Portanto, uma vez me pediram para levar no carro do meu pai um quarteto de cantoras negras que iriam competir num daqueles sofríveis shows de talento escolar. Formavam uma espécie de "Supremes" versão juvenil. A professora que me pediu essa tarefa disse que eu era o único aluno que aceitaria levá-las para o show. O show era em outra cidade e lá fui eu, um branco no sul com quatro mulheres negras no carro. Levei cada olhar no trânsito! Uma das meninas do grupo era uma mulata de fazer inveja a qualquer uma do Sargentelli. Linda mesmo! Ela apareceria na minha vida alguns anos mais tarde! O apartheid legislado no sul criava situações sui generis e até engraçadas às vezes. Para sustentar os meus gastos, ditos excessivos por meus pais, fui trabalhar em uma loja da J.C. Penney's (uma espécie de Lojas Renner). Na loja havia quatro banheiros e dois bebedouros. Os banheiros eram, respectivamente, para homens brancos e homens negros, e mulheres brancas e mulheres negras. Um bebedouro era para brancos e outro para negros. Porém, o pessoal da limpeza eram todos negros, de modo que os banheiros para brancos eram limpos por negros. Será que alguma vez um negro ou uma negra fez xixi nos banheiros dos brancos só de pirraça?? Hmmm. Já escrevi em outro artigo nesta revista (edição 17) sobre uma cerca em Carolina do Sul que entrava uns cem metros dentro do mar para separar uma praia de negros de uma praia de brancos. Quem foi o cara que determinou que cem metros era a distância adequada? Na loja, embora os banheiros e bebedouros fossem separados, as duas raças experimentavam as mesmas roupas antes de comprar. Vá entender! Após me formar no colegial entrei na universidade onde, após pouco tempo, fui suspenso por um semestre por ter dado um salto mortal dentro de um repuxo da faculdade. Havia tomado umas e outras com alguns amigos e fiz questão de me exibir em frente a um alojamento feminino e fui pego pela polícia do campus. Tive de voltar a trabalhar e peguei um emprego num caminhão de entrega e instalação de carpetes. Trabalhava com um negro chamado Hazel que era um touro de forte e jogava aqueles rolos de tapetes como se fossem palitos. Certo dia Hazel me pediu para deixá-lo na casa da sua namorada e esperar por ele num determinado bar no lado oeste da cidade. A namorada dele era a linda mulata que eu havia levado com as outras "Supremes" (versão juvenil) para o show. Senti de imediato um vínculo com Hazel e uma boa dose de inveja de quebra. O bar designado por Hazel era só de negros e lá me sentei com a minha cara branca a esperá-lo. Um sujeito que estava jogando bilhar ficou me olhando com uma expressão de perplexidade e de raiva. (Naquele horário - 14 horas - eu concluí, sem ter de pensar muito, que o cara não era um trabalhador.) A sua condição de malandro era reforçada não somente pela hora mas também por sua camisa de seda, alguns anéis nos dedos e um cordão de ouro no pescoço. Ele olhou para mim (não era difícil ver a minha cara) com um olhar hostil e perguntou: "É irmão? Heim, branquelo?" Eu falei que estava apenas esperando um amigo. Piorou! Onde no sul um branquelo espera um negro num bar de negros? Foi a resposta errada! "Por que não espera em outro lugar?" - a pergunta foi agressiva e ele acrescentou: "Você não deve gostar de mim porque sou negro, não é?" Já estava na cara que eu iria apanhar. Decidi não levar desaforo para casa e respondi: "Não, não é por isso. Acho que eu não gostaria de você se você fosse branco, verde, ou roxo." Pronto, o sujeito tirou uma navalha do bolso e eu peguei um taco de bilhar, pronto para morrer causando pelo menos alguns estragos. Nisso, a porta do bar abre e ouço "Que merda é essa, pô?!" (Não, Hazel não falava português! O que ele disse em inglês foi: "What the fuck is this?!") Eu não sabia que Hazel gozava de tanto respeito, até que ele disse: "Este cara tá comigo e ninguém mexe, viu?!" O malandro guardou a navalha, mas não antes de lançar um olhar ameaçador para mim. No Exército experimentei incidentes similares de racismo e seus efeitos. Em um bar em Oklahoma vi um cartaz: "Proibido a entrada de cachorros e índios". Também tive problemas na Geórgia com alguns soldados do sul e em bares onde alguns amigos negros tiveram recusados pedidos de bebidas enquanto eu era servido. Foi nessa época que criei o que chamo de "minha intolerância pela intolerância". Ora, em uma situação de combate, qualquer um daqueles soldados negros talvez tivesse de cobrir as minhas costas ou salvar a minha vida. Mas esse mesmo negro não poderia tomar uma cerveja comigo num bar de um país que seríamos chamados a defender! Achei revoltante. Após ter passado alguns anos no Brasil (vide Brasileiros nº 13), voltei aos EUA e tornei-me o que alguns americanos chamam de "ativista" e meus pais chamavam de "louco". Passei a trabalhar num programa local em organização comunitária, primeiro no sul e depois fiz a mesma coisa em Wisconsin, enquanto terminava (finalmente) a faculdade. Paguei o meu ingresso nos dois lugares. No sul levei uma bela surra de três membros do Ku Klux Klan por estar trabalhando com negros. Tive de ser extraditado da comunidade no porta-malas de um carro no dia que assassinaram Martin Luther King para não ser espancado até a morte - naturalmente cara branca não era bem-vinda naquele local naquele momento. (Os meus vizinhos brancos que me achavam um porra louca por trabalhar na comunidade negra estavam apavorados com a possível reação da comunidade negra na ocasião. Tornei-me um cara temporariamente popular na vizinhança!) Quando os meus esforços na comunidade negra resultaram na descoberta de uma fraude financeira (das grandes!) por parte dos chefões do programa em que trabalhava, fui convidado a achar outro lugar para trabalhar. Como já estava de malas prontas para ir a Wisconsin, não me importei. Foi em Wisconsin que percebi como funcionava o racismo no norte. Foi numa passeata em Chicago que vi o racismo "pessoal". O ódio dos que tentavam atrapalhar a passeata era palpável e fortíssimo. Já havia visto muita coisa no sul, mas o ódio que senti naquele pessoal em Chicago superou tudo que eu havia visto em qualquer outro lugar. Era visceral e permeava todo o ambiente. Para encurtar esta história, informo que continuei trabalhando nessa área por mais três anos. Com efeito, eu havia desistido de esperar que um dia poder-se-ia ver o fim desse ódio. Após terminar o mestrado em economia e passar um ano no Brasil como bolsista Fulbright (programa de intercâmbio educacional e cultural do governo dos Estados Unidos, conhecido como Programa Fulbright, estabelecido em 1946 por lei de autoria do senador J. William Fulbright), fui trabalhar numa grande multinacional. Nessa época o governo já havia implementado um programa chamado affirmative action em que universidades e companhias satisfaziam "cotas" para admitir minorias étnicas e raciais. Trabalhei com uma mulher negra, casada com um porto-riquenho, que me disse com grande dose de ironia que ela satisfazia simultaneamente três cotas: a de mulher; a de latina (pelo sobrenome); e a de negra! Cheguei à conclusão que nada de fato tinha mudado. Voltei ao Brasil e cheguei a trabalhar na mesma empresa pequena com Barack Obama. Em 1983 Barack foi trabalhar na Business International Corporation em Nova York, uma pequena companhia de assessoria e publicações sobre a economia global. Nunca cruzamos, uma vez que em 1983 eu já era presidente da filial no Brasil e ele era um editor júnior que acabara de entrar na empresa. Ele ficou apenas um ano após se formar na Universidade de Columbia. Mas colegas até hoje falam que ele era bastante "centrado" e inteligente. Pelo o que eu tinha visto ao longo dos anos, estava convencido que a ideia de um presidente negro nos EUA era uma coisa que jamais aconteceria na minha vida. Felizmente, Barack Obama derrubou a minha convicção. Não digo que o racismo acabou nos EUA, mas com certeza ocupa hoje um lugar bem mais restrito. De fato, foi coberto por uma onda de esperança perante uma situação desesperadora. Agora, quem é esse cara que rompeu uma barreira antes considerada inabalável? Em primeiro lugar, temos de entender que a vida de Barack Obama em quase nada se parece com a vida dos negros que eu conheci. Nas suas próprias palavras, o maior desafio dele foi existencial. Ele disse que quando via o pai, que era "preto como piche", e a mãe, "branca como leite", ele sentia que tinha de descobrir quem ele era e reconciliar o que era uma herança multirracial e uma vida bastante idiossincrática para qualquer americano. Os pais faziam parte de uma elite intelectual nas suas respectivas sociedades e se conheceram em uma universidade onde os dois eram estudantes estrangeiros. Além disso, grande parte da formação de Barack Obama ocorreu fora dos EUA continental. Morou e estudou no Havaí e na Indonésia quando jovem. Formou-se em duas universidades de elite nos EUA - Columbia e Harvard - e só foi morar em Chicago pela primeira vez em 1985 para trabalhar em uma organização comunitária até 1988, quando foi para Harvard. Ele só voltou para Chicago em 1991/92, já como advogado formado em Harvard. Talvez, devido a sua vida tão diferente e a essa herança multirracial, nunca ocorresse a Barack Obama que ele não poderia ser presidente dos EUA! De fato, poucos americanos, brancos ou negros, têm o currículo de vida que tem Barack Obama. A personalidade dele foi forjada num clima bem diferente, social e intelectualmente, da maioria dos americanos. Ele é, de fato, especial - até no nome. Agora, a Michelle Obama sabe de perto o que é o South Side (bairro sul) de Chicago. Filha de um funcionário público do município de Chicago e de uma secretária, ela, sim, teve uma vida bem "americana", da maneira que descrevi no início deste artigo. O tataravô dela, Jim Robinson, foi escravo na Carolina do Sul. O que Barack tem de zen, Michelle tem de lutadora. Obama é o símbolo de uma conquista negra pela cor da sua pele. Porém, Michelle é a substância dessa conquista pelo quê e onde viveu. Isso em nada diminui o significado da eleição de Barack Obama como presidente dos EUA. Pelo contrário, creio eu que é magnífico. Michelle representa uma experiência "bem americana" e certamente amarga em muitos aspectos. Ela emergiu vencedora e lutadora. Por sua vez, Barack não acumula nada "bem americano". Nenhum presidente ou candidato à Presidência, na história dos EUA, poderia ou pôde apresentar um currículo igual ao dele. Portanto, o verdadeiro significado dessa eleição é de uma mudança radical na sociedade americana - tanto pela eleição de um negro quanto pela eleição de um homem totalmente fora dos moldes dos seus antecessores na Presidência. Aguarde!


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