A campainha tocou tarde da noite na cobertura em Botafogo, Rio de Janeiro, onde viviam os Novos Baianos. O baixista Dadi espiou pelo olho mágico e viu um homem sério, com terno, gravata e óculos. Alarmando, já que a turma adorava maconha, avisou a todos que se amontavam na sala. “Pessoal, sujou! Acho que é cana”. Nova batida, alguém checou e reconheceu o visitante. “É João, gente.” Era João Gilberto, que trazia um violão. A história virou lenda desde que saiu no livro Noites Tropicais, de Nelson Motta. A maioria dos Novos Baianos confirma a estória, só Luiz Galvão, letrista do grupo, desmentiu-a depois, chamando-a de “fábula”.
Incontestável, sim, foi a frequência com que João ia ao apartamento. Era sempre esperado e saudado quase como um messias. A primeira visita veio de um pedido de Galvão, seu conterrâneo – ambos nasceram em Juazeiro, Bahia. O jovem compositor procurou o criador da Bossa Nova para mostrar seu grupo musical. João teria relutado, mas foi ver a turma tocar e cantar. Desse convívio breve e intenso, resultou Acabou Chorare – o mais importante disco da MPB, segundo a Rolling Stone em 2007. Neste ano, a revista elegeu o disco como o número 1 da lista de 100 maiores álbuns da música brasileira.
No momento, Moraes Moreira divide seu tempo entre a preparação de seu novo disco, A Revolta dos Ritmos, com músicas inéditas (previsto para maio), e uma série de shows em homenagem a Acabou Chorare, com seu filho David Moraes. Mas dá uma parada nos trabalhos para falar à Brasileiros sobre a emoção que foi fazer o disco. Nessa volta ao passado, criou um poema (leia na página 116). “Esse disco é como um oráculo para mim. Ali, imprimimos uma emoção. As pessoas, quando ouvem esse disco, sentem a nossa verdade.”
Pela brasilidade
O encontro aconteceu em 1972. O vigor ainda pulsa no álbum pela combinação de Moraes Moreira (violão-base), Paulinho Boca de Cantor (vocais e pandeiro), Pepeu Gomes (guitarra, violão e cavaquinho) e Baby Consuelo (afoxé, triângulo e maracas). A tripulação completava-se com Jorginho (bongô e cavaquinho), Baixinho (bateria e bumbo), Dadi (baixo) e Bolacha (bongô), já falecido. Agregados ainda o dançarino Gato Felix e o percussionista Charles Negrita. Gerações dedilham ao violão canções como Acabou Chorare, Mistério do Planeta e Preta Pretinha. O repertório inclui a versão pós-tropicalista de Brasil Pandeiro, que Assis Valente fez em 1941 e Carmen Miranda não quis gravar. Mais: a irresistível e sonora Besta é Tu.
Por tudo isso, Acabou Chorare é um disco perfeito, produzido em um momento mágico por jovens que deixaram a Bahia para viver intensamente no Rio, sem nenhuma responsabilidade a não ser fazer arte. É a combinação original de cinco momentos da música em diferentes épocas, vinculados a compositores baianos: o pioneirismo do samba irreverente e melancólico de Assis Valente (anos 1930), o violão pré-bossanovista de Dorival Caymmi (1940), os acordes de João Gilberto (1950), a antropofagia contemporânea do tropicalismo (1960) de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé e Capinam, e o radar globalizado dos Novos Baianos (1970). “Se falta algo na ficha técnica é João Gilberto como produtor espiritual”, diz Moraes Moreira, um dos protagonistas da obra-prima, que canta e dá o tom em quase todas as faixas com seu inconfundível violão.
É Moraes quem conta a história: “João acordou a semente de brasilidade até então adormecida em nossos corações. O País vivia um momento difícil, massacrado pela ditadura. A autoestima de todos estava lá embaixo. Por causa dele, o conceito do disco ficou assim: ‘Brasilidade universal, tradição e modernidade’. Tudo mais era completado pelas nossas figuras, pela nossa filosofia de vida”.
O músico não se esqueceria da noite em que João Gilberto pediu aos Novos Baianos para cantar suas músicas. “Confesso que tremi, mas, depois, fui mostrando o repertório. Ele gostou, disse que estava tudo bem, mas observou: ‘Vocês precisam olhar mais para dentro de vocês mesmos’. Ele queria o nosso trabalho com dose maior de brasilidade. De imediato, Pepeu e eu começamos a introduzir no grupo ritmos brasileiríssimos, como cavaquinho, bandolim e pandeiro.” A fórmula se completou com a guitarra, o baixo e a bateria. “Misturamos linguagens, Jimi Hendrix com Waldir Azevedo, Janis Joplin com Ademilde Fonseca, acústico e elétrico. A intervenção de João foi fundamental para a estética musical da banda.”
Moraes conta que tudo aconteceu na cobertura em Botafogo. “A vida lá era uma festa e nem as dificuldades financeiras baixavam o astral do grupo. Sobrevivíamos com algum dinheiro que a Som Livre nos adiantava por conta de direitos autorais. No mais, acho que fazíamos mágica e até pedíamos dinheiro na rua.” A turma se reunia para tocar, fazer novos arranjos para músicas compostas geralmente por Moraes e Galvão. “Acabou Chorare foi feito nesse clima, no melhor momento em que vivemos juntos. Tínhamos a firme vontade de fazer algo novo. A resposta que recebemos do povo e da crítica especializada através do tempo vem confirmando que estávamos no caminho certo.”
Segundo Moraes, a ideia era fazer um disco com arranjo vibrante. “Pepeu era o nosso maestro. O acústico e o elétrico se misturavam, a batucada chegava junto, os solistas cantavam, enquanto todos faziam coro. O disco foi se definindo, tomando forma, enquanto cantávamos.”
Sem conflitos, os três cantores dos Novos Baianos resolviam de comum acordo quem ia cantar o quê. “Na verdade, acho que as canções escolhiam seus intérpretes. Baby, Paulinho e eu fazíamos um bom revezamento nessa função de solistas.” Ficou decidido que Brasil Pandeiro abriria o álbum – e seria cantada pelo trio –, para servir como manifesto da brasilidade que a música deveria ter, sem abrir mão de influências externas. Fazia exatamente 30 anos que o samba-exaltação tinha sido gravado pelos Anjos do Inferno, mas coube ao grupo fazer o arranjo definitivo da música. “Assis entrou no repertório em uma daquelas noites mágicas que passamos com João. Ele nos apresentou o samba, dizendo: ‘Essa música é cara de vocês’. Entendemos o recado e passamos a tê-la como referência, tanto que se tornou a primeira faixa do disco. A nossa versão ficou tão natural e popular, que muita gente pensava que era de nossa autoria. Mas fazíamos questão de sempre fazer as pessoas se lembrarem de Assis Valente.”
O título é de Bebel
A faixa que daria nome ao disco guarda uma história ainda mais curiosa. Até hoje, muita gente acha que veio de uma expressão do latim. Parece, mas não é. Na verdade, mistura português com espanhol, numa improvisação feita por uma criança, Bebel Gilberto, filha de João Gilberto e hoje cantora. Numa das rodas de violão com o cantor, ele contou que, que quando morava no México com a mulher, Miúcha, a filha Bebel, ainda muito pequena, levou uma queda, machucou os joelhos e começou a chorar. O pai correu para acudi-la e, ao vê-lo preocupado, ela teria respondido: “Não papai, acabou chorare”.
Galvão adorou a história, compôs a letra e deu a Moraes para musicar. Tanto ela quanto as outras nove canções do álbum foram gravadas no Estúdio Somil, também em Botafogo. A produção ficou por conta de João Araújo (pai do cantor e compositor Cazuza), enquanto Eustáquio Sena coproduziu. “O ambiente das gravações era de celebração e nossa alegria tão grande que até assustava os técnicos.”
Esse espírito dos Novos Baianos aparecia com intensidade na perfeição do registro do maior sucesso do disco, Preta Pretinha, composta na cobertura da turma. A letra começou quando Galvão fazia uma viagem de barca com Baby Consuelo para Niterói. Ainda no mar, ocorreram-lhe os versos: “Enquanto eu corria/assim eu ia/lhe chamar/enquanto corria a barca”. Moraes gostou de cara. “Peguei o violão e comecei a cantarolar. Surgiu uma melodia singela e popular. E era tão natural que, em certos momentos, perguntei se ela já existia.”
O destino fez seus planos |
Passava a tropa em revista |
Logo pintou o refrão Preta, Pretinha, homenagem da turma à Baianinha: “A pretinha linda que morava em nossa comunidade e adorava cantar e dançar nossas músicas”. Tanto o LP quanto o CD tem duas versões. “A gravação original durava 6 minutos e meio. João Araújo ponderou que corríamos o risco das rádios não a tocarem e concordamos em fazer uma edição de três minutos e alguns segundos, contanto que as duas saíssem. E o que aconteceu? Os programadores gostaram tanto que romperam a regra e consagraram a versão mais longa.”
Nenhuma faixa, porém, faz um legítimo sarapatel de todas essas influências quanto à obra-prima Besta é Tu, cujo título era uma expressão popular tipicamente soteropolitana. A música era um samba-choro carregado de energia e positivismo, com trocadilhos de palavras e frases. Em Preta Pretinha, Moraes canta sobre ser um pássaro que vive “avoando”. Em Besta é Tu, ouve-se que “Ela se derrete toda só por que eu sou baiano”. Não podia ser diferente. Embora a turma vivesse no Rio, tinha optado pela vida em comunidade, fechada e intensa, de muito contato com a própria comunidade baiana. Nesse contexto, Moraes se tornou fundamental. Sem dúvida que o roqueiro-guitarrista Pepeu Gomes direcionou o disco para a síntese do rock com o samba, o choro e o baião que alinhavaram Acabou Chorare. Moraes, no entanto, introduziu o samba de roda do Recôncavo Baiano que o acompanhou de sua cidade Ituaçu e outras referências quase intuitivas. “Eu trazia a influência do rádio, das serenatas, das bandas marciais e do alto-falante.”
De outro modo, ainda dentro dessa referência regional, Acabou Chorare é quase um tributo a João Gilberto em pelo menos duas faixas. Primeiro, em Swing do Campo Grande – bairro central de Salvador. A introdução faz pensar que quem toca e canta é o próprio João. E em Tinindo, Trincando, terceira música do álbum. Nos dois casos, tudo vira brincadeira jocosa e toma outro rumo, como queriam todos, dentro da ideia do salve a alegria e o prazer, de Assis Valente, que os Novos Baianos buscavam. “O Brasil estava triste, cinzento, mas nós queríamos levantar a autoestima do nosso País e fizemos isso cantando, vestindo roupas coloridas, usando cabelos longos e muita ousadia.”
Moraes reconhece que o grupo teve o tropicalismo como grande fonte – até incentivo. “Tínhamos influência sim, mas nunca abrimos mão de fazer nosso trabalho, de imprimirmos a nossa marca.” E ressalta: “Os intelectuais e a imprensa, às vezes, não falam dos Novos Baianos como um movimento, mas considero assim, como foi a Bossa Nova e o Tropicalismo.”
O conceito de Acabou Chorare se completava pela capa que, em 1972, recebeu prêmio de melhor produção gráfica do ano, com assinatura de Antônio Luís Martins, mais conhecido como “Lula”, que tinha sido o protagonista do cult movie Meteorango Kid, o Herói Intergaláctico (1970), de André Luiz de Oliveira. A primeira edição do disco em CD, lançada pela Som Livre em 1993, entretanto, trouxe uma capa diferente. Somente em 2008, o ex-Titã Charles Gavin resgatou a integridade do disco, inclusive a capa. “Aquela imagem era o retrato fiel da nossa vida”, ressalta Moraes. Para ele, a nova remasterização melhorou o som original sem torná-lo artificial, como acontece muitas vezes quando se passam para o formato digital discos gravados na era analógica. “Apenas quatro canais registraram a nossa afiada performance, fruto da prática diária e obsessiva. Às vezes, perguntam-me: ‘A que horas vocês ensaiavam?’ Respondo que nossa vida era um interminável ensaio. lsso prova, para mim, que, se faltarem competência e emoção, a tecnologia não salva.”
Falar do reconhecimento histórico do disco é algo que emociona Moraes. Sentimento que ele tem também quando vê novas gerações de músicos, especialmente cantoras como Vanessa da Mata, Marisa Monte, Céu, Roberta Sá e Mariana Aydar beberam de sua fonte. Em 1972, Moraes não tinha noção de ir tão longe. “Nossa onda era fazer e fazer benfeito, não nos preocupávamos com resultado, sabíamos que estávamos fazendo a nossa parte com garra e muito amor. Mas é incrível como esse disco continua vivo e influenciando novas gerações.” Não é esse o conceito de uma obra clássica?
OUTRO JOVEM QUARENTÃO |
Clube da Esquina foi um dos movimentos musicais mais im – portantes da história da cultura nacional. Liderado por Milton Nascimento, rendeu frutos, como o disco de mesmo nome, que também acaba de fazer 40 anos. Para comemorar a data, o jornal Estado de Minas foi atrás dos dois meninos que estampam a capa de Clube da Esquina. A repórter Ana Clara Brant e o fotógrafo Túlio Santos percorreram os arredores de Nova Friburgo, região serrana do rio de Janeiro, onde a imagem foi feita 40 anos atrás. A única referência eram indicações um tanto imprecisas do autor da imagem, o fotógrafo pernambucano Cafi, que clicara os garotos a caminho da fazenda da família de um dos letristas do disco, ronaldo Bastos. Munidos de cartazes com a reprodução da foto original, os repórteres conversaram com mais de 50 moradores da região e encontraram os dois meninos: Tonho e Cacau ou José Antônio ri mes e Antônio Carlos rosa de Oliveira. Segundo a reportagem, eles nasceram na fazenda da família Mendes de Moraes, em Nova Friburgo, onde os pais trabalhavam como lavradores. Ficaram muito próximos até os 20 anos, quando as famílias se mudaram para bairros diferentes. Tonho (o menino branco) ainda vive na ci – dade com a mãe, a mulher e as duas filhas. Cacau (o menino negro) se mudou pa ra a região dos Lagos, onde presta serviços como jardineiro e pintor. Mas os dois se reencontraram para celebrar a data e fazer um novo registro fotográfico. |
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