Pedras rolantes

São curiosos os idos da dita contracultura. Em 1967, quando os americanos Jann Wenner e Ralph J. Gleason fizeram menção de por nas bancas a revista Rolling Stone – então um tabloide em preto e branco -, sofreram a ameaça verbal de um processo na Justiça. A intimidação vinha, com desfaçatez, de Mick Jagger. Não custa ressaltar: um ex-estudante da London School of Economics. O cantor dos Rolling Stones queria compensação financeira pelo uso do nome. Wenner se viu obrigado a lembrá-lo que o batismo da banda fora surrupiado de um blues de Muddy Waters. Pois é, Rollin’ Stone, gravado no estúdio Chess, de Chicago, em 1948 – o mesmo onde Jagger e sua banda deixariam Satisfaction para a posteridade. Ficou tudo por isso mesmo. Era o ano do “Verão do Amor” em San Francisco, a cidade do novo tabloide. Nem todo amor termina nos tribunais nos Estados Unidos. Só a maioria.
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Ao que consta, Jagger não sabia, mas, no longínquo 1894, já havia sido lançado, também nos EUA, um jornal chamado The Rolling Stone, inspirado em um adágio francês (pierre qui roule n’amasse pas mousse ou pedra que rola, não cria musgo). Durou menos de cinco anos, embora sua folha de pagamentos fosse diminuta. Eram dois sócios. Um deles, William Sidney Porter, escrevia, caprichava no humor, nas caricaturas, diagramava as oito páginas e dava pitacos na impressão. Ainda não adotara o pseudônimo que o tornaria famoso: O. Henry.

Do semanário, restou uma placa no modesto prédio onde funcionou a redação, em Austin, Texas. Henry não tinha a mesma esperteza de Mick Jagger; ou a de Jeff Peters, um de seus personagens mais engraçados, protagonista de diversos contos. Perdeu o direito ao nome do jornal – e, mais tarde, até o direito à liberdade.

A fuga para Honduras
O. Henry nasceu em Greensboro, na Carolina do Norte. Morreu há um século, em 5 de julho de 1910, com 47 anos e o fígado em pandarecos. Seu legado vai além da placa ou de um nome de jornal. Autor de cerca de 600 contos, foi, já no fim da vida, um dos mais conhecidos escritores da época, embora parte da crítica olhasse de soslaio para suas histórias. Era acusado de construir personagens rasos, apelar para soluções amáveis e abusar da técnica “twist”, caracterizada pelo final inesperado.

Ele não estrilava. Estava preocupado em produzir muito (foram 66 contos, em 1904) para pagar o aluguel do quarto e, claro, o bourbon. Ainda assim, escreveu mais de duas centenas de histórias bem urdidas, de um humor formidável – às vezes, refinado; em outras, oxidante. Ao contrário do fígado de Henry, elas resistiram bem ao tempo. Um conto, em especial, Como se faz um nova-iorquino, antecipa em mais de seis décadas o romântico tipo beatnik, o personagem pedra rolante, o sem-destino, o espírito da época em que Mick Jagger e o guitarrista Keith Richards começaram a trocar ideias sobre a formação da banda. Um trecho, na tradução de Alzira Machado Kawall: “Além de muitas outras coisas, Raggles era poeta. Chamavam-no de vagabundo – um meio elíptico de dizer que era filósofo, artista, viajante, naturalista e descobridor. Acima de tudo, porém, ele era poeta. Em toda a vida, jamais escrevera um verso: vivia a poesia. (…) Possuído de fervor poético, Raggles vagabundeava ao longo de duas mil milhas, de norte a sul, de leste a oeste, amando todas as cidades. Palmilhava estradas poeirentas ou corria magnificamente em trens de carga, sem dar nenhum valor ao tempo”.

Em Like a Rolling Stone, Bob Dylan apanhou esse mito do vagabundo boa vida e transformou-o na garota jogada às traças e aos desafios das ruas. Henry, é fácil supor, daria uma gargalhada ao ouvir a canção e, quem sabe, nem cobrasse royalties pelo nome. Sua vida foi uma sucessão de percalços e, perto deles, os atropelos de Keith Richards são fichinha – a propósito, o escritor tocava violão e banjo e chegou a participar de um combo.

O pai de Henry era médico; a mãe, professora, autora da tese A influência da falta de sorte nos bem-dotados – concisa antevisão da vida do filho. Órfão ainda guri, o escritor só frequentou a escola até os 15 anos. Teve de se virar. Ainda na adolescência, pegou no batente como balconista de farmácia e domador de potros em uma fazenda. No tempo que sobrava, lia com sofreguidão o que lhe caísse diante dos olhos – sem nenhuma disciplina. Tentou o jornalismo, com o The Rolling Stone, enquanto dava duro como caixa, no First National Bank, em Austin. A agência era um caos econômico e Henry, então cheio de dívidas, foi acusado de desviar 5 mil dólares. Seus biógrafos ainda batem boca se o escritor pôs ou não pôs a mão na botija. Também não explicam porque Henry saiu à sorrelfa rumo a Honduras. Estava casado, tinha uma filha e havia arrumado trabalho no jornal Post, de Houston. Até fazia sucesso regional com desenhos e sátiras. Corria contra ele, é bem verdade, um processo judicial de peculato. Mas ainda em fase preliminar.

A fuga foi encarada como admissão de culpa. Henry só voltou aos EUA quando sua mulher, Athol, ficou muito doente. Ela morreria, de tuberculose, dias depois de seu regresso. Então, Henry deixou a filha com a avó e entregou-se à polícia. Ganhou cinco anos de retiro na Penitenciária Federal de Ohio e viu a passagem do milênio sem direito ao champanhe.

Por bom comportamento, teve a pena reduzida para três anos e três meses. Os 1.185 dias de cárcere, aliados aos tempos inglórios em uma república de bananas, foram decisivos para iniciar-se contista. Os companheiros de férias compulsórias eram matéria viva para a inspiração. Ainda na cela, escreveu as primeiras histórias. Um amigo incumbiu-se de vendê-las para as editoras de Nova York. Pândego, o contista criou o pseudônimo a partir do nome do chefe da guarda do presídio, o Capitão Orrin Henry.

Ao sair da prisão, em 1902, passou algum tempo com a filha e logo bandeou-se para Nova York, onde viveu até seus últimos dias, sempre em Irving Place ou perto de Madison Square. Gostava de chamar a cidade de Bagdá-Sobre-o-Metropolitano e de perambular por bares de má reputação e pelas ruas, à caça de bourbon, personagens, tipos e situações. O poeta José Paulo Paes, um de seus tradutores, escreveu: “(O. Henry) começou a por nas suas histórias gentinha solitária e esperançosa – moças que, segundo imaginava, eram arrastadas à grande cidade pelo amor ou pelo desejo de fazer carreira, e que se tornavam joguetes do destino; rapazes avidamente à procura de uma posição; vagabundos e desajustados que aceitavam a adversidade com ar de bazófia e por vezes exibiam atitudes sentimentais e romanescas”.

Durante seus oito anos de Nova York, Henry tornou-se muito popular. “Foi o autor típico e mais lido da era de Theodore Roosevelt”, segundo Otto Maria Carpeaux, em sua monumental História da Literatura Ocidental. Não tinha a empáfia de “grande escritor”. Apenas sentava-se diante da janela e ia tecendo seus contos, em geral plenos de ironia – à exceção das derrapadas para o sentimentalismo. Chegou a ganhar muito dinheiro do jornal Sunday World e, também, com suas coletâneas. Gastou ainda mais. Um casamento acidentado colaborou para sua ruína.

Os contos de O. Henry fazem parte de qualquer antologia decente da literatura americana. Vinicius de Moraes publicou um deles na sua seleção Contos Norte-americanos – os Clássicos (relançada em 2004, pela Ediouro). O escritor Flávio Moreira da Costa escolheu dois, ao organizar Os 100 Melhores Contos de Humor da Literatura Universal (Ediouro, 2001). Outros três, traduzidos pelo poeta Fernando Pessoa entre 1924 e 1925, foram reunidos, há quatro anos, em Três Contos de O. Henry (Editora Barracuda). Oportuno lembrar que o sujeito que ficou órfão menino, exilou-se em Honduras, foi preso, bebeu em quantidades de açude, vivia na penúria devido à incapacidade de lidar com dinheiro e, por fim, optou pela reclusão, esse sujeito morreu como escreveu: fazendo humor. Suas derradeiras palavras: “Levantem a cortina para que eu possa ver Nova York. Não quero ir pra casa no escuro”.

No ano seguinte à morte de O. Henry, foi publicada a primeira das sortidas coletâneas póstumas de seus contos. Chama-se Rolling Stones.

Vinte anos depois
por O. Henry

O policial de serviço subiu a avenida, garbosamente. O garbo era-lhe habitual e não ostensivo, já que havia por ali poucos transeuntes. Ainda não haviam soado as dez horas da noite, mas lufadas de vento gélido e úmido tinham despovoado prematuramente nas ruas.

Experimentando as portas à medida que caminhava; girando o bastão com movimentos complicados e destros; voltando-se de quando em quando para inspecionar a avenida pacífica – o policial, com sua figura imponente e afetada, dava bem a ideia de uma guardião da paz. O bairro era madrugador. Aqui e ali podiam-se ver as luzes de uma tabacaria ou de um café, desses que permanecem abertos a noite toda; a maioria das portas, porém, pertencia a lojas comerciais havia muito fechadas.

A meio caminho de certo quarteirão, o policial moderou subitamente o passo. Ao portal sombrio de uma loja de ferragens, estava encostado um homem, com um charuto apagado na boca. Ao aproximar-se o policial, disse-lhe rapidamente:

– Está tudo bem, seu guarda; espero um amigo. Um encontro marcado há vinte anos. Parece esquisito, não é? Pois bem, vou explicar o caso e verá que está tudo legal. Naquele tempo, onde agora se encontra esta loja, havia um restaurante, o restaurante de Big Joe.

– Exatamente. Foi demolido há cinco anos – confirmou o guarda.

O homem do portal riscou um fósforo e acendeu o charuto. A chama revelou um rosto pálido, de queixo proeminente, olhos espertos e uma pequena cicatriz branca no supercílio direito. O alfinete da gravata era um grande brilhante, curiosamente engastado.

– Há vinte anos, numa noite como esta – continuou o homem -, jantei no Big Joe com Jimmy Wells, o meu maior amigo e o melhor camarada deste mundo. Ambos crescemos em Nova York, como irmãos; eu tinha dezoito anos, ele vinte. Na manhã seguinte, eu deveria embarcar para o Oeste, em busca de fortuna. Ninguém, contudo, lograria arrancar Jimmy de Nova York, pois ele considerava esta cidade a melhor do mundo. Bem, combinamos, naquela ocasião, um encontro aqui, exatamente vinte anos depois, a despeito das condições ou da distância que tivéssemos de percorrer para cumprir o compromisso. Imaginávamos que, dentro de vinte anos, estaríamos com a vida feita e a fortuna consolidada, quaisquer que fossem.

– Muito interessante – retrucou o policial. – Todavia, parece-me que vinte anos é um prazo um tanto longo, não acha? Teve notícias do seu amigo durante esse tempo?

– Bem, de início nos correspondemos, – respondeu o outro – mas, depois de um ano ou dois, perdemos a pista um do outro. Como sabe, o Oeste é muito vasto e andei sempre muito ocupado, pulando de lá para cá. Tenho a certeza, porém, de que Jimmy, se estiver vivo, virá esta noite, pois sempre foi o sujeito mais correto e leal do mundo. Jamais se esqueceria. Viajei mais de mil milhas para estar hoje neste local e me darei por bem pago se ele aparecer.

O homem consultou o relógio, cuja tampa era ornada de pequenos diamantes.

– Dez para as dez – anunciou. – Separamo-nos exatamente às dez horas, na porta do restaurante.

– O Oeste foi-lhe propício, não? – indagou o policial.

– Nem me diga! Espero que Jimmy tenha tido pelo menos a metade do êxito que tive. Era um tanto bisonho, apesar de bom sujeito. Tive de competir com os malandros mais finórios para cavar o meu quinhão. Em Nova York, a gente fica entocado. Só o Oeste consegue deixar a gente afiado.

– Vou andando – disse. – Espero que seu amigo venha. Vai esperá-lo muito tempo ainda?

– Acho que sim – respondeu o outro. – Vou dar-lhe um desconto de meia hora, pelo menos. Se Jimmy estiver vivo, aparecerá logo mais. Até breve, guarda.

– Boa noite – disse o policial, continuando sua ronda e experimentando as portas conforme se afastava.

Caía, agora, um chuvisco gelado e as ocasionais rajadas haviam-se convertido numa ventania constante. Os poucos transeuntes retardatários apertavam o passo, silenciosos e friorentos, com a gola do casaco erguida e as mãos nos bolsos. À porta da loja de ferragens, o homem que viajara mil milhas para comparecer a um encontro, incerto e quiçá absurdo, com o amigo de mocidade, fumava seu charuto e esperava.

Aguardou vinte minutos e, então, um homem alto, enfiado até as orelhas num comprido sobretudo, atravessou a rua. Dirigiu-se para o homem à espera.

– É você, Bob? – indagou, em tom de dúvida.

– É você, Jimmy Wells? – exclamou o homem do portal.

– Por Deus! – suspirou o recém-chegado, tomando entre as suas as mãos do outro. – É Bob mesmo, no duro! Esperava encontrá-lo aqui se você ainda estivesse vivo. Ora, ora, ora! Vinte anos é muito tempo. O velho restaurante se foi, Bob; gostaria de que ainda existisse, para que lá pudéssemos jantar. Como foi de Oeste, meu velho?

– Às mil maravilhas! Lá encontrei tudo quanto esperava. Você mudou muito, Jimmy. Nunca pensei que pudesse crescer tanto.

– Pois olhe! Depois dos vinte, ainda cresci mais um pouco.

– Dando-se bem em Nova York, Jimmy?

– Assim, assim. Tenho um bom emprego numa repartição municipal. Vamos, Bob; sei de um lugar onde poderemos conversar longamente sobre os velhos tempos.

Os dois se puseram a caminho, de braços dados. O homem do Oeste, seu ego espicaçado pelo sucesso, começou a história de seus êxitos. O outro, enfiado no sobretudo, escutava com interesse.

Na esquina, brilhavam as luzes de um café. Ao chegar à zona iluminada, os dois se voltaram simultaneamente para se examinarem um ao outro.

O homem do Oeste parou de súbito e retirou o braço.

– Você não é Jimmy Wells – explodiu. – Vinte anos é muito tempo, mas não o bastante para mudar um nariz romano em batatinha.

– Às vezes, transforma um bom cidadão num mau – retorquiu o homem alto. – Você está preso há já dez minutos, Silky Bob. Chicago deseja conversar consigo e nos telegrafou avisando de que você talvez estivesse por aqui. Vai ficar bonzinho, não vai? Faz muito bem. Agora, antes de irmos para a delegacia, eis um bilhete que me pediram que lhe entregasse. Pode lê-lo diante da janela. É do guarda Wells.

O homem do Oeste desdobrou o papelzinho que lhe fora entregue. Sua mão, firme ao começar a leitura, estava trêmula quando o terminou. O recado era curto:

“Bob: compareci ao encontro na hora marcada. Quando você riscou o fósforo para acender o charuto, reconheci a fisionomia do homem que Chicago procurava. De qualquer maneira, não podia prendê-lo pessoalmente. Por isso, fui arranjar um secreta para executar o serviço. JIMMY.”

Histórias de O. Henry
Tradução de Alzira Machado Kawall e José Paulo Paes.
Editora Cultrix, São Paulo, 1964, pp. 83-6.

Stones no Parque


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