O professor e crítico literário Lourival Holanda escreve no posfácio do primeiro livro de poesias de Samarone, o duplo A Praça Azul & Tempo de Vidro (Editora Paés, 2012): “Na agreste figura dele, a poesia surpreende como a floração de um mandacaru… O poema de Samarone vai na contramão do consensual e, porque um hino à memória, guarda o mel dos momentos mágicos num processo de retenção sem pressa… E assim o poeta reconstrói sua delicada geometria de esplendores…”.
Sama nasceu, em 1969, no Crato (CE), mas desde 1987 vive em Recife. Tem trabalhado em diferentes projetos literários, como os livros-reportagem Zé (1998) e Clamor (2003), que estão sendo adaptados para cinema, e os livros de crônicas Estuário (1995) e Trilogia das Cores (2013). Só recentemente passou a publicar sua obra poética. Seu livro mais recente é O Aquário Desenterrado (Editora Confraria do Vento, 2014). Samarone recebeu a Brasileiros em uma livraria em Recife, onde batemos o papo a seguir.
Brasileiros – Fazer poesia é um ato político?
Samarone Lima – A literatura é sempre um ato político. E, se for sutil, abre mais espaços em pensamentos fechados. A palavra sempre me abriu caminhos. Como sempre publiquei muito as crônicas no meu blog (estuario.com.br), a quantidade de leitores era enorme. Fui publicando os poemas de forma quase clandestina em outro blog (quemerospoemas.blogspot.com). Era um problema existencial. De um lado, eu não queria muito mostrar os poemas. De outro, me lamentava ser conhecido apenas como cronista, jornalista. O fato de um leitor ter me encontrado e instigado a mostrar a poesia foi determinante. Devo isso ao amigo Arsênio Meira Jr., grande amante e conhecedor de poesia.
Brasileiros – Um de seus temas é a solidão na infância, a adolescência, as…
S.L. – … As muitas coisas. A solidão da infância, as dezenas de casas onde vivi, do Crato, no Ceará, passando pelo Maranhão, depois Fortaleza, Recife, São Paulo. Tentei apenas decifrar meu mundo de forma poética. A poesia pode também ser memorialista, mas não tem uma linha reta como na prosa.
Brasileiros – Você tem um memorial poético bem exposto na sua poesia… mãe, primos, etc.
S.L. – No meu primeiro livro duplo, temos as duas vertentes. A Praça Azul traz poemas soltos, com aparições da memória. Em Tempo de Vidro, fiz uma espécie de ritual da memória, indo aos antepassados, passando por mim, chegando novamente aos velhos. Em O Aquário Desenterrado, deixei que tudo viesse da forma mais pura, aberta. Cito nomes de tios, falo dos primos, do meu pai, dos irmãos. Me senti muito bem acompanhado. Nós e nossas dores, alegrias, fracassos, como uma grande constelação.
Brasileiros – O poeta tem o que se chama inspiração ou essa é uma palavra oca?
S.L. – Acredito que tenho, sim, dias mais inspirados. A escrita sai quase de uma fonte cristalina, basta se agachar, juntar as mãos e beber dela. Mas há dias duros, de luta mesmo, de frio, cansaço, solidão. Neste caso, recorro aos diários. Tenho dezenas de cadernos, que sempre me trazem alguma surpresa, uma frase, um tema. Cadernos velhos são meus fertilizantes.
Brasileiros – Quais autores brasileiros são para você um ponto de partida ou de chegada?
S.L. – Sendo meio óbvio, Murilo Mendes e Jorge de Lima. Mas tenho minha ramificação poética com outras fronteiras. Roberto Juarroz e Juan Gelman (argentinos), T.S. Eliot (norte-americano/inglês) e o abismo que é o Vicente Huidobro (chileno).
Brasileiros – Você tem uma relação mística, sagrada, com o exercício da poesia?
S.L. – Sim, creio, porque a palavra, em sua raiz original, tem o sagrado e o dom. Eu realmente trato a poesia como algo sagrado. O dom é outro aspecto, que tem o mistério rondando. Nunca sei de onde um poema vem, nem para onde vai. Tento esse exercício da poesia com as coisas cotidianas, os sobressaltos, impasses, desenganos, frustrações. Não é por acaso que meus parentes são personagens de vários poemas, eu mesmo apareço e me deixo desnudar. Vou construindo uma poesia que sirva para dar conta da minha vida, mas tentando ir sempre ao encontro do leitor.
Brasileiros – E qual seria uma definição de poesia para você?
S.L. – Poesia, para mim, é o descolamento silencioso, rastejante da palavra em relação ao objeto contemplado. Um descolamento da palavra de seu significado habitual. Eu busco essa renúncia. Não apenas para sentir-me completo, mas também para conservar a tradição milenar de entender a poesia como uma espécie de música quase silenciosa. Uma melodia às avessas. Como diz um poeta que me é caro, o argentino Roberto Juarroz, a poesia é um “visionária e arriscada tentativa” de levar o homem ao espaço do impossível, que às vezes se parece também com o espaço do indizível. É meu testemunho, minha obsessão. De novo Juarroz: “Uma peregrinação de meu destino através da linguagem”.
Brasileiros – Você vê seus versos pelo buraco da fechadura, como diria Nelson Rodrigues?
S.L. – Meus versos não são próprios (exceto um ou outro) para serem lidos em voz alta (não cabem na “declamação” porque isso guarda um elemento teatral). Há algo de contido, até porque tinha uma timidez assombrosa em mostrá-los. Quem me salvou do anonimato poético foi o amigo Arsênio Meira Jr., que fez uma seleção do primeiro lote que publiquei silenciosamente na internet (quemerospoemas.blogspot.co). É um despojamento, um desnudamento. Já tive oportunidade de fazer algumas raras leituras, mas prefiro em voz baixa, quase um sussurro, até porque me emociono quando vou ler. Essa emoção que me leva ao engasgo, é o que tento levar ao leitor. A poesia que me comove e que tento escrever se move pela completude amorosa, compreendendo, sobretudo, a memória e o exílio das minhas desarmonias, que são muitas.
Poema inédito
Manual de espera e solidão
Como no silêncio sem rastros
De um animal desvairado
Com seu cheiro difícil de esquecer
de tão próximo.
Ou como o espaço que lhe damos
Entre os ossos
Dessa ausência doentia
De tudo o que se quer.
Como se aquilo que se perde
Não virasse outro abismo –
O de ter sido.
E mesmo assim, se promulga a voz
Do absoluto desejo.
Tão imaculado, tão limpo, tão puro
Que sequer precisa de um nome
Para saber-se vivo.
Brasileiros – A relação entre prosa e poesia?
S.L. – Bem, enquanto a prosa tem um sentido lógico, definível, a poesia é alógica, evoca sentidos vários, não tem medida, exceto aquela que enxergamos. Talvez por isso os meus versos tenham demorado tanto a serem publicados. Eu desejava que eles tivessem a força de um filho há muito esperado, e que depois segue seu caminho. Eles ainda são muito duros, mas até a dureza tem algo de contido. A Praça Azul & Tempo de Vidro foi o livro possível, mas que resultou em uma espécie de alívio. Fiz minha inauguração. No final de 2013, veio O Aquário Desenterrado. Vi que estava com a alma mais livre, que podia dizer de forma mais intensa o que me era caro. As minhas contradições, memórias, minha vida feitas de tantas casas, tantas cidades, vivências. Um desaprumo que a poesia me possibilita refazer. Desejo apenas seguir nesta jornada pela poesia, sem nenhuma pressa.
Brasileiros – A busca pela completude amorosa é a qualquer preço?
S.L. – Não. Há condições. Logo no primeiro poema de O Tempo de Vidro, isso soa claro, como neste trecho: “Quando voltei/Aos seios de minha mãe/Morri de sede./Minha parte no mundo/Era destinada ao desconhecido/Que sempre fui”. Isso não é nem uma introdução de poema, isso é uma recomendação a mim mesmo. Lá, já nas origens, tudo se configurava. No meio do espanto, me vi escrevendo cada vez mais poesias, fazendo um diário de minha própria trajetória, tentando me reconhecer e me perdoar. Não sei se consegui, porque o perdão é uma tarefa para a vida inteira.
Todo poema tem a missão de provocar no leitor algo que o incomode, que o faça compreender, ou mesmo se perder, pois afinal de contas, perder-se também requer um roteiro, um caminho, um mapa necessário para subirmos novamente a montanha. Como diz Juarroz: “A poesia é o maior realismo possível”. Ela salta o nome das coisas, para nomeá-las de outra maneira. Desnorteia. Puxa o tapete, escancara o coração. Deve nos fazer pensar. Não lembro agora o autor de uma frase belíssima (não sei se foi o Jean Cocteau), que perguntou o seguinte: “– Se sua casa estivesse pegando fogo, o que você salvaria primeiro?”. Eis a resposta: “– O fogo”. Assim entendo e vivo a poesia. Uma urgência enlaçada pela afeição desesperada.
*Arsênio Meira de Vasconcellos Junior é bacharel em Direito, ocupa um cargo público e é um viciado em poesia e incentivador da poesia brasileira.
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