Haroldo intergaláctico

Leitor desse horizonte provável, aguerrido a essa São Paulo que tristemente rui com requintes de luxo aos olhos cidadãos, vasculhando esse saco de cidade, sempre uma pérola nos espera para nos manter despertos às novas jornadas: Ocupação Haroldo de Campos – H LÁXIA está montada pelo Instituto Itaú Cultural, em parceria com A Casa das Rosas – Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura. Abertas suas portas ao público no dia 17 de fevereiro para fechá-las no dia 10 de abril – nos dois espaços sobreditos, promovedores e vizinhos.
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O precioso, brilhante, peso da pedra que se distingue, tornando-se inestimável, reside tão significativamente no poeta, tradutor, ensaísta e professor Haroldo de Campos. Cabe aqui a tarefa (in)digna de ler, ver e ouvir, para poder sentir qual sítio, qual morada foi projetada ao poeta que “nasce morre nasce”, e revisitar com a mente as relações propostas pela Ocupação.

Qualquer montagem expositiva de artistas, sejam esses quais forem, deveria primar pelo princípio fundamental da reflexão total e irrestrita do processo criativo ou mesmo recriativo, do artista em questão. Partido disso, assumindo no espírito as razões de revelar a obra de determinado artista, os curadores certamente se deparam com um novo mundo, tão amplo quanto o artista e podem, finalmente, fazer as relações. Haroldo de Campos foi um homem “verbivocovisual”, para usar a expressão de James Joyce. A dimensão verbal, naturalmente, configura-se como o aspecto de maior cuidado e operação por esse poeta que manejou e assimilou o verso a tal nível que resolveu por empreender sua superação, ampliando à palavra, à frase, ao poema, uma problemática de escala e semântica impressas no papel. Uma formulação revolucionária e precisa ao constrita a uma determinada fase do poeta.

Se, já em 1962, Haroldo começa a escrever seu livro Galáxias, revelando a especificidade barroca ulterior ao seu desenvolvimento poético, não se atesta assim, como uma visada tacanha poderia concluir, que os ditames de princípio apresentados pela poesia concreta estariam sendo expurgados pelo poeta. Pelo contrário, a máxima “forma é conteúdo” sintetizada pelos poetas concretos (Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari) aparece em outra formulação expressa por Haroldo, neste dito período pós-1962, que “toda grande poesia é concreta”. Charada matada. O barroco de Haroldo é um espelho da poesia concreta. Está contido em seu reflexo impresso o processo concreto por um procedimento barroco.

Passando então em revista a montagem da Ocupação, fica claro que o desenho do túnel em espiral, visualizado pelo (autointitulado) decompositor Lívio Tragtenberg, é uma síntese maravilhosa – porém, aparentemente mal resolvida pela produção que estabeleceu espelhos recortados e imagens audiovisuais alheias – da ideia de elipse na escritura do Galáxias. Um livro que é uma aventura planificada ao desconhecido poético, uma verificação experimental das fronteiras entre prosa e poesia. No cerne dessa espiral, protegido como no interior da caixa-casca de um caracol, está a seção Marginálias, na qual foram recolhidos recortes de jornais arquivados pelo poeta durante toda a sua vida. São trechos de filmes em que sua poesia é inspiração de roteiro ou ainda que Haroldo participa como ator, livros com as famosas, fulgurantes e recheadas anotações nas margens – daí o nome da seção. Por fim, há a possibilidade de conhecer algumas gravações das oralizações feitas pelo poeta de seus poemas, assim como de outros poetas, com atenção especial para a encantatória gravação do poeta Octavio Paz, e seu ritmo e prosódia próprios ao espanhol mexicano, seguida das traduções (transcriações) vertidas para o português por Haroldo de Campos. Esta é parte da Ocupação erguida no piso térreo do Itaú Cultural.

Na Casa das Rosas – interessante tomada, inédita, de novas fronteiras e espaços para além dos limites do Itaú Cultural -, logo à entrada do jardim da antiga mansão da Avenida Paulista, em triângulos dispostos pelo passeio, percorre-se o poema Servidão de Passagem. A posição incômoda de ler suas páginas-triângulos no chão parece estranha à própria razão do poema, que trata de um tema humano e político. Nessa passagem, parece que o público é servil ao poema – uma inversão, se pensarmos que foi justamente a poesia concreta que introjetou as conquistas tipográficas e o design à poesia brasileira (e internacional).

No interior da Casa das Rosas estão expostos fatos da vida, fotos, uma certa moldura à vida de um homem que as ultrapassa, atravessa. Mas há aqui, sim, dois pontos altos dessa Ocupação: a sala escura que expõe, como no original, páginas pretas e impressão das letras em branco da série do poema âmago do ômega. A iluminação é produzida pela luz-negra, fazendo com que as letras em branco reluzam quais estrelas, algumas páginas mais intensas, outras menos, e Haroldo onipresente com sua oralização magistral do poema. Ainda uma projeção de vídeo na parede/página frontal revela quadrados-pixels com as cores RGB. Fica a sensação que essa sala é a solução exata para a apresentação do poema para um grande público. Finalmente, sobe-se a escada e em um canto estão pregadas duas versões do poema Um Lance de Dados, de Mallarmé, uma em francês outra em português. Trata-se da abertura do processo de tradução desse poema empreendido por Haroldo de Campos. O poema sendo traduzido como diagrama, como planta arquitetônica. Não há páginas mas uma única e as anotações a lápis que designam o espaço.

Em uma visada geral, deve-se destacar o aspecto sonoro da Ocupação, provavelmente pela atenção desse aspecto privilegiado por Lívio Tragtenberg, um dos curadores. Calando aqueles que ainda insistem em compactuar com certas formulações falaciosas de que um poema concreto é impossível de ser oralizado. Gente que não consegue cantarolar estrelas e letras e que, no fundo, não ouve as sempre surpresas flores da fala. Tudo dito, nada feito: somente visitando a Ocupação e a poesia de Haroldo de Campos para se tirar opiniões próprias e reflexões novas – por comparação, amor e contraste. Visitem.

Viva, Augusto!


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