Um velho em busca de um mundo novo

Zé Celso defende que o Oficina foi decisivo para descolonizar o teatro brasileiro/ Foto: Luiza Sigulem
Zé Celso defende que o Oficina foi decisivo para descolonizar o teatro brasileiro/ Foto: Luiza Sigulem

Noite de sexta-feira. Trânsito caótico em São Paulo. Para quem vive na cidade, informação mais que usual. Mas, em consequência de uma tempestade assustadora, a metrópole parece estar à beira de um dilúvio. Quando a reportagem da Brasileiros chega ao Teatro Oficina, no bairro da Bela Vista, região central, a constatação dos mais de 30 minutos de atraso desconcerta repórter e fotógrafa. O entrevistado, o diretor José Celso Martinez Corrêa, patrono do Oficina, também está atrasado pelo mesmo motivo. Constrangimento amenizado, iniciamos a entrevista.

Um roteiro de 15 perguntas aguarda respostas de Zé Celso. Mas ele está eufórico com a recém-descoberta de que o embate entre Oficina e Grupo Silvio Santos terá fim, com o veredito de tombamento do terreno anexo ao teatro, pelo IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. A alegria que invade o regente de clássicos como O Rei da Vela (1967) e Roda Viva (1968) faz com que ele sabote nossa programação e imponha seu arsenal de ideias. Ele, então, dá início a uma espécie de monólogo com a celebração de que, enfim, poderá usufruir dos fins previstos para o terreno ao lado do teatro – que, em breve, deverá será trocado por outro, de mesmo valor, às margens da Rodovia Anhanguera, próximo à sede do SBT.

A concessão definitiva permitirá a Zé Celso construir o Teatro de Estádio (espécie de arena, externa) e a Universidade Antropofágica (núcleo diverso de formação dramatúrgica e teatral) – ambos planejados pelo diretor nas discussões do projeto original de Lina Bo Bardi e de Edson Elito. No decorrer da entrevista, Zé Celso também revela, em primeira mão, que tão logo a novela com o homem do Baú seja encerrada, a companhia fará uma montagem inédita do clássico A Tempestade. “Será o momento ideal para montar a peça, pois, nela, Shakespeare trata da liberdade – tanto que Caliban e Ariel a conquistam, no final do texto. E a coisa mais preciosa que o teatro tem para ensinar ao mundo é a liberdade.” A seguir, os melhores momentos da conversa com esse “velho”, sábio e provocador, chamado Zé Celso.

Renovação do passado
Tenho 76 anos. Faço parte de um grupo de velhos do mundo, que adquiriu o poder teatral e ainda o conserva. Somos poucos, mas me orgulho por fazer parte desses velhos que têm a feitiçaria e o poder de compartilhar sua força com uma juventude que trabalha com maturidade equivalente. Persigo o teatro total mesmo em condições precárias. Em plena “Era dos Monólogos”, o Oficina reúne 60 pessoas, de todas as gerações, de todas as classes sociais e de todas as culturas. Somos unificados pelo ritual do teatro e ele tem um enorme poder de transformação.

Metamorfoses
Nosso trabalho é dar poder ao ator e ao ser humano. Todos nós temos um potencial enorme e ele é descartado pelo dinheiro, pelo calculado. Montanha, mar, pera, maçã, coco, ser humano, órgãos vitais, tudo isso virou uma conta só. Perdemos a noção do próprio corpo, do corpo do outro, do corpo da terra, e todos somos filhos da terra. Viemos da água, da terra, das pedras, das plantas e dos bichos. Quer dizer: nossos ancestrais é que são nossos deuses. É por isso que na bigorna do Oficina o corpo do ator é moldado para reconstruir sua anatomia e fazê-lo renascer. O teatro mexe na anatomia do corpo humano, traz a feitiçaria, o poder quântico e biológico – chamado “biomecânica quântica” por Meyerhold (o dramaturgo russo Vsevolod Meyerhold executado, pela ditadura stalinista, em 1940). As ondas que estão no ar também estão no corpo do ator. Cacilda Becker, por exemplo, foi uma atriz elétrica, da cabeça aos pés.

O futurismo da antropofagia
A revolução que houve, em 1967, desde o reencontro com Oswald de Andrade – e nela a Tropicália se reconheceu – nos levou de volta aos antropófagos. Trouxe ao Brasil uma revolução de descolonização absoluta. Até então, no Hemisfério Norte, o teatro se passava apenas no palco, um teatro branco. Até havia o teatro experimental do negro, mas ele também era feito como o teatro do branco. No Brasil, havia pouca ligação com a cultura popular, com os rituais arcaicos indígenas, com os rituais africanos e a riqueza do candomblé. A África, no final do século 21, será a grande potência do planeta Terra. Desejo e torço por isso, porque a África tem a cultura dominante do suingue. O que seria do mundo sem o rock, sem o samba, sem o forró ou o rap? A batida negra sempre esteve presente no foxtrote, no jazz. E esse mundo suingado está em tudo que fazemos. O teatro brasileiro da época que surgiu o Oficina não mexia os quadris. Fizemos o teatro do Hemisfério Sul devorar o do Hemisfério Norte.

progressismo
Sinto falta de uma radicalização do PT para o lado verde. Fiquei muito impressionado com o vereador Nabil Bonduki (PT-SP) – e eu votei nele! – opinar sobre o Parque Augusta e dizer que temos de ser realistas e construir torres (atualmente, o terreno do parque, no centro da capital, é disputado por paulistanos e uma construtora de edifícios). Discordo completamente dele e da própria Dilma com relação ao massacre que está acontecendo com os índios. Acho que o momento é de o Brasil seguir o exemplo do Uruguai. Porra, o Uruguai liberou a plantação da maconha! Li um artigo publicado na Folha de S. Paulo, assinado por um cientista de Harvard, de 82 anos (o psiquiatra americano Lester Grinspoon), e ele diz que a maconha, quando for “redescoberta”, será para a medicina como a penicilina. Fumo maconha há 50 anos. Até mesmo a cocaína deveria ser vendida em farmácia como medicamento tarja preta. O sujeito passa pelo médico e verifica se pode cheirar ou não. Acho um absurdo não acabarem logo com isso.

A direita real
O PSDB representa hoje uma direita pior que a do DEM e a do ACM, no passado. A direita real, no País, há duas décadas, é o PSDB. E não quero que o partido vença de novo em São Paulo. Temos de jogar todas as cartas para isso não voltar a acontecer, pois Geraldo Alckmin (atual governador de São Paulo) é um robô, um boneco, assim como são todos os empregados dele.

Desejo de ruptura
Agradeço muito por ter enfrentado esses 33 anos de luta, pois me abri para esse universo financeiro, do mercado. Contracenamos por 33 anos com Silvio Santos, um dos símbolos do capital no País. Atualmente, ele é nosso amigo, mas a luta contra o poder continua. O PT está levando demasiadamente a sério a questão da crise econômica mundial e, hoje, ela se resolveria com grandes saltos de mentalidade. A própria maconha nos traria uma riqueza enorme como está acontecendo, agora, nos Estados Unidos. A Califórnia vai se tornar um estado ainda mais rico. Na América do Sul, o Uruguai, um país de três milhões de habitantes, deu um exemplo para o mundo. Por que o Brasil não pode fazer o mesmo, do ponto de vista econômico e do ponto de vista de acabar com a violência? Isso acabaria com a mortandade de crianças, de adolescentes, dos aviõezinhos. Mudaria totalmente o panorama.

Oficinofobia
O Brasil pode transformar o mundo. Inclusive, por meio do próprio teatro. Se o Oficina tivesse condições de realizar tudo o que pode fazer, contribuiria muito mais. Mas nossas brigas nos atrapalham, como também o fato da minha pessoa ser polêmica, por eu ter tais visões que estou lhe dizendo. Há um tabu de que o teatro tem de ser mercadoria. Os atores têm de ser commodities, como os da Rede Globo. Todas as peças precisam envolver pouca gente, ser monólogos. E isso é a morte. O teatro tem o segredo, cara! Eu sou um dos velhos do mundo, mas tanto os jovens daqui como os mais maduros, cada uma das 60 pessoas que aqui se reúnem, se tiverem mais condições, poderão revelar esse segredo. Muitos que estão no Oficina têm péssimas condições de vida. Ganhamos pouco, pois somos obrigados e gostamos de cobrar pouco. Sabemos que a burguesia se sente incomodada quando vem a esse teatro. Há enorme preconceito com a duração das peças e os tabus que elas tratam. Existe uma oficinofobia. A Universidade Antropófaga, embora ainda não exista, acontece na própria ação, na própria montagem e na maneira de estabelecermos as coisas. É o ritual que liga tudo e todos. Luz, som, atores, música, camareiras e faxineiras. Todos criam uma máquina de desejo, mas ela precisa ser engraxada com investimentos. O dinheiro que segue inútil para o teatro mercadológico nos daria um potencial ainda maior.

O diretor no terreno anexo ao Teatro Oficina/ Foto: Luiza Sigulem
O diretor no terreno anexo ao Teatro Oficina/ Foto: Luiza Sigulem

Cacilda
Estávamos montando a primeira parte de Cacilda (o espetáculo tem três continuações, que retratam as diversas fases da carreira da atriz) quando houve os movimentos de junho. O segundo ato seria ela no TBC, mas fui obrigado a dar um salto temporal para o que eu tinha escrito sobre ela em 1968 e retratar Cacilda exatamente no período do AI-5, que acabou de completar 45 anos. Cacilda lutou muito nessa época. Não fez teatro, mas fez um teatro social para a sociedade brasileira, participando da desobediência civil, das manifestações e protegendo pessoas perseguidas em casa, ao mesmo tempo que integrava a Comissão Estadual de Teatro, ligada à Secretaria da Educação do Estado de São Paulo. Era uma mulher cercada por grandes intelectuais do teatro da época, como Alberto D’Aversa, Plínio Marcos, Anatol Rosenfeld e Décio de Almeida Prado.

Ditadura
Com o AI-5, fomos reprimidos, torturados e exilados. Partimos para Portugal e, depois, fomos para Moçambique. Voltamos ao Brasil durante o processo de reabertura política (mais precisamente em 1979, logo após ser sancionada a Lei da Anistia), que foi longo, restrito e gradual. Demorou, mas retomamos nossas atividades e pudemos, novamente, renovar o teatro brasileiro com Hamlet (1992). Logo a seguir veio Bacantes (1997), Os Sertões (2003). São mais de 20 anos de grandes sucessos, no Brasil e no exterior. Levamos Os Sertões para a Alemanha, por duas vezes. Bacantes foi para Portugal e Bélgica. Os Bandidos (2007) foi para a Alemanha e viajamos com o espetáculo por todo o Brasil. Fizemos Os Sertões em Canudos e em Quixeramobim, terra natal de Antonio Conselheiro. O livro que conta nossos 55 anos é uma espécie de guia de tudo o que fizemos. Algo que deve ser jogado, “comido” e “antropofagiado” pelas pessoas.

Beco sem saída
O Oficina deu demais ao teatro brasileiro, pois o ajudou a se descolonizar. A antropofagia, como diriam os irmãos Campos (os poetas Augusto e Haroldo de Campos), é a única filosofia original criada no Brasil. E o mundo todo ainda crê em uma verdade única. Não só nas religiões, mas no mercado, que também é monoteísta. Cada um acredita ser dono de uma verdade, e isso gera coisas terríveis, como o racismo, a homofobia, o ódio. A verdade é: não existe essa tal verdade absoluta. Existe, sim, uma coisa viva, construída entre as pessoas, e elas têm de ser livres para viver. Mas o sistema capitalista vive, hoje, sua era mais podre. Depois da crise de 2008, qualquer cidadão do mundo está vivendo as dores do fim do capitalismo. O custo de vida está caríssimo, as cidades estão poluídas, as diferenças de classes nunca foram tão grandes e a miséria aumentou nas cidades do mundo. A política precisa hoje da cultura para ter uma visão mais poderosa e mais terrestre do mundo. Todo mundo sente isso: rico, pobre e mendigo. Por isso é que surgem manifestações de tudo quanto é lado. Há uma insatisfação absoluta. É preciso que surja uma percepção política vinda de nossa própria existência. É nela que está o futuro das coisas.

Bombas
As escolas deveriam levar os jovens para fazer rolezinhos nos shoppings, mas também nas prisões, ou nos vários lugares que poderão segregá-los, no futuro, porque é preciso infundir cultura por meio da experiência de vida. O teatro se baseia muito em um fenômeno que está dentro dos nossos olhos: o fenômeno da vida. O teatro não se baseia em abstrações, é um fenômeno táctil. Somos uma bomba, mas o oposto da bomba atômica. Uma bomba fertilizadora da cultura política vital, aquela que realmente interessa ao ser humano, individualmente e coletivamente.

Regente sem batuta
Não faço teatro na minha cabeça. Eu não trago o texto. Ouço o que o ator diz e vamos criando juntos. A função de trabalhar com o ator é fazê-lo ter coragem de ser tupi. “Ser ou não ser” é lindo, mas é uma frase abstrata. Prefiro o “Tupi or not tupi” (frase cunhada por Oswald de Andrade no Manifesto Antropófago, de 1928), o retorno ao corpo arcaico, ao corpo tupi. Trabalho com diálogo. Não suporto ser o diretor-maestro. Procuro fazer com que cada ator, cada músico, cada integrante do Oficina seja seu próprio diretor. Tudo conjugado, ligado ao que quer se transmitir no ritual e o que vem de dentro de nós. O artista que não trabalha as coisas a partir de dentro não tem valor.

UM AMANTE FIEL

Para o organizador do livro Oficina 50+, Labirinto da Criação, a trajetória da companhia de Zé Celso é uma história de amor ao teatro
EM CENA – Mariano integra o elenco de Bacantes, espetáculo que o fez querer entrar para a trupe do Oficina

Nascido em Osasco, na Grande São Paulo, aos 15 anos, em 1997, Mariano Mattos Martins foi arrebatado pela primeira montagem a que assistiu no Teatro Oficina. O espetáculo era Bacantes. Em 2003, ocasião em que cursava Publicidade, na Escola de Comunicação e Artes (ECA-USP), não resistiu à força de Os Sertões e decidiu colaborar para a companhia de Zé Celso. Desde a infância, Martins se dedica à formação de ator. Acabou integrando o elenco de Trans-Homem – terceira parte da montagem que reconstituiu a saga de Antonio Conselheiro. Pouco depois, se tornou também responsável pela identidade gráfica da companhia. A seguir, o organizador de Oficina 50+ Labirinto da Criação, livro primoroso em imagens e informações, que reconstituiu os 55 anos do Teatro Oficina, revela detalhes sobre a feitura da obra.

Brasileiros – Quando e como foi desenvolvido o processo de criação do livro? 
Mariano Mattos Martins – Teve início em 2009, quando conseguimos um patrocínio do BNDES, durante as comemorações do cinquentenário do Oficina. Foi formada uma equipe para a produção do livro, mas, após três anos, o trabalho pouco avançou. Eu já fazia a arte gráfica do teatro, mas não havia sido escalado para integrar a equipe do livro. Fui, então, chamado para organizá-lo.

Brasileiros – Qual metodologia de pesquisa você adotou para encarar o desafio de sintetizar uma história tão rica?
M.M.M. – Quando assumi o os trabalhos, o livro já tinha esse nome, que sugere forte simbologia para o projeto gráfico – exatamente pela questão do “labirinto” a cronologia não obedece começo, meio e fim. Fui para as margens do Rio Paranapanema (na divisa entre São Paulo e Paraná) e fiquei sentado, dia após dia, durante uma semana. Fiz uma lista de tudo que eu conhecia sobre a história do Oficina e também tive em mente que há na companhia algo muito específico em relação às outras: a pesquisa estética. Era preciso traduzir essa continuidade na grafia do livro.

Brasileiros – O contato com o acervo da companhia deve ter rendido boas surpresas…
M.M.M. – Fizemos uma varredura cirúrgica. E o livro é um convite ao público para conhecer essa importante trajetória. O fato de a peça Pequenos Burgueses (1963)ter sido apresentada mais de mil e quinhentas vezes foi um dado que me surpreendeu. Fez pensar no momento atual do teatro brasileiro e concluir: como foi possível isso? Por que o teatro não tem hoje o mesmo prestígio?

Brasileiros – A organização desses documentos históricos contemplou a modernização do banco de dados?
M.M.M. – Nosso acervo ainda é muito rupestre e corre riscos, pois não está conservado de maneira adequada. Conseguimos digitalizar cerca de 60% dos documentos.

Brasileiros – Depois dessa imersão, que balanço você faz sobre a companhia?
M.M.M. – O mais emocionante foi perceber a coerência mesmo em face às circunstâncias, políticas, econômicas e urbanísticas. O Oficina de 2014 é fruto de uma pesquisa diária, a meu ver, infinita, pois cultiva a semente mais importante: o amor ao teatro sobre todas as coisas. O Oficina é um amante muito fiel à sua arte.


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OFICINA 50+ LABIRINTO DA CRIAÇÃO
O livro pode ser comprado no Teatro Oficina
Rua Jaceguai, 520 – Bela Vista – São Paulo – 11 3104-0678


Comentários

2 respostas para “Um velho em busca de um mundo novo”

  1. Avatar de Jose Antonio Barbosa
    Jose Antonio Barbosa

    Adquiri o livro e é demais, vale a pena te-lo. Gostaria de ter conhecido o Oficiña muito antes. Tudo que deixei de acompnhar deve ter sido do caralho

  2. eu queria sabe de umas resposta pq eu esquece meu livro na escola ai eu gostaria de saber de uma resposta pra minha prova amanha

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