O cientista político Daniel Cara teve nesta semana, talvez, a sua maior vitória desde que assumiu a coordenação geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, em 2006. O órgão viu a aprovação definitiva do plano nacional no fim da tarde desta terça-feira (3) pela Câmara dos Deputados, depois de três anos de tramitação entre as casas legislativas e o Executivo.
O PNE (Plano Nacional de Educação) prevê o estabelecimento de 20 metas para a melhora do ensino no país, entre elas a destinação de 10% do PIB brasileiro anualmente para o setor.
Apesar das polêmicas – como a presença de instituições privadas entre as beneficiadas pelos recursos – o texto espera agora apenas pela sanção da presidente Dilma Rousseff, que deve assiná-lo, já que foi o seu antecessor, Luiz Inácio Lula da Silva, que enviou o projeto original para o Congresso, em dezembro de 2010. Na tarde desta quarta-feira (4), Daniel Cara falou por telefone com Brasileiros:
Brasileiros: A campanha que você coordena é pouco conhecida ao grande público, mas reconhecida em setores especializados. Como tem sido o trabalho de vocês?
Daniel Cara: A campanha começou exatamente no dia 5 de outubro de 1999, aliás no mesmo dia em que foi promulgada a constituição nacional, em 1988. É uma estrutura em defesa do capítulo da constituição nacional sobre educação. Tem tido uma atuação que se notabilizou, principalmente de 2004 para cá no Congresso Nacional. Nós participamos decisivamente da construção do FUNDEB (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica), depois da questão das cotas, antes disso trabalhamos na defesa no piso dos professores no Supremo Tribunal Federal, também na questão dos royalties do petróleo em 2013 e agora da aprovação do PNE. Então, podemos dizer que a gente ajudou em todas essas colaborações para o Brasil.
Brasileiros: Especificamente no caso do PNE que, entre várias metas existentes, prevê o investimento de 10% do PIB para educação…
Daniel Cara: Primeiro, a meta dos 10% do PIB é considerada principal porque é ela que vai viabilizar financeiramente as outras 19 metas do programa. Ela é o cálculo de demanda financeira das outras metas. A gente pede para dobrar os recursos para a educação e a maior parte desse recurso vai para a reestruturação da carreira docente. Esse é o segredo do Projeto Nacional de Educação.
Brasileiros: Um dos temas levantados até pela grande imprensa é a destinação de parte destes recursos para instituições privadas. Como você viu essa discussão?
Daniel Cara: Eu sou totalmente contrário. Isso é um empréstimo e não faz nenhum sentido ser contabilizado. O Estado empresta para o aluno e o aluno precisa pagar de volta, então não dá para contabilizar empréstimo como investimento. Segundo que o PROUNI é renúncia fiscal, isso significa que a faculdade reduz a sua contribuição tributária através da oferta de matrículas, então também não pode ser contabilizado. Na verdade criou-se uma manobra contábil, que é totalmente contraproducente à contabilidade pública. Agora precisa ver como vai ser feito esse jogo e não vai ser muito simples. Qual que é o esforço que o governo tem que fazer nessa questão? Agora, sem as instituições público-privadas seria mais difícil cumprir a meta dos 10%.
Brasileiros: Surgiu o argumento também de que, por mais que as instituições sejam privadas, as vagas seriam públicas.
Daniel Cara: O que não é verdade. A verdade é que o setor privado no Brasil – não só na educação, mas em todas as áreas – quer ter os benefícios do Estado, mas não quer ter os ônus, no sentido de contribuir com as atribuições legais, garantir uma educação de qualidade. Aliás, verdade seja dita: essas instituições privadas de ensino superior, salvo raríssimas exceções, são de péssima qualidade.
Brasileiros: Ou seja, não colaborariam para o avanço da qualidade de ensino.
Daniel cara: É, até porque não podemos nos acostumar no Brasil – e eu considero que o PROUNI, FIES e os outros programas de educação do governo são avanços emergenciais – com matrículas sem qualidade. Isso acontece na educação básica, mas acontece também no ensino superior em estabelecimentos privados.
Brasileiros: Essa parte do texto ter sido aprovada é uma pequena derrota em meio a grande vitória que foi a aprovação do projeto?
Daniel Cara: É uma derrota. Eu não diria nem pequena derrota, diria derrota apenas. No contexto total a gente venceu e a sociedade civil brasileira ganhou muito mais do que perdeu, até porque se você olhar o projeto original do governo federal, eles falavam em 7% do PIB incluindo estas instituições privadas, e agora é 10%. Então nós fomos bem, ainda que a tramitação do projeto tenha sido lenta. Mas neste caso nós perdemos. Faz parte do jogo democrático. Uma lei que só corresponde às demandas de um setor da sociedade acaba não sendo uma lei geral, então acaba sendo negociado e, em geral, nessa negociação eu acho que nós vencemos. Essa questão é importante, mas não obscurece as outras vitórias.
Brasileiros: Como surgiu o número 10%? Teve alguma inspiração em no sucesso de algum outro país?
Daniel Cara: É uma conta. Fizemos o cálculo em agosto de 2011 que foi amplamente debatido em vários órgãos do governo federal, como o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), por exemplo. Nós comprovamos que estávamos certos com esse número, então é uma vitória técnica e não de pressão. A imprensa dá a entender que a gente é louco e colocou na cabeça que seria 10% de investimento, mas não é isso. Nós fizemos um cálculo. Se fosse 9%, pressionaríamos por 9%, mas deu 10%. Aliás, deu 10,38% para ser mais preciso. Esse cálculo determina uma demanda de investimento para o cumprimento das outras 19 metas.
Brasileiros: Como é que fica agora o processo de fiscalização desse processo, levando em conta o nosso histórico político com vários casos de corrupção?
Daniel Cara: Perfeito. Primeiro, nós aprovamos no projeto que a cada dois anos o governo federal precisará apresentar relatórios de cumprimento das metas estratégicas, em que nível está, etc. Então essa é uma primeira medida de controle social. Segundo – e eu aposto bastante nessa medida – nós estabelecemos uma ponte entre o Ministério Público, os tribunais de contas e os conselhos de educação para que nessa triangulação possa ser feita com um acompanhamento mais articulado dos órgãos de controle internos e externos da gestão pública. Mas essencialmente, se você me perguntar qual é o “pulo do gato” do nosso plano, eu diria que é a gente determinar as 19 metas, calcular os custos dessas metas e conseguir mobilizar a sociedade sobre o plano e exercer um controle social sobre ele.
Brasileiros: Como a Campanha Nacional pelo Direito à Educação vai participar da implementação do projeto, caso seja sancionada pela presidente?
Daniel Cara: Nós vamos exercer uma forte pressão sobre o governo federal e os nossos comitês regionais – presentes em quase todos os Estados do Brasil – também vão pressionar para a construção dos planos estaduais e municipais de educação e que participem da execução destes planos. Por que isso é necessário? Porque o plano nacional tem um prazo de educação básica, que é da creche até o ensino médio. Neste desafio da educação básica a responsabilidade cai, essencialmente, sobre os Estados e municípios. Então temos que ter tudo isso bem construído porque são fundamentais para a construção do plano.
Brasileiros: A campanha que você dirige tem contato com outras campanhas na América do Sul, onde se nota um movimento pela educação parecido, como no Chile por exemplo, ou até no mundo?
Daniel Cara: A campanha brasileira vê organizações parecidas em mais de 70 países. Nós integramos a Campanha Global pela Educação e fomos da direção dessa campanha até 2011. Praticamente todos os países da América Latina têm campanhas nacionais de educação. Em relação aos países do chamado Cone Sul, o Brasil tem os piores indicadores, levando em conta o Chile, Uruguai e Argentina, e nosso esforço é para diminuir essa distância para eles. Na educação não deve haver competição entre países, eu acho, porque estamos falando de um direito, e esse direito deve ser para todos os seres humanos. No entanto, esse direito está sendo menos observado para os seres humanos do Brasil do que em outros países da região.
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