Rachel Reichhardt: traço feminino

Era uma manhã ensolarada de sexta-feira, quando a paulistana Rachel Reichhardt recebeu a Brasileiros para conversar. A idéia inicial era fazer a entrevista naquela noite, mas para Rachel o horário não era conveniente. Toda sexta-feira à noite, com o nascer da lua, começa o dia sagrado judaico, o Shabat. Durante 24 horas, os judeus dedicam-se a desenvolver o seu lado espiritual. É proibido atender o telefone, entrar na internet ou realizar qualquer tipo de trabalho que interfira nessa tarefa. Os mais ortodoxos deixam até de apertar o botão do elevador. Para Rachel, mais do que uma tradição, o Shabat mostra seu compromisso com a religião. Responsabilidade essa que ela considera fundamental para a certificação de seu trabalho conquistado com muito esforço: o ofício de escriba. Uma atividade, até então, exclusiva dos homens. Há quatro anos, essa professora de hebraico da Comunidade Shalom de São Paulo tornou-se a primeira mulher brasileira a escrever o Torá – livro sagrado judeu que conta a história do Velho Testamento. Mas para alcançar tal proeza, ela precisou percorrer um longo caminho.

Filha de pais judeus, Rachel estudou em uma escola religiosa até a 4ª série do antigo ginásio. Quando entrou para o colegial, sua vida sofreu uma mudança. “Fui para um colégio normal, mas continuei estudando hebraico. Não era pela religião em si. Fiquei com medo desse novo mundo que estava entrando, com muitas pessoas diferentes de mim. Usei o hebraico para continuar naquele ambiente seguro que conheci a vida toda”, explica. Rachel optou por fazer o curso Normal para atuar no magistério e ao terminá-lo estava apta a dar aulas para alunos até a 4ª série. “Tornei-me professora de hebraico.”

Anos depois, quando terminou a faculdade de comunicação visual na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), foi passar um tempo em Israel. “Eu era ortodoxa, mas estava muito confusa. Achei que lá eu me encontraria. Mas aconteceu o oposto. Não entendia por que eu tinha que negar a minha família (que não era ortodoxa), meus amigos, minha língua e meus costumes brasileiros para ser uma boa judia.”

No meio de tanta confusão mental, como ela mesma descreve, Rachel encontrou uma luz no fim do túnel. “Conheci um rabino que seguia uma linha do judaísmo totalmente nova para mim, que ainda não existia por aqui, o Reconstrucionismo”, lembra-se. Na década de 1980, existiam no Brasil apenas duas vertentes, os ortodoxos e os reformistas. “O surgimento da Torá ajuda a entender a diferença. Para a ortodoxia foi Deus quem veio e materializou o livro sagrado. Para os reformistas, homens com noções mais evoluídas escreveram o texto para doutrinar o povo”, explica Rachel. Já os reconstrucionistas acreditam que existe um meio termo. Para eles, há homens com inspirações divinas. “Isso salvou a minha vida.”

Escrita sagrada
De volta ao Brasil, então com 24 anos, Rachel conheceu o rabino Nilton Bonder, precursor do pensamento reconstrucionista no Brasil. “Ele foi contratado pela Associação Religiosa Israelita (ARI), mas, como pensava diferente, acabou sendo demitido. Algumas pessoas perceberam que ele tinha idéias interessantes e propuseram criar uma comunidade nova.” No começo, eram 15 pessoas que se encontravam na sala de visitas da casa de um dos membros. Aos poucos, as reuniões foram crescendo e, atualmente, a Congregação Judaica do Brasil (CJB) reúne cerca de duas mil pessoas na reza às sextas-feiras. Para fazer a comunidade funcionar, cada um exercia uma função. Rachel, que tinha uma grande experiência com o hebraico, por ter dado aulas e frequentado um curso de hebraico na Universidade de São Paulo (USP), na Faculdade de Letras, trabalhava ensinando a língua para as pessoas. Depois de tanto tempo trabalhando como professora na CJB, passou a ter questionamentos sobre seu futuro. “Percebi que gostava muito de mexer com papel, desenho, pergaminho e escrita. Mas, ainda era um sonho muito distante. Nos anos 1990, não existiam nem ortodoxos no Brasil que eram escribas. Imagina como seria difícil para um não ortodoxo e ainda por cima mulher”, diz.

Em 2000, Rachel ganhou uma bolsa de uma fundação norte-americana para fazer mestrado em educação judaica em Israel. “Estava com 40 anos e achei o máximo largar tudo para me dedicar aos estudos durante um ano. Encarei como um prêmio de loteria”, conta. Ela aproveitou a oportunidade para fazer vários outros cursos, incluindo um de caligrafia judaica. “Como não era um curso de escrita sagrada, as mulheres também podiam fazer. O professor ensinava a maneira correta de escrever cada ideograma, como manusear o pergaminho e como apontar e escrever com penas. Todo o trabalho dos escribas é artesanal, então é preciso aprender cada passo”, explica Rachel.

Mas ela queria mais do que isso. “O professor sacou que eu estava lá para aprender a escrever livros sagrados e logo me proibiu. Disse que não iria ensinar uma mulher a escrever o nome sagrado, o tetragrama de Deus”, lembra. Para os judeus, Deus criou o mundo através da palavra. Quando alguém materializa a palavra, escrevendo, interfere diretamente na criação do mundo. Por isso, a pessoa que escreve livros sagrados tem uma grande responsabilidade. Os mais ortodoxos acreditam que a mulher não tem capacidade de ter esse tipo de encargo. Mesmo assim, Rachel não desistiu e acabou convencendo o professor a ensinar todas as outras palavras. “Eu me empenhava muito nas aulas e o professor acabou me acolhendo. Passei a ir na casa dele observar o trabalho dos manuscritos. Um dia ele me ensinou a escrever o livro sagrado de Ester – que conta a história do Purim, feriado judaico em que é celebrado a salvação dos judeus da Pérsia -, único livro que não menciona o nome de Deus”, lembra.

Enfim, o diploma
Após quatro meses de mestrado, a aspirante a escriba foi com um amigo para um acampamento judaico, no Canadá. Foram três meses decisivos para a sua consagração no santo ofício. Nas horas livres, aproveitava para escrever o livro de Ester. Até um rabino fazer a ela um pedido especial. “Ele me pediu para escrever um mezuzá – pergaminho que contém um trecho de uma oração que é afixado nas portas das casas judias. Recusei prontamente, porque o pergaminho tinha o nome de Deus.” Mas, o rabino não se deu por vencido e impôs a sua autoridade para que ela pudesse escrever o nome sagrado. “Faltava alguém para dizer que eu podia fazer aquilo e ele disse”, lembra.

Uma semana depois, o pergaminho com apenas 20 linhas estava pronto. “Cada vez que eu escrevia o tetragrama de Deus, ficava nervosa, precisava parar e me preparar. Por isso demorei. Depois que terminei, queria mostrar para o rabino David, mas ele estava de folga.” Outro rabino passou pelo caminho da professora e a questionou pelo feito. “Ele disse que eu não podia fazer aquilo porque era mulher. Eu expliquei que haviam me pedido e argumentei que eu achava que estava apta a escrever o nome de Deus.”

Naquele momento, outros três rabinos juntaram-se à discussão e formou-se um Tribunal Rabínico – quando três judeus reúnem-se para deliberar sobre um tema. Caso ele seja procedente, passa a ser legítimo. “Eles começaram a perguntar sobre a minha prática e, como eu tinha toda a argumentação formada, pois pesquisava muito sobre o assunto, acabei convencendo-os de que era religiosamente responsável para escrever a palavra divina.” Mesmo o tribunal não sendo oficial, Rachel recebeu o aval para tornar-se uma escriba. Mas ainda precisava de um documento que legalizasse a sua situação.

Em 2004, Rachel recebeu a programação do Seminário da Argentina, que trazia em sua grade cursos de formação para médicos fazerem circuncisão e de escribas não ortodoxos. Animada, a professora entrou em contato para saber se podia participar do curso. Dois meses depois recebeu o aval. Mas ainda contava com outro empecilho, dinheiro. “O avô de um ex-aluno, se sensibilizou com a minha causa e me patrocinou. O curso era de um ano, mas ele conseguiu que eu fizesse tudo em 20 dias, dez de aula teórica e dez de prática”, diz. No final daquele ano, Rachel recebeu, finalmente, seu diploma. Estava formada a primeira escriba brasileira. Era a legitimação que faltava para que ela ganhasse o mundo.

Com o certificado, Rachel começou a procurar por mulheres escribas. Foi quando deparou-se com o Women’s Torah Project. Desenvolvido por uma norte-americana, que mora em Jerusalém, e patrocinado por uma pequena comunidade judia em Seattle (EUA), o projeto propõe que mulheres escrevam o livro sagrado judeu, a Torá. Rachel foi aceita no grupo e em dezembro de 2005 começou a escrever. A Torá é dividida em cinco partes: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Cabe a Rachel escrever o segundo livro, o Êxodo. O projeto não tem previsão de término, pois além de ser muito caro – deve ser feito com pergaminho de pele de carneiro, tinta vegetal e pena de ganso – , a prática da escrita demora muito. “Trabalho uma vez por semana na Torá e escrevo cerca de 20 linhas por vez, o que me consome seis horas de trabalho. O fato de ser mulher também atrasa o processo, já que o ideal é trabalhar quando me sentir pura. Quando estou menstruada, por exemplo, entro em contato com a não vida e não posso mexer com o sagrado nesse momento. Pelo menos uma semana por mês eu não posso trabalhar na Torá”, explica Rachel.

O objetivo desse projeto é levar o livro para outras comunidades, mostrando o trabalho das mulheres. “Será um pergaminho itinerante que servirá de exemplo para as comunidades que querem discutir o papel da mulher dentro da nossa religião. Junto com a escrita, também existem outros trabalhos realizados só por mulheres, como a interpretação do texto bíblico e ilustrações de textos sagrados”, diz a escriba. Apesar da importância, esse projeto ainda não tem muita repercussão. “Ainda somos poucas mulheres escribas, por isso não temos grande expressão. A maioria nem conhece a nossa luta”, diz. A luta de Rachel é um pequeno passo para mostrar que mudanças podem e devem ser feitas sem medo.


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