A sordidez humana

Os amantes da Mostra de Cinema de São Paulo aguardam todos os anos, com ansiedade, os filmes que passam nos principais festivais do mundo, como Cannes, na França, Veneza, na Itália e Berlim, na Alemanha. É a oportunidade de ver, antes da estreia nos cinemas, os filmes que se destacam nesses festivais. [nggallery id=14141] Um dos mais aguardados na Mostra de 2010 era o filme Vênus Negra, do diretor tunisiano Abdellatif Kechiche. O longa teve estreia mundial no Festival de Veneza deste ano, e lá foi recebido com entusiasmo pela crítica e pelo público, apesar de causar polêmica, devido a algumas cenas indigestas. O filme conta a história verídica de Saartjie Baartman (Vênus Hotentote), nascida às margens do Rio Gamtoos, no atual Cabo Oriental, na África do Sul, em 1789, e pertencente à família Khoisan, mais conhecida como bosquímanos. Uma das características das mulheres bosquímanas era a protuberância das nádegas, por excesso de gordura, fenômeno conhecido como esteatopigia. Saartije aceita o convite de um inglês e decide ir para Londres, para se apresentar como bailarina, com o intuito de ganhar dinheiro e depois retornar para sua região. Mas a história, infelizmente para a africana, seria bem diferente.Na coletiva que deu em Veneza, o diretor Abdellatif Kechiche disse que se sentiu na obrigação de contar a história, porque fala muito sobre a nossa sociedade contemporânea. “Senti que eu tinha o dever moral de testemunhar as coisas que continuam a acontecer até hoje”.O filme começa com um cientista francês dando uma aula de anatomia, exibindo para seus alunos um modelo de gesso de uma mulher da etnia africana. Ele mostra também os órgãos genitais e o cérebro da mulher que serviu para fazer o molde de gesso. A cena seguinte passa para uma das muitas apresentações que Saartjie Baartman (vivida pela atriz cubana Yahima Torres, que engordou 13 kg para viver o papel), fez em Londres, a partir de 1810. O que era um sonho vira pesadelo, pois em Londres Saartije era exibida como uma aberração da natureza para um público sedento de curiosidade e ar de superioridade. As cenas são feitas em longos planos e o espectador fica com a sensação de estar participando daquele circo de horrores.Nessas apresentações, Saartjie era submetida a todo tipo de humilhação e é até colocada em uma jaula como animal, para depois sair e ficar exposta, no final do espetáculo, para o público. Cenas chocantes e reais.Uma das muitas abordagens do filme é sobre as teorias científicas racistas que afloraram no mundo ocidental entre os séculos XVIII e XIX, e que de alguma forma, perduram até hoje, com outros significados. A vida de Saartjie naquele mundo, dito civilizado, vai piorando cada vez mais. Ela viaja com o seu explorador até Paris e lá é submetida às mais cruéis degradações, com um final horroroso. Ela morreu em 29 de dezembro de 1915, em decorrência de sífilis, contraída quando vira prostituta nas ruelas e becos parisienses.Um filme difícil de ser visto, mas necessário por recuperar uma história terrível de intolerância racial do nosso passado, que ainda replica na nossa sociedade com outras vestes. Os restos mortais de Saartjie (esqueleto, órgãos genitais e cérebro) ficaram expostos no Museu do Homem da França, até 1985. Em 2002, eles foram entregues à África do Sul, pelo governo francês, e hoje repousa no cemitério de Gamtoos Valley, sua terra natal. Para quem ainda não assistiu ao filme, a última exibição será no dia 4 (quinta-feira), às 18h20, no Unibanco Arteplex 1 (Shopping Frei Caneca).

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Sob o manto da representação


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