A convulsão social que começou na Tunísia, em dezembro de 2010, e se alastrou por vários países é chamada de “primavera árabe”, uma alusão à “primavera dos povos”, ocorrida em 1848 na Europa. Muitas das manifestações ainda não tiveram um desfecho e, algumas outras, ainda podem começar. O cinema árabe, como espelho da sociedade, pode ser um bom caminho para se entender o que levou as populações desses países à insurreição.
As revoltas populares, segundo Soraya Smaili, professora da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e diretora científica e cultura do Instituto da Cultura Árabe (ICArabe), fazem parte de um processo que vem se alongando há muitos anos. Em entrevista à Brasileiros, ela conta sobre a 6ª Mostra Mundo Árabe de Cinema, que acontece entre 16 e 29 de junho, em São Paulo.
Os filmes são produções de diferentes países, como Egito, Argélia e Síria, e têm uma coisa em um comum: são trabalhos de uma nova geração de cineastas. Os 15 longas serão exibidos na Cinemateca, CineSESC, Centro Cultural São Paulo e Matilha Cultural. Informações sobre horários e locais de exibição podem ser encontradas no site do ICArabe.
Brasileiros – Qual é a principal característica dos filmes escolhidos?
Soraya Smaili – A primeira característica é a produção cinematográfica de diretores muito jovens. A gente escolheu filmes que representassem essa nova geração de cineastas e produtores que, apesar de novos, são muito profissionais e têm um olhar significativo das diferentes sociedades dos países árabes. A segunda é que os filmes são uma representação das principais questões sociais existentes em diferentes lugares do mundo árabe. Questões estas, que desencadearam a “primavera árabe”.
Brasileiros – A primavera já está presente nesses filmes?
S.S. – A “primavera” em si não aparece, pois os filmes não são tão recentes, mas eles falam das condições sociais que levaram a esse movimento, que vêm lutando por melhores condições de trabalho e de vida.
Brasileiros – Qual é a intenção da mostra?
S.S – Uma das ideias é que essa mostra nos aproxime da realidade deles. Muitas vezes, o Ocidente olha para o Oriente como uma coisa muito distante. No entanto, muitas das questões de quem vive lá não estão ligadas a cultura árabe ou tradições islâmicas. São questões sociais, como as nossas. Onde existe pobreza, existe conflito social. As questões deles são iguais às de qualquer outro centro urbano. Os filmes também mostram outras questões mais leves que aproximam os brasileiros dos árabes. O filme 1×0, por exemplo, trata da paixão do egípcio pelo futebol. Acho que as pessoas vão se identificar bastante com esse filme que, curiosamente, foi dirigido por uma mulher e é campeão de bilheteria nos países árabes.
Brasileiros – Qual é a principal característica do cineasta árabe?
S.S. – Eu acho que o diretor árabe tem um olhar muito semelhante ao dos diretores brasileiros. Quer dizer, é um olhar muito diverso do americano e do europeu que, muitas vezes, aborda problemas sociais de forma distanciada. O diretor árabe, assim como nós, olha para a questão de forma mais aprofundada no que diz respeito às relações humanas. Acredito que existe um olhar mais inventivo, mais criativo.
Brasileiros – Muitos dos filmes são feitos por mulheres, qual é o papel delas nessa produção?
S.S. – Ao contrário do que todo mundo imagina, o mundo árabe tem muitas mulheres cineastas. O movimento feminista na Tunísia é enorme, elas estavam presentes em todas as manifestações e continuam presentes nas discussões. As mulheres no Egito, por exemplo, dirigem filmes desde os anos 1940.
Brasileiros – Elas sofrem muitas restrições?
S.S. – O grau de violência que as mulheres do mundo árabe sofrem, ao contrário do que imaginamos, não é muito maior do que o sofrido pelas brasileiras. Nós não podemos olhar para a mulher árabe com os olhos da nossa cultura. Existem dificuldades semelhantes entre as mulheres brasileiras e árabes. É só ver a questão dos diretores, nós temos muito mais postos no cinema ocupados por homens que por mulheres.
Brasileiros – Alguma indicação?
S.S. – Um filme bárbaro é o Reciclar, de Mahmoud Al Massad, que trata da realidade de uma comunidade muito pobre que vive de lixo, no Qatar. Eles vivem em um grupo que, além de muito pobre, é também fundamentalista. O filme mostra a perigosa mistura entre pobreza e radicalismo religioso. O que, aliás, não é uma característica do islamismo apenas. Outro filme muito interessante é o Filho da Babilônia, de Mohamad Al Daradji, que conta a saga de uma senhora em busca de seu filho desaparecido, no Iraque pós-Saddam. E, nessa viagem, ela leva seu neto. Isso me lembra muito a dor das mães que tiveram seus filhos desaparecidos nas ditaduras latino-americanas.
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