Retrato do abismo

O Matriarcado de pindorama sucumbe à dança estatal das motosserras do andrógino fálico presencial, Thiago Martins de Melo, 2012. óleo sobre tela, 260 x 360 cm
O Matriarcado de pindorama sucumbe à dança estatal das motosserras do andrógino fálico presencial, Thiago Martins de Melo, 2012. óleo sobre tela, 260 x 360 cm

Espelho Cego, obra de 1970 de Cildo Meireles, é composta por um desses armarinhos de banheiro que, no lugar do espelho, possui uma área acinzentada, como a apontar para a impossibilidade de alguém nele se reconhecer. Essa metáfora da discrepância entre a produção de arte contemporânea e a realidade brasileira faz parte da mostra Cães sem Plumas, organizada pelo curador pernambucano Moacir dos Anjos.

Assim, ao focar em artistas que falam do real, a mostra acaba criando um diagnóstico do quão pouco essa questão vem sendo abordada no País. A exposição, que teve uma primeira versão reduzida na Galeria Nara Roesler, no ano passado, em São Paulo, acontece agora no Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães, o MAMAM, na capital pernambucana, em parceria com a Fundação Joaquim Nabuco. Ela faz parte de um projeto de pesquisa desenvolvido pelo curador, na fundação sediada em Recife, sobre a capacidade ou não da arte contemporânea produzida no País em “representar situações de despossessão a que parcelas da população do Brasil são historicamente submetidas”.

Terra Dada, João Castilho, 2012-2013. impressão em jato de tinta, 80 x 240 cm
Terra Dada, João Castilho, 2012-2013. impressão em jato de tinta, 80 x 240 cm

Contudo, ao tematizar algo tão óbvio, como a desigualdade social, ao mesmo tempo tão ausente em museus, feiras e galerias, Moacir dos Anjos acaba revelando uma profunda alienação da produção atual. Na abertura de um ciclo de debates, organizado em torno da mostra, no MAMAM, o curador afirmou que essa produção ignora “a gravidade dessas situações de exclusão não ser atenuada pelas transformações econômicas e sociais em curso no Brasil na última década e meia”.

Um exemplo da manutenção dessa marginalização pode ser observado na situação dos índios, em dois momentos da mostra. Primeiro, quando retratados por Claudia Andujar, nos anos 1970 e 1980, representados na mostra pela série Malencontro, sobre as doenças decorrentes do encontro com os “civilizados”. O segundo momento, no vídeo de Armando Queiroz, Ymá Nhandehetama (Antigamente Fomos Muitos), de 2009, um contundente testemunho sobre a opressão atual.

Assim, índios, loucos, negros, presidiários e campo­neses, possivelmente a maioria do País, são os grupos tematizados na exposição, seja em artistas modernos, casos de Lasar Segall e Oswaldo Goeldi, seja em jovens como Jonathas de Andrade e Matheus Rocha Pitta.

Mostras com tal conteúdo político podem cair em certa literalidade, mas a seleção do curador não cai nessa cilada, mesmo que os conteúdos sejam de fato um tanto explícitos. Uma obra que exemplifica como o curador tentou escapar desse estereótipo é Abismo, de João Castilho, um vídeo poético, no qual um grupo navega em uma pequena embarcação, surgindo da escuridão e saindo de forma também misteriosa, como a falar da invisibilidade das minorias no País.

Estranhas, porque não literais, também são as obras de Pitta, espécie de lápides em concreto, que revelam restos de textos de jornal, entre eles uma sobre o massacre de Pinheirinho, em São José dos Campos, e outra sobre Amarildo, o pedreiro desaparecido, também tematizado em outra obra de Cildo Meireles na mostra, uma nota de R$ 2 com a frase “Onde está Amarildo”. Aqui, Meireles atualiza “Quem Matou Herzog”, também presente na exposição, um dos trabalhos mais significativos da época da ditadura. O curador, aliás, apresenta junto a essa nota os dois atestados da morte de Herzog, o feito na ditadura e o novo, após os trabalhos da Comissão da Verdade.

Entretanto, a questão que a mostra levanta é: por que há tão poucos artistas preocupados com o real? “Creio que esse seja um lado perverso de, finalmente, o País ter construído uma tradição na história da arte com o neoconcretismo, o que influencia muito a nova geração e sufoca tudo que esteja distante da constituição desse cânone”, afirma Dos Anjos.

O paradoxo está em toda a proposta de artistas neoconcretos, centrada em acabar com a ideia de representação, eliminando o caráter de objeto da obra. Já em Cães sem Plumas, a representação está no cerne da pesquisa do curador. Ou seja, enquanto representação, todas essas obras se tornam objetos de venda e consumo, eliminando parte de sua potência crítica. Nesse sentido, tornam-se mais significativas as obras de Paulo Nazareth na mostra: panfletos da série Produtos de Genocídio, irônicos manifestos sobre como a indústria que transforma elementos da cultura indígena em nomes para consumo, e que podem ser levados por todos os visitantes. Sem discriminação.


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