O livro contemporâneo infantil evoluiu de maneira a incorporar linguagens simultâneas. Além de as editoras crescentemente explorarem novas tecnologias, aparece de forma marcante, cada vez mais, o encontro de imagem e palavra. Não temos em nosso idioma um termo específico que relacione obras escritas com ilustrações para crianças, acabamos dizendo livros infantis ilustrados. Na língua inglesa são chamados picture books. Eles englobariam, em sentido mais amplo, publicações onde texto e imagens se relacionam. Um dos verbetes encontrados no dicionário para a palavra ilustrar é tornar ilustre, glorificar. Aparecem também outros significados como esclarecer, elucidar, comentar, explicar. Basicamente uma ilustração teria todas ou parte dessas funções. Seria a imagem ou figura de qualquer natureza com que se orna ou elucida o texto de livros, folhetos e periódicos. De certa maneira, quando nos deparamos com tais ideias, fica claro que a imagem é definida pela palavra. Entendendo assim, tiramos a força de uma frase frequentemente repetida, a de que uma imagem valeria mais do que mil palavras.
Em época de crise a criatividade é sempre visitada de forma mais incisiva. Buscamos, fazendo diferente e melhor, compensar eventuais perdas. Neste sentido, de olho no crescente mercado governamental de livros paradidáticos, as editoras tornaram-se mais dependentes dos ilustradores. Disputados, reverenciados por autores famosos, constantemente ampliando as possibilidades dos livros, trabalhando-os, agregando novos significados ao texto, transformando-os artisticamente, são fundamentais na hora de tornar o produto final mais visível e cobiçado. Atuando no País, e valorizados por seu desempenho, encontramos um grupo seleto que inclui gente como: Nelson Cruz, Fernando Vilela, Rosinha Campos, Marcello Araújo, Guto Lacaz, Marcos Guilherme e Odilon Moraes, com quem conversamos nesta edição.
Odilon Moraes
Odilon Moraes nasceu em 1966, em São Paulo, e morou em diversas cidades do interior. Tem sua vida estreitamente ligada à Inglaterra, com passagens pela Ilha de Wight e Londres, onde estudou. Formou-se em arquitetura pela Universidade de São Paulo (USP), mas logo cedo descobriu a falta de vocação para a profissão de arquiteto, passando a se dedicar à ilustração. Ganhador do Prêmio Jabuti (Melhor Ilustração Infanto-juvenil) por A princesinha medrosa (Companhia das Letrinhas, 2002), coordena, junto com Augusto Massi, para a Cosac Naify, editora que prima pelo bom gosto e qualidade dos livros que produz, a coleção Dedinho de Prosa. O pai de Moraes era um juiz de direito que gostava de pintar. Costumavam pegar a estrada e parar para retratar as paisagens. Era uma atividade absolutamente silenciosa. Ficavam os dois sozinhos, com suas telas e tintas. Para o menino, pintar era uma tentativa de dialogar com o mais velho. Chego ao endereço do ateliê do artista – vou chamá-lo assim embora saiba que ele não se considera um – no horário combinado. Estaciono o carro em uma típica rua do bairro de Perdizes, na capital paulista, tranquila, arborizada, silenciosa. No apartamento, tudo remete a livros e histórias. Estantes apinhadas, mesas cobertas por blocos de papel em diversos tamanhos, lápis coloridos e pincéis. Na parede, um quadro grande faz com que eu me lembre de Pedro e Lua (Cosac Naify, 2004), obra escrita e ilustrada por Odilon. Encontro um jovem atencioso e entusiasmado com o que faz.
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Imagem e texto
Conversando com Odilon fica claro, desde o início, a relação intrínseca que há entre imagem e palavra. Ele define seu esforço como a vontade de escrever com imagens. Alguns textos, segundo Moraes, necessitam de ilustrações para que tenham seu sentido ampliado e, muitas vezes, até recriado. Faz uma comparação interessante entre músicas e letras que as acompanham. Os dizeres podem até ter vida própria, mas quando se unem à melodia ganham um novo sentido, diverso. Da mesma forma os livros, particularmente os infantis, acabam flertando com a ilustração. E o mais interessante é que representações gráficas e frases escritas, embora unidas no mesmo conto, funcionam de forma independente, mostram coisas diferentes. A ilustração, ao exibir o que não está dito, agrega possibilidades. De certa maneira, sozinha, pode também relatar. Haveria, nesse sentido, uma literatura escrita a dois. Imagem e texto caminhando de forma paralela, complementando-se, mutuamente dependentes. Ilustrador e escritor trabalhando unidos, eventualmente sendo até a mesma pessoa, responsabilizando-se pelas duas atividades. Assim, e talvez por causa de tudo isso, é que a figura do ilustrador está tão valorizada, pois se transformou também em autor. E devido ao fato de tanto a palavra como a ilustração “escreverem”, e as duas formarem um objeto único, os chamados picture books, ele teve de aprender mais de uma linguagem.
Clássicos ilustrados
A Cosac Naify ilustrou alguns livros clássicos como o Aprendiz de feiticeiro (Göethe), O presente dos magos (O. Henri), Será o Benedito? (Mário de Andrade) e O homem que sabia javanês (Lima Barreto). Odilon, porém, não considera que haja preconceito com relação à iniciativa, apesar da ilustração ser considerada, muitas vezes, uma facilitadora. A idéia de que ao ilustrar-se estamos criando um produto diferente é que precisa prevalecer. É preciso lembrar que os picture books são outro trabalho e linguagem, maneira nova de se contar a história.
Odilon faz uma pergunta interessante. O que seria literatura infantil? A questão me intriga, principalmente quando me lembro de uma afirmação sua, a de que nunca pensa em crianças quando ilustra. Isto seria um redutor no sentido de que deveria ter idéias menos complexas, e pensar no que poderia ou não ser mostrado. Haveria, inclusive, limitação de mercado, pois quem vai dizer que aquele livro serve ou não para os pequenos é o educador, já que a literatura infantil, desde sua origem, tem a função de educar. O que seria lidar com crianças? Como saber ou julgar se alguma coisa é ou não adequada? Incomoda-o analisar uma obra de arte por sua adequação. Um quadro, por exemplo, não deve ser julgado assim. Ou ele é bom, ou ruim. Ao ser classificado como autor infantil, espera que estejam dizendo a respeito dele que é capaz de ir na raiz da palavra. Cita Manoel de Barros como alguém com a mesma inquietação. Lembro imediatamente de uma frase desse poeta nascido em Cuiabá: “A quinze metros do arco-íris o sol é cheiroso”. Complementa falando sobre um livro de Pedro Bloch, jornalista, músico, teatrólogo e médico, onde encontrou algumas definições feitas por crianças: “O avestruz é a girafa dos passarinhos; reflexo é quando o rio se veste de árvore; morrer é ver a flor pela raiz; vento é o ar com muita pressa”. Fazer um trabalho infantil para Odilon é poder explorar essas frases. Tocar nesse universo poético, que na verdade é um jogo de palavras. Em Pedro e Lua, por exemplo, mais uma vez essa preocupação fica evidente, e desde o título. O mais comum seria Pedro e a Lua. Mas ao retirar o artigo definido feminino, Moraes individualiza a lua, tornando-a amiga íntima do menino Pedro.
Aproveito para perguntar sobre a presença da lua, tão constante em sua obra, inclusive em Ismália, de Alphonsus de Guimaraens (Cosac Naify, 2006), picture book também realizado por ele. Explica-me que a lua, ao contrário do sol, não pode ser sentida. Enquanto ela nos traz a distância, o sol a presença. Ao trazer a distância, entrega junto com ela tudo o que provoca. Da mesma forma que o sol, muito brasileiro, nos traz a alegria, o lado lua traz a tristeza. O contentamento exageradamente explícito pouco teria a ver com ele.
Tirania do ilustrador?
Odilon Moraes considera que já alcançou um sucesso profissional que lhe permite escolher o trabalho que quer fazer. Embora hoje as editoras muitas vezes encomendem trabalhos, ele já possui certa independência. Recebe as obras, analisa e, apesar de muitas vezes serem boas, nem sempre se considera apto a ilustrá-las. Por outro lado, existem textos que, embora não sejam seus, dão oportunidade para que trabalhe dentro de um universo até certo ponto melancólico, mais próximo do que sente. Revela que sua relação com a Cosac Naify permite que exerça sua criatividade quase no limite. Suas idéias mais diferentes e difíceis de serem aceitas em outros lugares encontram espaço para se desenvolverem. Lá conseguiu fazer, por exemplo, o seu Pedro e Lua em branco e preto, o que seria improvável em outras editoras, onde produzir um livro infantil sem cores fugiria muito ao procedimento padrão. E reeditou, em 2008, A princesinha medrosa. A ideia de o ilustrador ter ganho responsabilidade nada tem a ver com tirania. O que está escrito não precisa ser revisto segundo as determinações dele. Odilon conclui dizendo que a nova qualidade obtida surge dos esforços do ilustrador, autor, designer e produtor gráfico. Todos conversando e decidindo juntos. Vivemos uma era de ajustes de poderes, de parcerias. Os picture books nascem desse diálogo.
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