[79 de 100] O espírito libertário dos livros, segundo B. Traven

travenAssim como grandes autores de seu tempo – como Jack London (1876-1916) e Joseph Conrad (1857-9124), entre outros –, o misterioso Bruno Traven (1882-1969), o B. Traven, era um escritor politicamente engajado, daqueles que se importavam profundamente com a exploração do trabalho e com as injustiças contra pessoas comuns. Sua biografia é um caso singular na história da literatura contemporânea, pelo desconhecido que cerca sua trajetória. Da origem – local, ano de nascimento e nomes dos pais – ao estilo de vida que teve e até mesmo os motivos que o levaram a manter uma vida às escondidas, apesar da reputação que a literatura lhe deu. A melhor definição que lhe deram foi “o fantasma que escrevia livros”. Investigadores garantem há décadas que sua identidade é um desses três nomes: Ret Marut, Traven Torsvan ou Hal Crove. Será?

O pesquisador alemão Karl Guthke, que viajou para o México e conseguiu visitar a casa e “arquivo” de B. Traven depois de sua morte, citou uma passagem do diário do escritor de 26 de julho de 1924, em que ele disse: “Marut está morto”, em uma referência a si mesmo, como se estivesse renascendo com nova identidade. E, nos anos seguintes a seu falecimento, fez uma série de entrevistas com a viúva, Rosa Elena Lujan, quando ela teria revelado ter sido ele ”Ret Marut, o anarquista bávaro”, que existiu de fato. Sabe-se que, como membro fundador do governo revolucionário da breve República Soviética da Baviera, depois de escapar da execução em 1919, Marut desapareceu completamente. Muitos estudiosos de sua obra acreditam que ele fugiu para o México e se escondeu por meio de pseudônimos. Desde então, portanto, teria se tornado um produtivo escritor de romances de aventura consagrados pela critica.

Mesmo assim, passado quase meio século da morte de B. Traven, ainda não foi possível esclarecer a sua identidade de modo incontestável. Dentro das probabilidades mais aceitáveis, ele teria vindo ao mundo no ano de 1882, na Polônia. Na infância, não se dava bem com os pais, adotivos, os Feige, que, talvez, seja o seu verdadeiro nome. Há quem aposte que ele nasceu em 1890, na cidade americana de Chicago, filho de pais escandinavos (Torsvan), que retornaram para a Alemanha depois de alguns anos. Existem especulações de que o escritor tenha usado dois pseudônimos até 1924, ​Maurhut e Marut, nas primeiras histórias que escreveu quando vivia na Alemanha, onde realizou várias atividades coordenadas por grupos anarquistas. Sabe-se que, em 1925, já vivia no México e, ali, passou a usar o nome de Bruno Traven. Nesse sentido, sobreviveu uma carta que enviou a seu editor alemão, naquele ano, em que afirmou: “Eu escrevo em Inglês e eu mesmo traduzi para ser publicado na Alemanha, um país onde a atividade literária goza de grande liberdade, enquanto que, na América, eu seria um autor dos mais censurados”.

Qual, enfim, a razão para Traven esconder a identidade? Ele sempre insistiu que a sua história de vida era irrelevante e que um autor deve ser julgado exclusivamente pela obra e não pelos aspectos físicos ou por suas excentricidades, preferências ou antipatias: “Esqueçam o homem! Escrevam sobre seus livros!”. Uma corrente acredita que, como acontece com a maioria dos escritores de ficção, sua vida foi contada (pelo menos parcialmente) em seus romances, e era desse modo que preferia que falassem dele. E.R. Hagemann, um de seus biógrafos, definiu-o como “um homem que aparentemente cortejou a obscuridade como outro teria cortejado a fama e a notoriedade; e cortejou o esquecimento com uma intensidade quase patológica”. Traven foi, indiscutivelmente, um defensor obsessivo de sua privacidade e de sua identidade. Tanto que enganava intencionalmente seus fãs e aqueles que se esforçavam para “desmascará-lo”.

Foi-se o homem. A obra permanece mais viva que nunca, apesar de quase ignorada no Brasil. Quatro livros seus foram lançados no país. Os três primeiros, na década de 1960, com o selo da badalada e hoje mitológica editora Civilização Brasileira: “O Tesouro de Sierra Madre”, “A Rebelião dos Torturados” e “O Barco da Morte”. O mais recente, pela Conrad, foi “O Visitante Noturno”, publicado em 2008. O primeiro, claro, é o mais famoso, e foi levado ao cinema em 1948, pelo diretor John Huston, com Humphrey Bogart (1999-1957) no papel principal, o que ajudou muito a popularizá-lo em todo o mundo. Os demais, entretanto, caíram no limbo, embora sejam, indiscutivelmente, escritos acima da média, para não dizer excepcionais. E têm em comum o espírito libertário do autor e suas críticas anti-imperialistas, de caráter socialista, a partir de um nível literário notável, apesar dele usar, na maioria dos casos, um modelo narrativo populista, segundo seus críticos, principalmente aqueles de postura mais conservadora.

O magistral “O Barco da Morte”, de 1926, em especial, merece uma atenção à parte. A obra é uma exceção no seu conjunto de livros cujas histórias se passam no universo latino-americano, com ênfase nos índios e nos povos brancos explorados pelos colonizadores europeus – mas que fizeram grande sucesso no mundo anglo-saxão. “O Barco da Morte” tem como subtítulo “A História de um Marinheiro Americano”, a trama é ambientada na Europa e conta a história de um jovem marinheiro forçado a enfrentar o destino inesperado em um mundo que o rejeita por causa da falta de documentos e de identidade. Portanto, torna-se uma vítima da burocracia de um Estado opressor e implacável. O romance, dividido em três “livros”, faz parte da galeria de clássicos ambientados em alto mar que consagraram, além de London e Conrad, Edgar Allan Poe (1809-1949), Herman Melville (1819-1891) e Robert Louis Stevenson (1850-1894), entre outros.

O protagonista e narrador é um marinheiro raso norte-americano, servente de convés, que, após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), perde o navio onde trabalha, o luxuoso Tuscaloosa, e fica preso na Antuérpia, sem passaporte ou qualquer outro documento e, para complicar ainda mais sua vida, sem dinheiro. Empurrado de um país para outro, pois ninguém quer abrigar um apátrida, ele acaba por encontrar emprego e suposta salvação em um navio, o Yorikke, que o levará para casa. Não faz ideia que seu pesadelo, de fato, está apenas começando. Descrito como uma bacia velha, imunda e perigosa, o barco traz uma população de desgarrados e miseráveis, homens sem eira nem beira, desesperançados de todo tipo, idades e origens, dispostos a toparem qualquer empreitada para apenas continuar vivos. Ao protagonista é determinado alimentar as caldeiras, instaladas em lugar insalubre, quente, uma espécie de inferno. E ali ele se vê preso novamente e sem possibilidade de escapar.

Assim, como observou seu editor brasileiro, Ênio Silveira (1925-1996), da Civilização Brasileira, o grande mundo era hostil ao narrador do romance e seu pequeno mundo uma tragédia insuportável. Esse é o mote para Traven tratar com sensibilidade problemas fundamentais da existência humana e da opressão do poder contra os mais fracos e desventurados. Pelas dificuldades e pela condição inquietante em que o personagem se vê, a história remete ao que Franz Kafka (1883-1924) fez em “O Processo”, publicado postumamente em 1925. Na história do autor tcheco, o pacato cidadão Josef K. acorda certa manhã, e, sem motivo aparente, é preso e sujeito a longo e incompreensível processo por um crime não revelado. Uma ressalva aqui se faz necessária: houve apenas um ano de diferença entre os lançamentos dos dois livros, o que deixa clara uma simples coincidência, pois, certamente, quando a obra de Kafka saiu, Traven ou tinha concluído seu romance ou estava perto disso.

O propósito de politizar a história se dá desde o seu início, quando o marinheiro descreve a diferença positiva de um grande e moderno navio americano e os demais, que costumam levar tripulantes em condições desumanas, tratados como “porcos” em seus porões. Para Silveira, Traven criou em “O Barco da Morte” um estudo clássico da miséria humana, “em uma trama amarga, dura e crua”. Não é, porém, um texto fatalista. Como os grandes romances de todos os tempos, ele explora o conceito do herói para mostrar que o homem tem dentro de si mesmo, por mais que ignore, as sementes de sua imperecível grandeza. Assim, tanta miséria faz com que seu anti-herói busque formas de se superar e renascer. Por isso, seu livro se volta para a essência do homem, em uma grande aventura, de leitura apaixonante.


Comentários

Uma resposta para “[79 de 100] O espírito libertário dos livros, segundo B. Traven”

  1. Avatar de Luciano Ribeiro
    Luciano Ribeiro

    Livro muito bom !!!! Minha irmã quando estudava Letras na USP, salvou um exemplar que iria ser jogado fora e me emprestou. Ri, reli e é claro não devolvi….. abraços.

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