O encontro de São Paulo com suas grandes vocações

MaioA Virada Cultural chegou à 6ª edição em 2010 e consolidou-se como o principal evento de São Paulo na área de artes, cultura e lazer. Nos dias 15 e 16 de maio, mais de 4 milhões de pessoas curtiram muita música, arte, teatro e outras intervenções artísticas espalhadas pela capital paulista. Confira o relato do repórter da Brasileiros, Marcelo Pinheiro.


Trem das seis: orquestra, salsa e dor de cotoveloAo descer do trem que estaciona na plataforma da estação da Luz, às 18h10, o arranjo da Orquestra Jazz Sinfônica para a canção Je Sais que Tu Sais, do compositor francês Henri Salvador, seduz ouvidos que conduzem os pés de muitos desavisados ao palco instalado ao lado do Parque da Luz. A poucos metros dali, na Praça Júlio Prestes, Barbarito Torres e Ignacio Mazacote, levam fãs de música cubana e do Buena Vista Social Club ao delírio. A Virada Cultural 2010 está apenas começando e nosso primeiro destino é o palco instalado na Rua Vieira de Carvalho.

Chegamos ao Arouche e Arrigo Barnabé (foto) está atrasado. Vai apresentar o show Caixa de Ódio, dedicado ao repertório do mestre da fossa e do rancor Lupicínio Rodrigues. São 19h15 e ele conclui os ajustes finais com os parceiros Paulo Braga e Sérgio Spindola. Ao meu lado, a dona de casa Rosineide de Queirós, de 26 anos, assiste a tudo, cética, e me pergunta: “Moço, esse homem aí que é o cantor?”, apontando para Arrigo. Antecipo que sim e ela me sai com essa: “É… ele até canta bem, mas coitado, nunca vi ele na televisão!”. O show, enfim, tem início. Arrigo alterna melodias formais com os gritos guturais e sarcásticos, peculiares de sua performance vocal, e Rosineide parece confusa. Não entende bem se aquilo é deboche ou um acento natural da canção. Ao final da quarta música, ouve atenta às crônicas amargas de Lupicínio e diverte-se com a hilária performance de Arrigo. Muitas palmas ao fim de cada número. Menos de duas horas de Virada Cultural e tenho uma prova clara de que, mais uma vez, o evento criado pela ex-prefeita Marta Suplicy, no ano de 2005, tem tudo para atingir em cheio o nobre propósito de levar entretenimento de alta qualidade a uma população extremamente carente de informação e lazer.Abandonamos Arrigo destilando as agruras de Lupicínio e descemos até o Bulevar São João, à procura do bruxo Hermeto Pascoal. Hermeto está concluindo sua apresentação e brinda o publico extasiado com um pout pourri que emenda São Paulo Terra da Garoa, de Alvarenga e Ranchinho, com Trem das Onze de Adoniran Barbosa. O público quer mais. Sem nenhum tema na manga, Hermeto põe-se a improvisar scats vocais e pede à plateia que o siga, alternando oitavas e tons. A banda tece uma cama instrumental baseada em um xaxado e Hermeto, visivelmente emocionado, atropela tempos verbais para, de improviso, lançar a frase: “São Paulo é linda, eternamente. Por que não dizer pra toda gente?!”. Imediatamente, une-se a sua voz um coro de quatro, cinco mil pessoas. De arrepiar.As mães da invenção, o bruxo e dois brasas do ritmo

Reunidos em 2002, o The Grande Mothers – Re Invented reúne músicos da formação original do anárquico Mothers of Invention, banda de apoio do genial compositor Frank Zappa. A atração internacional surge no palco do rock da Avenida São João, às 20 horas, e logo de cara recorre a um velho clichê: “Somos da Califórnia e estamos felizes por estar no Brasil, terra das mulheres mais quentes e bonitas do mundo”. Para desconforto de muitos órfãos de Zappa, a apresentação dos Grande Mothers remete a vários outros clichês de um rock muitas vezes desgastado por pretensões excessivamente virtuosas. Zappa foi um músico exímio, mas sua genialidade residia muito mais em sua capacidade criativa e sua argúcia de grande observador da sociedade moderna. Graças a ele, o Mothers of Invention deixou álbuns históricos, como We’re only in it for the money.Mas a Virada Cultural 2010 guarda mais do que simples requentados de tempos áureos. A alguns quarteirões do palco rock é o lendário Nelson Sargento (foto) que se apresenta para uma Praça da República lotada de jovens ansiosos por ouvir as pérolas que o valente Sargento, prestes a completar 86 anos, entoa com a elegância de sempre. Durante os minutos que espreito o palco, a única queixa de Nelson vem quando a máquina de fumaça jorra pela primeira vez seu jato de nuvens pelos quatro cantos: “Fumaça bonitinha, faz parte do espetáculo, mas a garganta de quem canta não aguenta”, lamenta ele. Estamos diante de um imortal da música brasileira e voltamos ao palco Bulevar São João para encontrar outro gigante de nossa música, ironicamente, pouco conhecido em seu próprio país.

Acompanhado da inseparável esposa e parceira musical Flora Purim, e a filha Diana Booker, o baterista e percussionista Airto Moreira (foto) é uma unanimidade. Fora do Brasil, desde 1967, construiu uma carreira invejável, seja dando apoio a músicos do porte de Miles Davis, Herbie Hancock e Quincy Jones, seja compondo e lançando álbuns seminais como Free (1971) e Fingers (1973) – lançados pelo cultuado selo de jazz CTI Records. Airto fez tamanha revolução, que a revista Downbeat – o mais importante veículo de imprensa musical voltado para o jazz – criou uma sessão dedicada à percussão, por conta do reconhecimento da importância de seus trabalhos e a inclusão desses elementos no jazz moderno. Quase cinco décadas atrás, ainda um jovem baterista, Airto pôs as baquetas a serviço de Hermeto, no poderoso combo de samba-jazz Sambrasa Trio. Quase anônimo para a grande multidão que o assistiu, conseguiu impressionar o público, que não arredou o pé dali, após a despedida do alagoano. Airto e Hermeto são dois dos músicos brasileiros com maior tráfego internacional e colocá-los em um mesmo palco, foi, definitivamente, um dos acertos da programação da Virada Cultural 2010. Ao final do show, tive uma breve conversa com Airto, que classificou a apresentação como: “Memorável. Muito bom voltar ao Brasil e a São Paulo, neste momento tão importante para a cidade”.Impressões parciaisA essa altura, o evento ganha contornos de pico de público e as ruas estão entupidas de gente se espreitando e correndo aflita para suas atrações. Em relação aos anos anteriores, é evidente a escolha acertada da organização do evento em pulverizar as atrações para reduzir e otimizar o fluxo de pessoas. No caminho de uma atração para a outra, percebe-se o mesmo cuidado em distribuir as “praças” de alimentação, os banheiros químicos e o aparato policial. A grande baixa da edição 2010 – a ausência do Teatro Municipal na programação, por conta das reformas -, foi evidenciada não só no aspecto físico. Desde 2006, o Teatro Municipal serviu de palco para grandes artistas revisitarem o repertório completo de álbuns históricos de nossa música popular. Quem foi aos eventos anteriores, sabe do que se trata. Em 2007, Jards Macalé refez na íntegra, e com arranjos idênticos, todo o repertório de seu álbum de estreia, de 1972. No mesmo ano, o acreano João Donato extasiou um municipal entupido, ao som de seu A Bad Donato, de 1970. Na última edição, o inquieto Tom Zé foi ainda mais longe. Reinventou seu disco de estreia Liquidação Total, improvisando novas letras ao clássico tropicalista. Abrir mão de uma fórmula de tamanha riqueza não é pouco. Esse um dos pontos baixos desta Virada Cultural 2010.O Bulevar do soul

Às 23 horas, o palco Bulevar São João receberia ninguém menos que Mr. Booker T Jones (fotos), no comando de seu lendário órgão Hammond B-3, envenenado pela caixa Leslie – amplificador feito especialmente para o órgão, dotado de um sistema de hélices rotativas que, comandadas por um pedal, “aceleram” os ataques de solos do instrumento. Booker T subiu ao palco vestindo jeans, uma parca bege, calçando tênis, e vestindo um chapéu preto. Impressiona pela jovialidade. Está prestes a completar 65 anos e podemos facilmente atribuir a ele 20 anos a menos.Contratado, em 1960, para ser um simples músico de estúdio pela Stax Records, gravadora de Memphis, que ao lado da Motown iria revolucionar a música pop anos mais tarde, Booker T Jones, juntou-se a Steve Cropper e Donald “Duck” Dunn – respectivamente, guitarrista e baixista dos Mar-Keys -, ao baterista Al Jackson, e escreveu na história da música americana dos anos 1960 um fascinante capítulo chamado Booker T & The MG’s. Banda de apoio da Stax – que lançaria para o mundo nomes como Ruffus Thomas, Wilson Pickett, Otis Redding, Aretha Franklin e Sam & Dave – o Memphis Group, liderado pelo órgão alucinado de Booker, deu sons e tons ao soul e não teve pudores em fundi-lo com o rock, o blues e o funk, até o ano de 1968, quando Booker decide abandonar o grupo.Três anos depois, ele assinaria a produção de uma das canções mais emblemáticas do gênero, Ain’t no Sunshine, do álbum de estreia de Bill Withers, Just as i am. Ain’t no sunshine fez parte do repertório apresentado por Booker, que ainda empunhou guitarra e revelou sua voz comedida e sublime em outro standard do soul, (Sittin’ on) The Dock of The Bay, parceria de Otis Reding com o genial guitarrista Steve Cropper dos MG’s originais. Otis morreu no auge de sua carreira, em dezembro de 1967 – em um acidente aérero, junto com os sete integrantes do Bar-Keys, sua banda de apoio – e Booker dedicou a canção ao amigo. Ao final do número, abandonou a guitarra e voltou correndo ao órgão para sincronizar o célebre assobio da canção ao sublime timbre do Hammond.

O show passeia por grandes momentos, faixas de Potato Hole, álbum lançado pelo organista em 2009 – onde ele conta com o auxílio luxuoso da guitarra de Neil Young, em dez das quatorze faixas -, e não poderia deixar de fora o clássico Green Onions, tema criado, acidentalmente, em estúdio, que se tornou o maior êxito do Booker T & The MG’s. Cabe dizer que a banda de apoio era uma tanto irregular e que o guitarrista solo deveria ter sido mais dedicado às lições de elegância do eterno rei da Telecaster Steve Cropper, mas esses são pormenores. Não é todo dia que um deus desce do Olimpo e aterrissa em pleno Anhangabaú. Ao final, consigo uma breve nota de Booker, sobre suas impressões do show: “É nossa primeira vez no Brasil e estou muito feliz. A recepção foi surpreendente, uma boa surpresa para nós”.Impressões finaisSigo a esmo caminhando por ruas e esquinas, até as 2 horas, acompanhando a cobertura fotográfica da colega Luiza Sigulem, e passeamos por vários palcos, observando atrações menores, performances inusitadas, artistas de rua, hippies tardios vendendo artesanato, jovens embriagados de vinho barato. Recordo o evento anterior e me lembro da chuva, que fez com que a sujeira produzida pelos mais de 4 milhões de visitantes se tornasse ainda mais abjeta. Reitero minhas convicções de que esta foi uma das melhores edições do evento. Ao voltar para a estação São Bento, observo, em frente à Praça do Correio, o enorme balão multicolorido, que mantém trapezistas suspensos, não decola, mas faz com que todos nós voemos longe e sonhemos com um dia em que São Paulo assumirá sua vocação e será esta mesma cidade todos os fins de semana. Um dia em que esse encontro acolhedor da cidade e seus moradores será parte de nosso cotidiano.

Uma saída para a canção


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