Com um videoclipe de 11 segundos, Olho Torto, passando na MTV Brasil, e o novo disco elogiado pela crítica especializada, a banda punk Pastel de Miolos, de Salvador (BA), colhe o sucesso de 15 anos de estrada. O vocalista e guitarrista do trio, Alisson Lima, também é professor da rede pública de ensino e toca outro projeto musical, Macabéa, em que homenageia os escritores Clarice Lispector e Malba Tahan. A Brasileiros conversou com Alisson em sua casa, no centro de Lauro de Freitas, região metropolitana de Salvador, em um sábado ensolarado.
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“Eu era um garoto tímido; mas Charles Bukowski me ajudou muito”, confessa de repente Alisson Lima, 32. Então, ele suspira, enche o peito e apruma a espinha para subir a ladeira. Estamos nas entranhas da Estrada do Coco, principal avenida de uma cidade cada vez mais cinza, Lauro de Freitas, na região metropolitana de Salvador.
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Poesia em três acordes
Sol a pino, calor insuportável e ainda a ladeira íngreme, mas Alisson não se importa com nada: usa uma camiseta de azul denso, quase preto, com estampa de caveira e dizeres não tão afáveis quanto o das propagandas dos novos condomínios residenciais que se espalham por toda a parte.
A camiseta diz “Pastel de Miolos – Da escravidão ao salário mínimo”, em letras grandes, ao redor da caveira: é o símbolo da transformação de um menino que se escondia atrás de livros de poesia no frontman gutural de uma banda punk.
O nome esquisito do grupo, Pastel de Miolos, celebra as influências – Mukeka di Rato, por exemplo, outro prato bem saboroso do gênero musical. Da Escravidão ao Salário Mínimo (2010) é o título do novo trabalho, produzido por Jera Cravo.
A banda de Alisson, Alex e Wilson faz um punk rock da Bahia, do Nordeste, do Brasil. Tem 15 anos de estrada, dezenas de hits, clipe de 11 segundos na MTV e cada vez mais fãs. Ainda assim, o trio tem de trabalhar em outras atividades, pois não estão nem perto do status de rock star.
Na prática, o esquema é muito ligado ao lema punk do “faça você mesmo”. “Existem vários conceitos de sucesso. Para mim, eu faço sucesso”, diz Alisson, que trabalha como professor e vice-diretor em escolas da rede pública de ensino.
Crítica do sistema
Como toda a obra da banda, o novo disco da Pastel de Miolos trata do dia a dia do brasileiro – uma rotina de luta, em um contexto de desigualdades, violência, humilhação, opressão, ilusão. E ainda há espaço para dilemas universais: “O tempo morreu/para quem não encontra tempo/para viver”.
As letras são diretas, sintéticas. Boa parte delas nasce da verve de Alisson Lima. Outra parte vem do baixista Alex Costa, que também compõe. Dessas fontes resultam também riffs invocados e rápidos, que martelam na cabeça, principalmente quando presenciados ao vivo, com o baterista Wilson fechando a veia punk do power trio.
Alisson se orgulha do lema “Resistir, protestar e sobreviver”, uma das marcas da banda. O refrão nasceu a partir da música Protest to Survive, da The Varukers, grupo da segunda geração do punk inglês.
Drummond
Formado em Letras, o compositor passou quatro anos trabalhando na biblioteca municipal de Lauro de Freitas quando era adolescente, em um projeto da prefeitura. Do contato com os livros, veio a paixão pela poesia. “Parece clichê dizer isso, mas eu adoro Drummond”, diz ele, já na sombra da varanda de sua casa.
Uma série de roupas secam em cordas estendidas no pátio e nas laterais. Uma mulher canta um brega romântico na vizinhança, enquanto esfrega o chão.
É sábado, dia de faxina. No varal, tem roupa de neném. Alisson acaba de se tornar pai e seus olhos se umedecem quando toma a filhinha no colo, encantado com o milagre da vida, ao som de Ursinho Pimpão.
E, enquanto ele fala, um sino dos ventos canta notas agudas, quase orientais, ali na varanda. Sim, sim, é ele mesmo, o cara que grita seu punk rock com uma careta de assustar burguês e bicho-papão, perante milhares de pessoas, em festivais como o Nordeste Independente ou o Big Bands, em Salvador.
Aprendizado
Alisson é professor e aluno ao mesmo tempo, diz que tudo o que lê, tudo o que ouve, serve de ensinamento. Assim conheceu os Beatles, por exemplo. De tanto gostar da música Twist and Shout, trilha sonora de um filme da sessão da tarde, foi atrás da fita cassete, e então se apaixonou pelo repertório do álbum Please Please Me.
Tinha 11 anos de idade. Depois vieram Legião Urbana, Raul Seixas, as revistinhas para violão, e Alisson passou a trabalhar na biblioteca municipal como adolescente aprendiz. Daí para começar a escrever cantar, foi uma questão de tempo.
Com apoio do pai e o próprio salário, comprou a primeira guitarra, uma Tonante (“o braço é quase um cabo de enxada”), e montou uma banda de cover com um baterista que improvisava o básico em um conjunto com tarol e surdo, e um baixista em cujo instrumento faltava a corda mais aguda.
Na época, Alisson era apenas “o irmãozinho de Alberto”, o mais velho dos três filhos do casal formado por uma professora e um funcionário da empresa de saneamento da Bahia.
Ele era o mais novo, mas já sabia tocar discos inteiros do Ramones, com o que fazia sucesso entre os amigos da escola. De repente, já estava à procura de um baterista para tocar com ele em sua primeira apresentação, durante um festival de rock de Salvador, o troféu Puã.
Wilson Santana, amigo do irmão mais velho, não só topou o convite como indicou a Alisson uma série de bandas de som mais primitivo, digamos assim. “Eu ia até o quartinho dele ensaiar e voltava para casa cheio de discos para ouvir”, conta Alisson. Foram as primeiras influências básicas da estética da Pastel de Miolos, os grandes clássicos do punk e do hardcore.
Com a chegada do contrabaixista e compositor Alex Costa, o trio começou a trabalhar e logo já estava cheio de fãs, que frequentavam os ensaios e subiram no palco do primeiro show para dançar. Já faz 15 anos e a formação da banda continua a mesma. Mas, claro, alguma coisa mudou.
Refinamento
Nas 24 faixas do novo disco, o punk mais gutural dá espaço para ska, riffs e ritmos menos martelados e influências menos óbvias, como Radiohead. É um refinamento dos arranjos e das estruturas musicais, que resulta do amadurecimento conquistado ano após ano pela banda, e da parceria com o produtor Jera Cravo.
“Noventa e nove por cento das letras da banda são politizadas e, no entanto, o Alisson é um cara especialmente calmo, o que é um feito, uma qualidade rara de se ver”, conta Jera, que também trabalhou com o trio em Nova Utopia (2010) e Ciranda (2009), lançados apenas virtualmente, e no videoclipe de onze segundos Olho Torto (2010), no YouTube e na MTV Brasil.
Com essa calma produtiva, Alisson demonstra uma criatividade imensa. Na sala de aula, por exemplo, estimula seus alunos a estudarem literatura a partir da análise de personagens de novelas, uma atitude bem à Paulo Freire.
Outra idiossincrasia: gosta da exercitar o lema “tirar o máximo do mínimo”, ensaiando ao lado de músicos iniciantes, músicos de fim de semana. Assim, é obrigado a tocar bem e a aproveitar as possibilidades de cada configuração.
Foi no tempo investido em uma dessas bandas com amigos que nasceu um projeto solo, batizado de Macabéa, em homenagem à personagem de A Hora da Estrela (1977), o último romance escrito por Clarice Lispector.
Macabéa é uma retirante nordestina no Rio de Janeiro, não tem voz, nem brilho, trabalha como datilógrafa, tem uma vida sem sentido. Morre atropelada. No primeiro disco do projeto, Alisson canta essa condição humana, já na primeira música: “Talvez lá, eu seja alguém/o silêncio me leva/me levará”.
Com declarada influência pós-punk e uma sonoridade etérea, o álbum leva o longo título Onde os tigres vão bramir suas angústias numa noite quente de verão, uma homenagem de Alisson a outro escritor, Malba Tahan, autor de O Homem que Calculava. Tahan, na verdade, era o pseudônimo do professor de matemática Julio Cesar de Mello e Souza.
No primeiro álbum, tem uma balada amorosa, uma canção sombria e possíveis pérolas do rock nacional. O projeto está na iminência de chegar ao segundo disco.
Nas gravações, Alisson toca todos os instrumentos, menos bateria. Domina o violão, a guitarra, o baixo – e teve de “aprender a cantar”, já que com a Pastel de Miolos, o vocal é quase sempre berrado. Em Macabéa, a garganta do moço solta uma voz mais melodiosa e limpa, cheia de efeitos de reverberação no microfone, com alguma herança de Pixies e The Smiths.
Agora, afinal, Alisson não é mais nem um pouco tímido, nem para gritar, nem para fazer uma balada, ou o som que quiser. Isso é sucesso. Isso é de fazer todas macabéas gritarem e dançarem. Isso é de fritar os miolos. Valeu, Bukowski!
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