Sons da diáspora

Frédéric Thiphagne (à esq.) e Matthieu Hebrard (à dir.), do Goma Gringa, e Samy Ben Redjeb (centro), do Analog Africa, no lançamento do LP da Orchestre Poly-Rythmo de Cotonou (foto: Luiza Sigulem)
Frédéric Thiphagne (à esq.) e Matthieu Hebrard (à dir.), do Goma Gringa, e Samy Ben Redjeb (centro), do Analog Africa, no lançamento do LP da Orchestre Poly-Rythmo de Cotonou (foto: Luiza Sigulem)

Paixão. É o que tem movido pesquisadores de dois selos musicais a revelar joias obscuras da diáspora africana ao redor do mundo. O primeiro deles, brasileiro, chama-se Goma Gringa, em alusão à matéria-prima utilizada nos compactos de 78 rotações, a goma-laca, e às origens estrangeiras de seus donos. O segundo, alemão, atende por Analog Africa. Em uma feliz parceria, as duas gravadoras pavimentam, agora, caminho bilateral que resultará em mais pesquisas e lançamentos nos dois países.

Criado em 2012, por dois franceses radicados no Brasil, Frédéric Thiphagne e Matthieu Hebrard, que também é músico e integra o grupo Quebrante, o Goma Gringa surgiu no mercado da música como importadora, de LPs e compactos. Debutou, como selo, em novembro de 2013, ao lançar uma obra-prima da música nigeriana o LP Sorrow Tears and Blood, de 1971, um dos pontos altos da extensa discografia do compositor e ativista político Fela Kuti – criador do gênero popularizado como afrobeat – e sua big band Afrika 70.

Já o Analog Africa tem mais de uma década de atividades. Foi fundado em 2001 por Samy Ben Redjeb. Nascido em Carthage, na Tunísia, o pesquisador é filho de pai tunisiano e mãe alemã. Na adolescência, também morou na Suécia e na Áustria. Hoje, reside em Frankfurt, na Alemanha. Em 1999, durante viagem ao Zimbabwe à procura de LPs e compactos de artistas locais, Redjeb topou com um álbum do grupo Green Arrows. A descoberta foi o estopim de uma busca incessante por outras gemas da música africana. Pesquisa que o levou, dois anos depois, a abrir o Analog Africa e lançar no mercado europeu uma coletânea do Green Arrows. Hoje, o selo tem um catálogo de dezenas de álbuns, compactos e coletâneas. Obras diversas de artistas vindos de países como Nigéria, Benin, Angola, Burkina Fasso, Etiópia, Guiné-Bissau, entre outros. Saiba mais em analogafrica.bandcamp.com.

A obsessão de Redjeb em mapear a diáspora das matrizes musicais africanas levou o pesquisador a se interessar pela música brasileira – paixão impulsionada pela descoberta da produção dos anos 1960 e 70 de Jorge Ben Jor. Os primeiros contatos com os franceses do Goma Gringa foram feitos em ambiente virtual, por meio do blog Les Main Noires (em tradução livre “as mãos negras”). Criado por Thiphagne, que também é fotógrafo e artista gráfico, o blog mapeia e dedica perfis (o que também possibilita a ele produzir belos retratos) a grandes pesquisadores do Brasil e do mundo.

O encontro real entre Redjeb e Thi­phagne foi marcado por um primeiro trabalho conjunto, em 2013. “No ano passado Fred viajou comigo para Belém, como fotógrafo, para documentar minha pesquisa musical no Pará. Naturalmente, quando soube que ele e Matthieu abriram a Goma Gringa, decidimos somar forças”, recorda Redjeb.

A incursão paraense fez mais do que materializar amizades ensaiadas na internet. O primeiro trabalho de um artista brasileiro no mercado europeu via Analog Africa foi idealizado na viagem a Belém: “Desse grande encontro surgiram dois projetos: uma seleção das melhores faixas do Mestre Cupijó (a coletânea Siriá – Mestre Cupijó e Seu Ritmo, lançada na Europa em 1 de abril); e uma compilação dupla sobre a cena musical paraense dos anos 1970 (chegará às lojas ainda em 2014). A parceria com Samy nos permitirá trazer a música africana no Brasil, mas a música brasileira, por meio da Goma Gringa, também ganhará espaço na cena internacional”, afirma Thiphagne.

A contrapartida à coletânea do Mestre Cupijó é uma compilação de oito temas instrumentais da big band Orchestre Poly-Rythmo de Cotonou, do Benin, um dos principais nomes da cena afro-funk que, nos anos 1970, misturava ritmos locais com o gênero pulsante criado por James Brown. “Graças ao trabalho de pesquisa do Samy, que tem um vasto percurso de construção de acervo (com mais de dez mil títulos), descobrimos novos ritmos e sonoridades africanas. Algo importante para o patrimônio cultural e musical mundial”, acredita Hebrard. Com tiragem exclusiva, de 500 cópias em LP, a coletânea pode ser comprada no portal do selo, goma-gringa.com. As capas foram impressas em um linotipo, com esmero artesanal e cinco diferentes cores. Criado no século 19, o equipamento tipográfico possibilita utilizar em uma mesma linha de impressão fontes de diversos tamanhos.

Em 22 de abril, será lançado em São Paulo o mais novo título do Goma Gringa, um compacto do grupo paulistano Metá Metá com a participação especial do baterista nigeriano Tony Allen, ex-integrante do lendário Afrika 70, de Fela Kuti. O namoro entre Goma Gringa e Analog Africa promete mais: “Além de lançar discos, também planejamos construir formatos diversos de disseminação da música, em eventos culturais, shows e publicações de livros”, antecipa Thiphagne. Com intenções tão nobres como essas, cabe aqui duas expressões pontuais: oxalá e saravá!
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Segredos polirrítmicos da mãe África

Nos últimos anos, com a redescoberta da imponência musical e política do nigeriano Fela Kuti e o reconhecimento do trabalho de big bands, influenciadas por gêneros musicais africanos – como a paulistana Bixiga 70 e a carioca Abayomy Afrobeat Orquestra –, tem crescido o interesse de jovens de todo o País pela música produzida na África. Fenômeno que ressoa até mesmo em capitais como Belém (PA), berço da Zebrabeat Afro-Amazônia Orquestra que, recentemente, fez uma série de ótimos shows em São Paulo. 

Objeto de estudo do musicólogo Marcos Branda Lacerda, a polirritmia dos grupos instrumentais africanos acaba de ganhar um compêndio de dois gêneros nativos do Benim, o Repertório Fon e a Música Bàtá – o país é também a terra natal da Orchestre Poly-Rythmo de Cotonou, big band que acaba de ter lançada por aqui, em LP, sua primeira coletânea.

Doutor em Musicologia Comparada, pela Freie Universität Berlin, Lacerda é especialista em Etnomusicologia. Em viagens ao ocidente do continente africano, ele investigou repertório essencialmente ritualístico de inúmeros grupos musicais, expoentes das culturas iorubá e fon, do Benim, para detalhar seus elementos de estilo e suas diferentes técnicas de concepção. O resultado rico e diverso pode ser conferido em Música Instrumental no Benim – Repertório Fon e Música Bàtá (EdUSP, 280 páginas). Além de apresentar minúcias e transcrições musicais, o livro traz uma compilação, em CD, com 21 temas que evidenciam o quanto a música brasileira foi influenciada por essa produção. Um prato cheio para instrumentistas e amantes da boa música desvendarem os mistérios da mãe África. 

 


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