O desfile macabro do coronel Villocq

Torna-se fácil, por ter nascido em 1900, acompanhar a trajetória política de Gregório Bezerra, revelada por ele mesmo em suas Memórias, publicadas pela primeira vez em 1979 e agora reeditadas pela Boitempo Editorial.
Em 1910, sua família de retirantes, abalada pela fome, migrou do campo para a cidade, onde ele ganhou a vida como pequeno jornaleiro, morando nas ruas e nas pontes do Recife. Em 1917, aos 17, assistiu à Revolução Soviética, adotou-a e foi preso pela primeira vez, ficando quatro anos na cadeia. Em 1935, aos 35, participou da Intentona Comunista. Em 1946, aos 46, foi o deputado mais votado à Constituinte. Aos 64 anos, foi o preso político mais torturado pelo regime militar de 1964. Este é o seu relato:

(…) Eu sabia, desde que deixara Recife, que, de um momento para outro, poderia ser preso ou assassinado. (…) Nessa época, cerca de dez dias antes do golpe, o usineiro José Lopes de Siqueira Santos, covarde matador de camponeses indefesos organizara um bando de pistoleiros que tinha a tarefa de dar caça ao comunista Gregório Bezerra. Agora, o 20o Batalhão de Caçadores marchava atrás de mim com a mesma finalidade. Mesmo assim, consegui percorrer alguns municípios antes de ser preso. Mas, como não podia deixar de ser, acabei caindo nas mãos de um grupo de investigadores da polícia perto da usina Pedrosa, no município de Cortês. O grupo era comandado pelo capitão Rego Barros, da Força Pública, e estavam todos armados de metralhadoras. Meia hora depois, já no município de Ribeirão, fui violentamente tomado das mãos do capitão Rego Barros por um destacamento do 20o Batalhão de Caçadores e pelo grupo de bandidos armados por José Lopes de Siqueira Santos. (…)

“Tu querias entregar o Brasil à União Soviética”

Queriam trucidar-me ali mesmo e só não o fizeram por causa dos enérgicos protestos do capitão da Brigada Militar de Pernambuco. (…)
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Fui conduzido à presença do coronel-comandante do 20o Batalhão de Caçadores, já acantonado em Ribeirão. O coronel mandou-me para o general Justino Alves Bastos, comandante do IV Exército. Fui conduzido na carroceria de um caminhão com os pés e as mãos algemados, o pescoço e as pernas amarradas, sob forte escolta. Fui inicialmente recebido pelos coronéis Ibiapina e Bandeira. Dirigiram-me as seguintes palavras:
– Sargento Gregório Bezerra! Bandido! Assassino covarde! Traidor da pátria e do Exército! Tu querias entregar o Brasil à Rússia soviética, bandido! Agora, estás seguro em nossas mãos e não escaparás. (…) Jamais voltarás a trair a pátria a serviço de Moscou! (…)
Assim, protestei energicamente:
– Não sou traidor da pátria, ao contrário, sou um verdadeiro patriota. Participei do movimento revolucionário de 1935 pela verdadeira independência nacional, contra o fascismo e a guerra.
(…) Nessa altura fui impedido de falar por uma coronhada no peito e outra na face direita. Caí com os dentes partidos e sangrando pela boca. Os pulsos também sangravam, em consequência das algemas. Foi nessas condições que fui conduzido ao general-comandante do IV Exército. (…) Fez-me ainda muitas outras perguntas e depois ordenou meu recolhimento na Fortaleza de Cinco Pontas. Fui levado para lá, mas o comandante recusou, alegando que não havia celas vazias. Fui então conduzido para o quartel de Motomecanização, no bairro da Casa Forte.

Cano de ferro na cabeça

Ao chegar a esta unidade do Exército, ainda no pátio do quartel, estava à minha espera o comandante coronel Villocq. Recebeu-me a golpes de cano de ferro na cabeça, tendo eu por isso desmaiado. (…) Fui arrastado pelas pernas e jogado num xadrez. (…) O tarado Villocq babava pelos cantos da boca qual um cão hidrófobo. (…)
Por várias vezes tentou introduzir a barra de ferro em meu corpo, mas não o conseguiu, porque eu concentrava toda a minha força para defender-me de semelhante ignomínia. Quando já estava todo machucado na cabeça e no baixo ventre, os dentes todos arrebentados e a roupa encharcada de sangue, despiram-me, deixando-me com um calção esporte. Deitaram-me de barriga. Villocq pisou na minha nuca e mandou um grupo de bandidos sapatearem sobre meu corpo. A seguir puseram-me numa cadeira e três argentos seguraram-me por trás, enquanto Villocq, com um alicate ia arrancando meus cabelos. Logo depois, puseram-me de pé e obrigaram-me a pisar numa poça de ácido de bateria. Em poucos segundos, estava com a sola dos pés em carne viva.

Convite ao linchamento

(…) Laçaram-me o pescoço com três cordas e obrigaram-me a passear sobre pedregulhos britados. (…) E assim fui arrastado pelas principais ruas do bairro de Casa Forte. (…) O coronel sádico parou o desfile em frente ao CPOR e concitou oficiais, alunos e soldados a me lincharem. (…)
– Linchem este bandido! É um monstro! É um incendiário! Queria fazer a revolução comunista a serviço de Moscou. (…) Matemos este bandido!Venham, batam até ele morrer! (…)
Ninguém o aplaudiu. Ninguém o atendeu. (…)
O desfile prosseguiu. Chegamos à praça da Casa Forte e Villocq fez outro comício incitando os populares a me trucidarem. (…)
– Este é o bandido comunista Gregório Bezerra! Estava planejando incendiar o bairro e matar todas as crianças! Agora, vai ser enforcado na praça! Venham assistir!
Enquanto Villocq falava, várias senhoras choravam convulsivamente. A esposa do monstro caiu numa profunda crise de choro. Ante tal situação, Villocq disse:
– Você está chorando por este bandido? – e golpeava-me, esguichando sangue, tingindo suas mãos, salpicando seu rosto e sua túnica. Aos gritos, prosseguia: – Este é o tratamento que damos ao comunistas – e batia-me, tal como uma cozinheira trata um bife para amaciá-lo. (…)
Fui salvo pelo clamor público. (…) Homens e mulheres de todas as condições sociais, horrorizados ante o espetáculo infernal foram ao general Justino Alves Bastos pedindo que ordenasse a suspensão da prática de circo romano em pleno século XX. (…) O coronel Ibiapina, comparsa de Villocq mandou parar o desfile macabro e disse:
– Assim é demais! Ainda tenho de interrogá-lo; depois, façam dele o que quiserem!

» Memórias, Gregório Bezerra, Boitempo Editorial, 648 páginas


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