Maria Victoria: aula de respeito

Em uma casa localizada na Vila Nova Conceição, na capital paulista, onde mora vovó Tóia, os brinquedos espalhados pelos cantos se misturam com tantos livros e fotos que revelam ali uma família de classe média, sem ostentações, requintes ou luxo. A mesa dos almoços de domingo já não é suficiente para acolher tanta gente e a anfitriã tenta distribuir o calor de sua atenção entre o marido, os três filhos, as três netas, a empregada e a nossa reportagem. Os assuntos abordados ali vão desde a opção por torcer pelo Corinthians, sugerida pelo amigo Antonio Candido, até a preocupação com o ponto do rosbife. Mas ela ainda consegue tempo para contar a historinha Festa no Céu, de Ana Maria Machado, para a neta, além de ler um texto enviado pelo amigo Fábio Konder Comparato.

A vovó Tóia é a personagem que a niteroiense Maria Victoria Benevides, 66 anos, se permite vestir quando reúne a família. Na verdade, para ela, este é o seu papel principal – ou talvez o que ela mais aprecie. As outras máscaras, até mais conhecidas, mas ao mesmo tempo permeadas por outras tantas exigências, são as de cientista política, socióloga, educadora e militante. Ao longo de uma carreira marcada pela atuação política e pela intensa produção na área de defesa dos direitos humanos, Maria Victoria é uma figura que oferece grande contribuição intelectual nesses dois campos.
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Mas foi há mais de 20 anos que ela “descobriu” que suas práticas pessoais ecoariam naquilo que passou a ser chamado de Educação em Direitos Humanos, o que ela chama de “caminho sem volta”.

A novidade foi-lhe apresentada e trazida pela amiga Margarida Genevois, 85 anos e também socióloga, que conheceu na Comissão Justiça e Paz de São Paulo, ainda no final da década de 1970. A Educação em Direitos Humanos tornou-se rapidamente o tema principal dos estudos e trabalhos desenvolvidos por Maria Victoria. “Virou um programa de vida”, reforça. Esse “programa de vida” se realiza, principalmente, por meio de pesquisas e por conta da capacitação de professores. “Nosso alvo preferencial são os educadores, mas não adianta o professor passar conteúdo para a criança se ele não acredita e não passa aquilo na sua maneira de ser”, alerta.

O que Maria Victoria e Margarida, além de tantos outros destacados autores brasileiros da área, defendem em relação à Educação em Direitos Humanos é a busca por um ensino que tenha como preocupação central o fortalecimento de um espírito democrático, uma cultura de paz, de tolerância com a diversidade e o exercício da cidadania. “Se a educação não for capaz de promover um sonho para viver, ela não serve para coisa alguma. Você pode saber ler, escrever, fazer continha, saber todos os países da África e suas capitais, mas o que você faz com isso?”, avalia Lisandre Castello Branco, professora aposentada e companheira de Maria Victoria na Faculdade de Educação da USP (FE/USP).

No final da década de 1980, a socióloga participava ativamente das batalhas pela redemocratização do Brasil e pela defesa de militantes políticos perseguidos pela ditadura militar instalada no País em 1964. Foi naquela época que a companheira Margarida trouxe do Uruguai o que seria um projeto inovador por aqui. Hoje, as duas amigas fazem parte do Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos, ligado à Secretaria Especial de Direitos Humanos, da Presidência da República. Ainda que devagar, o trabalho dessas entusiastas tem surtido alguns resultados.

Mesmo com uma bursite aguda no braço direito, em uma sala da Faculdade de Educação da USP, ela não mede esforços para esboçar na lousa alguns conceitos bem mais consistentes do que o traço do giz, como o de que a “educação é o contato entre iguais”. Idéias que talvez estejam entrando pela primeira vez nos corações e mentes dos futuros professores. Não à toa, alguns se tornam verdadeiros discípulos da educadora. “Não dá pra falar de direitos humanos sem pensar quem são os sujeitos desses direitos e em que eles são desrespeitados. Temos que falar de raça, etnia, gênero”, diz Daniela Auad, 35, pedagoga e professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Rica herança
Os 23 anos de experiência como docente e os livros “devorados” na carreira acadêmica não são a única bagagem que fazem de Maria Victoria uma mulher com consciência social. Fica evidente em suas aulas que a experiência de vida aproxima os conceitos teóricos da realidade cotidiana. “Não se falava de direitos humanos antigamente, mas desde muito cedo me preocupava com a questão da justiça, da igualdade, por conta da educação familiar”, relembra. Seus avós paternos, o Barão de Mesquita e a Baronesa de Bonfim, que dão nomes a ruas na cidade do Rio de Janeiro, receberam esses títulos de nobreza como reconhecimento por libertarem 300 escravos da família dois anos antes da abolição da escravatura.

Na casa onde viviam Maria Victoria, a mãe, a avó materna e os irmãos – o pai morreu pouco depois de perder o primogênito em uma batalha da Segunda Guerra Mundial, na Itália -, as empregadas tinham um tratamento diferenciado, hora de trabalho e direito a estudar, além, claro, da “obrigação” de seguir a orientação religiosa familiar. Aos 14 anos, por exemplo, Maria Victoria já unia política e religião quando participava da Juventude Estudantil Católica, a JEC.

Além de histórias como essa, outra lembrança intensa da infância são as férias escolares, quando jabuticabeiras e mangueiras da casa da cidade ficavam praticamente intactos. Depois do último dia de aula, todos partiam para a praia de Iguabinha, na região dos Lagos do Rio de Janeiro. Para Paulo Benevides Soares, seu marido, aquele lugar, onde o namoro dos dois engatou, era paradisíaco. “Uma lagoa marítima, com bastante água salgada”, lembra o astrônomo da família.

Quase completando a maioridade, Maria Victoria seguiu para os Estados Unidos com uma bolsa de estudos para o último ano do ensino médio debaixo do braço.

Além de calcificar o romance com o então namorado e atual marido, o tempo que Maria Victoria passou no exterior aprofundou suas posições políticas. Vivia-se o auge da Guerra Fria. “Um dos objetivos do programa de bolsas era formar lideranças nos países ditos subdesenvolvidos, que não fossem hostis ao imperialismo ianque. Comigo não funcionou.”

Foi lá que ela teve o primeiro contato com a sociologia, alinhando-se cada vez mais à esquerda. Em meados de 1961, Maria Victoria foi aprovada na Escola de Sociologia e Política da Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio). “Eu vivia 16 horas por dia em função da faculdade e da política estudantil”, relembra.

Por outro lado, ela não deixou de se dedicar às relações familiares. Um convite para que Paulo elaborasse sua tese de doutorado e fosse trabalhar na França foi um ultimato para que ela decidisse construir a sua própria família. Maria Victoria trancou a matrícula na faculdade, casou-se em 20 de fevereiro de 1964 e em março já estava no navio que levaria o casal para a Europa. Nos 13 dias em que estiveram a bordo, o Brasil passava por mudanças inesperadas. “Parecia que o País estava entrando para a esquerda, mas o comício da Central do Brasil, no mesmo dia em que chegamos à França (13/3/1964), foi a gota d’água que levou os militares ao pronunciamento da revolução”, recorda Paulo. Isso eles só ficariam sabendo dias depois, por meio dos jornais franceses. Nas cartas, a mãe da socióloga informava que, na medida do possível, recebia alguns perseguidos políticos em sua casa.

Já em São Paulo e com três filhos, Maria Victoria conseguiu concluir a graduação, na USP, e o mestrado, orientada por Francisco Correa Weffort. “Na minha defesa (em 1975) estavam sentados na primeira fila Antonio Candido, Florestan Fernandes, Caio Prado Júnior. Era a primeira tese de política defendida no departamento de Ciências Sociais depois de todos os expurgos.” Maria Victoria estava ali, em uma universidade pública, falando abertamente sobre democracia, uma atitude ousada, considerando que o País estava sob as rédeas e proibições do AI 5.

Fundação do PT
Entre leituras, fichamentos e conflitos familiares, ela ainda dedicava parte de seu tempo ao Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec), do qual foi uma das fundadoras. Lá, num seminário em 1979 – logo após o fim do AI 5 -, sobre a redemocratização do Brasil, ela conseguiu reunir Pedro Malan, Mangabeira Unger, Hélio Bicudo e Fábio Konder Comparato. Paralelamente, a socióloga desenvolvia trabalhos para a Comissão Justiça e Paz. O grupo, criado por Dom Paulo Evaristo Arns em 1972, com o apoio de juristas e representantes dos mais diversos segmentos da sociedade civil, era uma “garantia de vida” para muitos perseguidos e presos políticos da época. A intenção era, na medida do possível, questionar a legitimidade do regime militar. Nesse sentido, a Comissão trabalhava voluntariamente, como uma tentativa de ajudar as vítimas da repressão. Margarida Genevois, que esteve na Comissão desde a fundação e foi a primeira mulher a presidi-la, recorda que “o pouco que era possível fazer com os advogados, nós fazíamos, porque não tinha habeas corpus. Mas o fato de saber que a pessoa estava lá (nas prisões) já era uma garantia de que não iam matar fácil”.

De acordo com o jurista Fábio Konder Comparato, Maria Victoria sempre buscou uma solução para os problemas da vida e sociais. “Na Comissão ela tinha estas ações: ‘Ver’ o que aconteceu efetivamente, onde foi preso, se tinha testemunhas; ‘Julgar’, conversar com a pessoa, saber tudo sobre a sua vida, quem eram seus companheiros, relatar minuciosamente a tortura; e ‘Agir’, pois mesmo em uma situação de regime de exceção, nós procuramos agir.”

Foi da vontade de agir que ela e outros intelectuais participaram da criação de um partido formado “de baixo para cima”. Por trás do palanque de onde surgiu um líder operário que rumou até o Palácio do Planalto vinha um discurso de humildade dos letrados. “Eu e meus amigos socialistas estávamos ali para assistir à fundação de um partido de esquerda e nós, intelectuais, não éramos os donos da bola”, assume a socióloga. O Partido dos Trabalhadores, em 1980, representava um novo movimento político para a história do País. Quem sempre foi massa de manobra na política passou a ser protagonista”, emociona-se, ao resgatar aquele período.

Ela nunca se imaginou em cargos políticos, mas seu primeiro envolvimento mais intenso com candidaturas aconteceu em 1978, como militante na campanha de Fernando Henrique Cardoso para o Senado. “Me lembro que quando fui para o PT, Fernando Henrique me disse ‘Isso não é pra você! Você vai rezar o terço lá?’”. Durante o governo FHC, Maria Victoria fez mais do que rezar. Em artigos publicados em grandes jornais nacionais, deixava explícito o seu descontentamento.

Fim de um sonho
Em 2005, Maria Victoria, os companheiros de militância e boa parte do País viram o sonho da esquerda tornar-se pesadelo. “O fato de afetar a esperança que uma quantidade de gente colossal tinha no partido foi uma morte na alma e também no corpo. Fiquei literalmente doente.” Recuperada do baque, ela poderia ter feito como alguns colegas e se desligado do PT, mas preferiu dar continuidade ao seu desafio por uma educação democrática dentro do partido. “Este ainda é, sem dúvida, o governo que ficará marcado pela política de direitos humanos. Então, não é por causa dos padres pedófilos que eu vou deixar de acreditar no evangelho e lutar pelos seus princípios”, compara, referindo-se à situação política vivenciada.

O sociólogo Chico de Oliveira é um dos que deixou o Partido dos Trabalhadores em 2003 e participou da fundação do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). “O fato de estar e continuar no PT não diminui em nada a importância dela dentro do cenário intelectual e político brasileiro. Esse é um tipo de militância (pelos direitos humanos) muito especial”, ressalta. Outro que deixou o PT é Plínio de Arruda Sampaio, um dos autores do estatuto do partido. Também no PSOL, ele acredita que “Maria Victoria tem um pensamento socialista de verdade e ela deve ter muita dificuldade para defender seus ideais”.

Paralelamente à militância, ela ainda encontra outros modos de fazer política. A partir de uma idéia sugerida pelo sempre amigo Comparato e por conta do apoio e organização do advogado Claudineu de Melo, foi possível criar a Escola de Governo, em 1991. A base da entidade é formar pessoas capacitadas para atuar como dirigentes públicos. Maria Victoria, assim como Comparato e Melo, ministra aulas na Escola até hoje, como voluntária. “Ela proporciona uma visão humanista da política brasileira. A palavra dela é muito importante”, comenta Comparato.

Exemplos aos filhos
Apesar de estar a vida inteira dialogando com os direitos humanos e as questões sociais, Maria Victoria não acreditava que poderia ser uma boa professora da Faculdade de Educação da USP, quando ingressou na instituição, já aos 43 anos, em 1985. “Nunca estudei tanto na minha vida”, confidencia. Mesmo antes de começar a lecionar, Maria Victoria já tinha um “espírito pedagógico”, como diz Daniel Benevides, o filho mais velho. Em comum, os três filhos lembram com muita clareza dos livros que liam na infância. “Ela não era aquele tipo de mãe que levava a gente para o cinema, a passeios, mas ela sempre trazia livros para a gente, contava histórias, sempre foi muito presente”, conta Marina Benevides, a caçula.

Além das leituras, as atitudes da mãe marcaram as escolhas profissionais – e de vida – dos filhos. “E o lado certo é justamente esse de respeito aos outros, de buscar a justiça social, e se for para tomar partido, que seja dos mais fracos”, reflete André Benevides, o segundo filho, sobre os ensinamentos da matriarca. Ter uma mãe socióloga e um pai astrônomo não era muito normal e algumas experiências provavam isso, como nesta história de Daniel: “Uma vez fui reclamar que um primo meu tinha me batido, e ao invés dela me ajudar, ela estava me dando bronca por eu ser dedo-duro, e isto faz todo sentido, porque era época da ditadura e a questão da delação era algo muito complicado”. Marina aprendeu desde cedo que “é muito fácil dizer a solidariedade, mas o importante é ser solidário nas pequenas coisas do dia-a-dia”.

No auge de sua “juventude acumulada”, aos 66 anos, a professora Maria Victoria deve sair de cena, pelo menos da sala de aula, em 2010. Agora, vovó Tóia passa a ser a personagem em tempo – quase – integral desta mulher, que ainda está longe de parar. “Acho que agora ela seria mais feliz se tivesse que se ocupar menos com os serviços e mais com as netas. Está na hora de parar um pouco, mas não adianta, ela vai sempre trabalhar com direitos humanos, mesmo fora da faculdade”, atesta Paulo.

A luta continua

No último dia 17 de fevereiro, Maria Victoria Benevides não conseguiu resistir a mais um chamado de sua consciência e declarou-se contra um editorial do jornal a Folha de S.Pauloe, principalmente, as ásperas respostas da redação a seus leitores. Ao acrescentar um neologismo à língua portuguesa, chamando o período da ditadura brasileira como “ditabranda”, a publicação ganhou uma polêmica e inúmeros opositores. Dentre eles, a socióloga e o colega Fábio Konder Comparato. Ambos obtiveram um retorno da redação, na página 3 do dia 20 de fevereiro, que declarava como “cínica e mentirosa” a indignação destes renomados intelectuais na área de direitos humanos. “O cinismo é uma questão de opinião, mas mentira é algo que tem que ser provado, mentimos em quê?”, questiona Maria Victoria. “É um direito deles (Folha de S.Paulo) tomar uma posição, e nós temos todo o direito de reclamar de tudo o que nós considerarmos uma falsidade histórica. Reconheço o papel que a Folhateve nas Diretas Já, mas reconheço também que ela tem de aceitar como um dado da sua história a colaboração da empresa Folha da Manhã– que era do mesmo dono – com a ditadura”, argumenta.
O assunto pautou intensas discussões em jornais, revistas e blogs de jornalistas, como Mino Carta, que reativou seu espaço na internet com um texto sobre o tema. A escolha da tal palavra, segundo Maria Victoria, esconderia outras intenções, ligadas à política e a aproximação da revisão da Lei da Anistia. “Afirmo que a Folhanão tem interesse em que se remexa no passado, porque quando você mexe em alguma coisa, é como se puxasse a ponta de um novelo. Você não sabe quantos nós tem ali e nem onde ele vai acabar.” E é categórica ao afirmar que “violação de direitos humanos não se mede em estatísticas, tortura é crime comum e contra a humanidade. Aliás, tenho certeza de que isso ainda vai render muito, inclusive no plano pessoal, em relação ao professor Fábio e a mim. E espero ainda consequências disso”.


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