Poucos livros conseguem provocar emoções tão intensas, sombrias e duradouras sobre a existência humana e o sentido da vida quanto “A Máquina do Tempo”. Romance de estreia do escritor inglês H. G. Wells (1866-1946), a obra foi publicada pela primeira vez em 1895, quando ele tinha apenas 29 anos, e consagrada depois como um evento pioneiro e importante no gênero ficção científica. Mesmo assim, desde então, não tem sido devidamente dimensionado por toda a sua importância e merecimento, que vai além de mero entretenimento juvenil. Ancorado na teoria evolucionista de Charles Darwin (1809-1882), Wells antecipa o futuro do homem com realismo impressionante, que chega a chocar e faz o leitor perceber toda a insignificância que é a vida no tempo e no espaço. Mesmo com suas invenções e curas de doenças mortais, na busca constante pela eternidade. A narrativa é uma envolvente reflexão sobre os conceitos de humanidade e civilização, com viés ideológico da época em que foi escrita, com todos os aspectos positivos e negativos.
Wells faz pensar também no sentido da religiosidade e seu caráter original. Sua história leva a uma fatalidade como conclusão: não há o que fazer para tornar o homem imortal, pois não existirão humanos, apenas resquícios de sua espécie em seres híbridos daqui a centenas de milhares de anos. Mas, o que se faz hoje, poderia ter reflexos milhares de anos depois. Em sua investida rumo ao desconhecido e ao perigoso com seu invento, esse “Viajante do Tempo”, como é chamado na trama, apoiou-se em conceitos matemáticos para inventar uma geringonça capaz de se mover pela Quarta Dimensão do tempo. E ele vai parar no ano de 802.701 e se depara não com semelhantes, mas com seres pacíficos e dóceis, remanescentes dos humanos que, aparentemente, vivem em um mundo paradisíaco, sem qualquer tipo de preocupação. Não demora, porém, para descobrir que, na verdade, esses seres fantásticos servem de alimentos para outra raça, que vive no subterrâneo e que, apesar de outrora terem sido dominados pelos Elóis, tornaram-se predadores destes, em uma eterna luta de classes.
A história se passa inicialmente na Inglaterra sombria de 1899, onze anos depois dos assassinatos de Jack, O Estripador. Quem a narra é um dos amigos do viajante, que faz parte do grupo que se reúne semanalmente em sua casa para jantar. Certa noite, o anfitrião tenta convencer a todos que, de fato, viveu os oito últimos dias em incríveis aventuras em épocas diferentes. Nenhum deles parece acreditar na história. No dia seguinte, o inventor embarca outra vez, rumo a o futuro. No trajeto, nota que o relógio do tempo se acelera e corre demais, até passar do ano de 802 mil. Ao descer do veículo, vê-se no meio de um jardim. Logo passa a explorar o lugar e vê figuras vestidas com túnicas em uma casa próxima, que o observam, curiosas. Uma delas, em tamanho pequeno, aproxima-se dele e lhe passa a impressão de ter bela aparência e possuir constituição física frágil. O viajante não consegue compreender a língua estranha que o ser fala com duas outras criaturas que a tinham seguido. As três examinam com curiosidade um tanto quanto infantil a estranha máquina.
Por precaução, o estranho retira as alavancas de controle para impedir o funcionamento acidental do invento pelas criaturas. Teme que elas possam ser insanas, enquanto o levam a um grande edifício próximo para se sentar e comer algumas frutas exóticas, esquisitas que, a princípio, o deixam confuso. Ele se esforça para aprender a língua das criaturas, que logo perdem o interesse em ensiná-lo. Impressiona-o a preguiça e a falta de iniciativa delas. Por isso, conclui que o comunismo deve ter triunfado nesta época distante, o que não era verdade. A mais terrível constatação, porém, vem em seguida: acabara de chegar a um ponto da história em que a humanidade já havia alcançado seu fim. Percebeu também que o vazio indicava que os avanços da civilização – até o final do século XIX, diga-se – tinham enfraquecido as pessoas, pois a necessidade sempre forçou historicamente os homens a usarem sua inteligência como meio de sobrevivência. Também acredita que o controle populacional havia sido excessivamente bem sucedido. E as conclusões prosseguem.
Pela nova teoria sobre o funcionamento do mundo que ele imagina que teria levado seus semelhantes a chegarem àquele estágio, a raça humana tinha se dividido por causa do aumento do abismo entre capitalistas e operários. A ponto dos pobres gradualmente terem sido relegados às áreas subterrâneas do planeta. Nessa visão essencialmente socialista que encantava Wells durante o processo de escrever o livro, a falta de interação entre ricos e pobres tinha impedido os casamentos mistos e criado duas espécies distintas. Cada uma se adaptou a seus respectivos ambientes. Essas são apenas deduções suas, diga-se. O viajante fica intrigado por que os temidos Morlocks pegaram sua Máquina do Tempo e por que os pacíficos Elóis não a devolvem a ele, se são os mestres.
Perfeito dos pontos de vista estrutural e narrativo, “A Máquina do Tempo” resultou de vários rascunhos e versões escritos por Wells ao longo de vários anos. Tornou-se sucesso instantâneo no Reino Unido e sua fama logo se espalhou por outros países – no Brasil, a versão mais antiga localizada saiu pela Brasiliense, em 1946, com o título “As Rodas do Acaso e a Máquina de Explorar o Tempo”. Com esse pequeno volume, primeiro e mais importante romance moderno sobre viagens no tempo, o autor abriu caminho não só para seus livros e sua visão de mundo da humanidade, mas para novas possibilidades temáticas na literatura. Com seus livros inicialmente chamados de “romances científicos”, todos de caráter utópico, Wells inventou uma série de temas que foram mais tarde aprofundados por outros escritores de ficção científica, e que entraram para a cultura popular. Gênero, aliás, que consolidaria em outros trabalhos seus importantes como “O Homem Invisível” e “A Guerra dos Mundos”.
Deve-se atribuir a Wells a base do conceito que conduziu a ampla produção de literatura fantástica ao longo de todo o século XX. Ele definia suas ideias políticas como “socialistas”. Estavam, segundo ele, de acordo com sua preferência por utopias. Algo que a prática, no entanto, faria com que esse sentimento se dissipasse um pouco, por causa das decepções que viveria em relação ao socialismo na prática. Depois de ver com simpatia a Revolução Soviética de outubro de 1917, mostrada em seu relato de uma visita ao país (Rússia in the Shadows, 1920), o escritor mudou de opinião com a crescente rigidez doutrinária dos bolcheviques na antiga Rússia. Depois de um encontro com o ditador soviético Joseph Stálin (1878-1953), convenceu-se de que a revolução russa caminhava para um trágico destino. Tudo isso, mais o nascimento do nazismo e de outros regimes totalitários fizeram com que ele se tornasse um pessimista.
Veio de Wells a noção de que devia haver uma maneira melhor de organizar a sociedade, ao criar em seus romances situações verossímeis, em que mostrava o mundo caminhando de modo inexorável em direção de uma catástrofe até que as pessoas se apercebessem da existência de uma maneira melhor para viver e lutavam heroicamente por isso. O escritor era tão visionário que discutiu em outras obras de ficção, no início do século XX, questões ainda atuais, como a ameaça de uma guerra nuclear, o advento de um Estado Mundial e a ética na manipulação de animais – como se vê no excepcional “A Ilha do Dr. Moreau”. “Wells é capaz de colocar a manidade nas garras do impossível e, mesmo assim, evitar que ela perca sua essência, a carne e o sangue, o sofrimento e a loucura”, escreveu o também romancista Joseph Conrad (1857-1924), autor de “Coração das Trevas”.
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